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3 - A Luz que Cega

— Você sabe que não precisava vir junto, né?

— Mas eu quis, ou você não me quer por perto? — perguntou Sandra, com um arqueio de sobrancelha e um pequeno sorriso. — Além do mais, estava sem ter o que fazer mesmo, então...

— Não é isso... — respondeu Peter, enrubescido.

— E outra! Você sabe que eu estou preocupada contigo, então não adianta tentar correr, porque meu segundo nome é Usain Bolt!

— Preocupada comigo?

— Óbvio, ou você acha mesmo que eu acreditei que as suas olheiras foram provocadas por causa de uma noite selvagem com as gatinhas?

O táxi em que estavam virou a esquina e passou por cima de um buraco, arrancando um “filho da puta” do motorista, seguido por um “me desculpem”.

— Eu só estou tendo uns pesadelos, só isso — disse, sem querer mentir e nem adentrar no assunto.

— Eu volto a repetir, eu conheço uma pessoa que pode te ajudar nessas coisas. É uma amiga de infância, então pode ficar tranquilo que eu vou pedir para ela não te machucar muito, belezura?

— Primeiro, não estou maluco. Segundo, “belezura”? De onde você tira esse vocabulário? — perguntou, com as palmas das mãos juntas.

— Só vou falar se você for se consultar com a minha amiga, caso contrário neca de pitipiriba — respondeu Sandra, com bom humor.

— Tá, agora você foi longe demais! Neca... o que?

— Pitiri... tipiri... Só falando o final também não consigo — Deu uma gargalhada. — Neca de pitipiriba foi a minha vó por parte de mãe que me ensinou. A minha bisa era brasileira.

— Que maneiro! Mas o que significa essa palavra?

— Quer dizer “nada”.

— Chegamos! Rua Crowell, 19 — disse o taxista, que até aquele momento acompanhava a conversa dos dois passageiros pelo retrovisor através de rápidas olhadelas.

Desceram do automóvel bem em frente a uma placa de "Sem Saída". Por um breve momento, Peter imaginou se aquelas palavras eram uma forma de o destino alertar-lhe sobre algo.

A Rua Crowell possuía um aspecto sinistro que deixava os cabelos da nuca eriçados. Apesar de ainda ser o começo da noite, não havia uma viva alma transitando pelas calçadas.

A casa da Sra. Arza era feita de tijolos em vários tons avermelhados. Uma luminária em forma de lamparina estava fixada bem em cima da porta de entrada. Mais acima havia uma grande janela, onde ambos notaram a silhueta de uma mulher. Peter não sabia dizer se ela estava virada para a rua, embora sua imaginação dissesse que ela encarava o cemitério. Pararam de frente para a porta, sem apertar a campainha.

— Que sinistro — comentou Sandra, antes de fazer um rápido sinal da cruz, o que não passou despercebido por Peter. — Qual é mesmo o nome dela?

— Acho que é... Arza — respondeu ao verificar as informações em um pedaço amassado de papel.

— Arza? Só isso?

— É, ué. Tava no meio dos arquivos que o Josh me passou.

— Ainda não sei por que você não usou alguma entrevista antiga das que eu te passei. Era só copiar e colar.

            — Eu queria fazer alguma coisa nova — respondeu, pensando nas palavras de Jimmy.

— Às vezes, eu me pergunto onde o Josh acha essas “celebridades”. Deve ter algum grupo da deep web com todo esse povo junto.

O barulho de trincos se abrindo fez com que ambos se entreolhassem. A senhora Arza girou a maçaneta e, com um grande sorriso amarelo — nos poucos dentes restantes —, surgiu na porta.

— Boa noite, Sra. Arza! — cumprimentaram, em uníssono.

— Boa noite, minhas crianças! E os pombinhos podem me chamar só de Arza mesmo. Não me perguntem o que os meus pais tinham na cabeça para colocar esse nome. Mas entrem... Só não reparem na bagunça.

O interior da casa era adornado por objetos e móveis antigos. Uma cômoda cuja madeira fora manuseada por um habilidoso artista estava disposta perto da entrada. Em cima dela havia uma foto preto e branco de uma jovem sorridente em meio ao que parecia ser um evento importante. Na sala havia um sofá de dois lugares e uma poltrona, próximas a uma televisão antiga, daquelas onde você precisava dar uns tapas do lado para o sinal melhorar.

— Já jantaram? Preparei uma sopa de ervilha deliciosa. — Soltou uma pequena risada que mais parecia um grunhido e foi para a cozinha.

Sandra estava pronta para declinar da oferta, mas foi pega de surpresa pelo ronronar advindo da barriga de Peter.

— O que foi isso? Parece um Pug respirando — disse Sandra, segurando o riso.

— Foi mal, pô — disse, com a mão sobre o estômago. — Adoro sopa de ervilha.

— Depois dessa, acho que também vou aceitar essa sopa.

Arza voltou com duas tigelas de uma sopa quentíssima, a julgar pelo vapor.

O cheiro estava delicioso e, após a primeira colherada, Peter desejou estar sozinho para poder comer à vontade, sem ser interrompido. Sandra pareceu ler seus pensamentos, pois ela o fitava com diversão.

— Pelo jeito, você gostou da minha sopa. — Outra pequena risada, agora acompanhada de uma tosse seca.

— Sim, está muito boa. De verdade! Mas eu não quero atrapalhar a noite da senhora, então, caso não se importe, gostaria de começar a entrevista a respeito de sua vida, histórias sobre o bairro, a cidade, coisas assim... Juro que vai ser rápido.

— Tudo bem, menino! Também não quero prender vocês aqui. — Acomodou-se na poltrona de estampa florida e continuou: — Os dois são tão jovens... Devem estar loucos para darem uma voltinha, né?

— Como? Nós não somos... — Tentou argumentar Sandra, com o rosto vermelho, antes de ser interrompida por uma Arza que revirava o passado, sem receio algum.

— Antes de mais nada, eu queria dizer que eu fui muito feliz neste lugar. Não somente nesta casa, que era dos meus pais e ficou para mim como herança, mas te digo que houve uma época dourada em que as pessoas amavam esta cidade. Amavam a proximidade. O companheirismo. Eram tempos de descobertas, os quais o espírito de ousadia imperava no coração dos jovens. Mesmo só tendo vindo morar aqui por volta dos meus 18 anos, eu pude ver o ápice e a derrocada deste lugar. Tudo era tão vivo. Tão quente. O cinema ao ar livre com o namoradinho. — Piscou para Sandra. — Ah! A visita dos Beatles em 64! Eu era apaixonada por aqueles meninos. Eu e outros milhões, sem dúvida. — Riu e tossiu, cobrindo a boca com a mão trêmula, notou Peter. — Os jovens tinham motivos para lutar, e lutavam! Não ficavam puxando a barra da saia da mamãe e apontando para aquilo que eles não gostam. Eles. Eu. Nós fazíamos a diferença!

Peter reparava nos olhos vibrantes de Arza. Há quanto tempo que ela estava sem conversar com alguma pessoa, ainda mais com alguém que estava interessado no que ela tinha a dizer?

E ela continuava com as lembranças. Peter não ousava estancar tamanho fluxo de memórias que jorrava de uma fonte antiga, porém vívida.

— Eu posso dizer que vivi, e muito! Participei de protestos; fui à estreia de Hair, para desgosto de meu pai. Chorei quando o reverendo King foi assassinado. Não que eu fosse religiosa, mas ele era algo a mais — disse Arza, olhando para o teto e tentando capturar as lembranças como em um pesque-e-pague. — Na vida existem pessoas que são mais, vocês me entendem? Não porque foram privilegiadas, mas porque estavam no lugar, hora, com o motivo e a vontade certas. Mas também existem pessoas que são menos. Não somam, não multiplicam ou mesmo compartilham suas alegrias. Apenas subtraem. Tiram o que é delas e que se dane o resto.

O olhar de Arza transitava entre o brilho intenso e a opacidade, como se atrelado às boas lembranças estivessem os espinhos. Peter anotava tudo, deixando de lado a tigela da sopa que esfriava na mesa de centro.

— Mas, bom... Nem tudo foram flores. Se caí em armadilhas? Com certeza, e não foi por falta de aviso. Me machuquei e sangrei. Uma vez me perguntaram se eu me arrependia por algo que tinha feito, e talvez essa seja uma das perguntas que vocês vão me fazer. Na época, eu havia dito que não me arrependia de nada que tivesse feito ou deixado de fazer. Era uma frase que eu repetia para tentar mascarar o meu orgulho. Contudo, o tempo, como de praxe, passou, e as marcas permaneceram. Jovenzinho — disse, encarando Peter. —, eu vejo em você essa mesma marca. Sim, seus olhos não mentem. Você também passou por coisas terríveis... Só quem passou pela guerra, sabe reconhecer um companheiro de farda.

Peter engoliu em seco e apertou as mãos com força. Não estava com raiva, mas fora pego desprevenido. Sandra também reparou naquela mudança de postura. Sua vontade era de abraçar Peter e dizer que podia contar com ela para tudo, mas permaneceu observando. Ela tinha uma vaga ideia sobre o que Peter havia passado. Um dia ele havia lhe dito, enquanto passeavam no shopping, e depois de prosearem sobre futuro, sonhos e família, que havia sido criado pelo tio. Não era o tio de sangue, mas acabou se tornando um pai. Ela não perguntou sobre os pais, e como ele nada disse, ela entendeu que não era para trazer o assunto à superfície.

— Eu acho engraçado aquelas pessoas que dizem: "Tudo o que eu fiz, faria de novo, porque isso me tornou quem eu sou hoje!", e sabe como as chamo? Hipócritas! Quem em sã consciência gosta de sofrer? "Ah, me machuque para que eu seja uma pessoa melhor!", "Me decepcione para que eu possa aprender sobre a vida!". Como se o sofrimento fosse algo a ser desejado.

Peter e Sandra não esperavam por aquilo. Era para ser somente mais uma simples entrevista para uma pequena coluna em um diminuto jornal local, mas aquela mulher metralhou a ambos com palavras tão profundas quanto um oceano. Arza não era uma coluna de jornal. Era um livro inteiro. Uma trilogia.

— Espero que não os tenha assustado com o meu devaneio. Faz tempo que não tenho visita — disse, e mudou a direção de seu olhar para a janela da sala.

Peter ainda digeria as palavras. A sopa já estava fria, e apesar da fome, não se importou

— Nossa, Sra. Arza. Adorei sua história! — comentou Sandra. Deu uma leve cutucada com o cotovelo na costela de Peter para despertá-lo do estado "embasbacado" que se encontrava. — Com certeza vai render uma ótima história, não é, Peter?

— Ah, sim. Com certeza! Agora só tenho mais umas duas perguntinhas e podemos fechar a conta, tudo bem?

— Pode perguntar, jovenzinho.

— Na verdade, essa é só uma curiosidade minha. Como é morar ao lado de um cemitério?

— Sabe, eu sempre gostei de imaginar que isso era só uma floresta. A quantidade de verde, claro, ajudou-me bastante a criar essa similaridade, e se ignorarmos as lápides, fica ainda melhor. As imagino como grandes rochas fincadas na terra e fica tudo certo. A verdade, é que eu sempre gostei da floresta. Aliás, nasci perto de uma, e toda a minha infância foi correndo descalça pela folhagem, sentindo a terra macia se acomodando por entre meus dedos e saltitando pelos infindáveis pedaços de galhos secos, que as crianças usavam para desenhar na terra. Já os nossos pais tinham outra utilidade para essas pequenas varas, para os casos em que o chinelo ou o cinto não surtissem o efeito esperado. — Arza voltou a mover seus olhos em direção ao cemitério, embora não fosse possível enxergá-lo tão bem através da janela da sala. — Mas os anos que passei aqui me ensinaram muito, e passei a ver o cemitério como algo diferente. Eu o vejo como a estação final do trem da existência. É um fluxo constante de passageiros. A grande massa não percebe que está chegando na finda estação, até que este abre pela última vez as portas corrediças. E você precisa descer. E mesmo que você às vezes não queira ou ache que ainda não chegou a hora, essa massa borbulhante e inquieta que está atrás lhe pressiona, até que você termine jogado nos trilhos. De todo modo, mesmo você conhecendo ou não sobre a última estação, está indo em direção a ela. Todos nós estamos. E sabe por que não quebramos o pequeno vidro e acionamos a emergência? É porque nós queremos chegar lá e ver o que acontece.

Peter estava atônito com a eloquência daquela velhinha de cabelos brancos, pele quebradiça e de sorriso fácil. Sentia-se estranhamente familiarizado com ela. Sandra estava fascinada e perguntava-se como uma mulher que tinha tanto para falar era ignorada pelo mundo. Talvez fosse algum tipo de preconceito por causa da idade, ou por ela não ser alguém influente.

"As pessoas devem olhar para você e enxergar um prazo de validade expirado", pensou Sandra, com os olhos fixos em Arza.

— Olha... Confesso que nunca pensei nesse assunto desse jeito. E se eu quiser saltar antes da estação final? — perguntou Peter, curioso.

— Então, essa será a sua estação final, ou você acha que todos saltaremos no mesmo lugar?

— E o que faz com que as pessoas saltem do trem antes da hora? — perguntou Sandra, também interessada no rumo que aquela conversa havia tomado. Não era sempre que eles tinham a oportunidade de conhecer uma pessoa tão singular.

— Me digam vocês... — respondeu Arza.

— E se... essas pessoas são atraídas por algo, como se fossem aquelas luminárias-repelentes usadas para matar mosquitos? — disse Peter, contagiado pela pergunta de Arza.

— Como assim? — disse Sandra, animada com a empolgação de Peter.

— Assim... mesmo que vários mosquitos morram ao encostar no aparelho, os outros ainda continuam em volta, fascinados pelo clarão misterioso.

— Gostei do seu exemplo, jovenzinho! E o que seria esse "clarão"? — indagou Arza, entretida em uma conversa, como há anos não fazia.

Enquanto Peter explicava sua ideia, seu olhar estava fixo em um ponto aleatório do chão.

— Essa luz cegante e mortal é diferente para cada um. Pode surgir transvestida de relacionamento, vício, medo, ansiedade... E enquanto os outros discutem sobre o motivo daquele mosquito ter partido para o além tão cedo, outros continuam indo pelo mesmo caminho. E ninguém se importa, afinal, são apenas mosquitos.

— E por acaso você já se sentiu atraído para essa luz? — perguntou Arza.

— Antes, sim, mas eu achava que agora estaria tudo bem. Imaginava que os monstros que rondavam os meus sonhos morreriam quando eu me tornasse um adulto, mas eles me acompanharam. Cresceram comigo. E todos eles me instigam a ir de encontro a essa luz.

Sandra sentiu um calafrio. Ele que era um cara sempre fechado, naquele momento se abria para uma desconhecida. E não era de se espantar. Aquela velhinha era diferente.

— E a senhora? Já se sentiu atraída por essa luz? — questionou Sandra.

— Posso dizer que eu tenho uma longa história com ela, mas continuo aqui. — Olhou para Peter. — E eu espero que você também continue aqui. Não vai ser fácil, eu sei. Essa "coisa" está te chamando, não é?

Peter continuava com o olhar baixo, como se perdido em pensamentos, mas assentiu com a cabeça.

— É... Eu acho que quando a gente fica muito perto do clarão por tanto tempo, acaba reconhecendo certos trejeitos.

Arza terminou a frase, pôs-se de pé e dirigiu-se para a janela. Seus olhos estavam fixados em um horizonte que só existia em suas lembranças, quando a floresta de Melford era o seu quintal. Apesar de amar Nova York, um pedaço do seu coração sempre seria de sua terra natal. Há alguns anos, Arza pensou até em voltar de vez para Melford com a sua mãe — que já estava com a saúde debilitada —, mas um escândalo envolvendo um suicídio as deixou temerosas. Uma coisa era uma cidade do tamanho de Nova York ter os seus crimes, o que sempre foi uma rotina. Agora, uma cidade do tamanho de Melford, não podia dar-se esse luxo. E ainda mais que se tratava de pessoas que elas conheciam. O que a levou a questionar-se: "O que o filho de Barney Strall estava fazendo ali, tão longe e depois de tanto tempo?". O sobrenome poderia ser uma infeliz coincidência, e ela torceu para que assim fosse, mas os olhos e o nariz de Barney estavam impressos no rosto do filho. A boca era de Justine. A pobre mulher que chegou muito perto da luz. "Peter Strall... Se, por alguma brincadeira do destino, os pecados de seu pai estão recaindo sobre suas costas, sinto lhe dizer, mas vai ser muito difícil sair dessa situação sem deixar pelo chão pedaços de quem você é, ou era.". Lá fora a noite recaía sobre a Rua Crowell como um véu negro. A mulher permaneceu em silêncio mesmo após os convidados terem se despedido.

Peter sentia-se inquieto, e antes que entrasse no táxi, ousou olhar para a janela do alto, e lá estava a silhueta. Imóvel, como se houvesse virado uma estátua de sal por ter ousado olhar para o passado.

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