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Capítulo 02: A outra

A Faculdade São Valentim era uma das universidades mais antigas da cidade, era católica diziam, mas ninguém era obrigado a ir à igreja. O engraçado dela era que os prédios eram um antigo mosteiro — por isso o nome — e tinha todo um ar do século XIX, com mesas e cadeiras de madeira maciça que pareciam ter saído de filmes antigos de orfanatos e janelas de vitrais colorido.

Eu imaginava que estudar nessa sala pela manhã seria muito bonito, inspirador, para a turma de artes plásticas e, com certeza, seria lindo ver a luz do sol atravessar os vitrais azulados que tinham no prédio. Eu até me chateava de ter escolhido o turno da noite quando pensava nisso, mas Túlio não estudava no turno da manhã, então tudo bem.

Por cima da mesa de madeira da sala de aula, revirei as folhas do meu bloco de desenhos, organizando. Um panfleto de papel brilhante se desgrudou dos fundos de um dos desenhos, me recordando da já esquecida trombada naquele garoto mal-educado.

Suspirei, pegando o panfleto e lendo. Era um daqueles flyers de casa noturna, um lugar não muito longe da rua em que ficava a Faculdade São Valentim, chamado Strange House, anunciando uma noite especial de filmes de terror clássicos na sexta-feira 13, a que viria essa semana, com bebida grátis e música gótica (dark wave, 80s, 90s, 00s — como estava escrito).

Você costuma ir ao Strange House? — Uma voz perguntou.

Só então reparei nessa menina sentada na cadeira ao meu lado, de cabelos castanhos claros bem lisos e olhos negros bem maquiados, com um rosto de boneca e ar de celebridade.

Ah, não! — Abri bem os olhos, minha voz falhou eu tive que tossir para recuperar o som e dei um sorriso sem graça. Ela estava com uma blusinha cinza, marcando a renda do sutiã e com uma gargantilha de crucifixo no pescoço. — E você?

Não, mas talvez eu vá nessa sexta para o especial de filmes clássicos, sou fã de clássicos.

E quem não é? — Guardei o panfleto. — Se eu tivesse com quem ir, talvez eu fosse, não é o tipo de lugar que agrada meus amigos.

Ah, sei. Meu nome é Anelise Pontes. — A garota estendeu a mão, reparei nas unhas compridas e pintadas de preto, nos anéis em suas mãos e havia um que me chamou atenção, no polegar, que tinha umas inscrições em árabe. — E você?

Justina Montenegro. — Apertei a mão dela, estranhando que alguém ainda cumprimentasse outra pessoa assim nos dias de hoje. — Muito prazer.

Igualmente. — Anelise sorriu. Ela pegou o celular, que abriu na tela do GPS e eu estranhei, então ela explicou. — Acabei de me mudar e estou um pouco perdida! É difícil fazer amigos depois que você sai do colegial… Mas ei, essa faculdade tem os melhores professores, não posso reclamar! — Tentou se consolar, dando de ombros.

Estudei a vida inteira no mesmo lugar e escolhi essa faculdade porque meus amigos vieram para cá. — Expliquei. Na verdade, foi por causa de um único amigo: Túlio, mas se eu dissesse em voz alta eu ia soar uma stalker esquisita. — Se quiser fazer amigos, eu te apresento todos eles.

Ahhh, obrigada, eu acho. — Ela enviou um daqueles sorrisos só esticando a boca, de quem fica sem graça e não sabe o que dizer.

Ficamos caladas depois disso, o professor entrou e a sala se encheu de alunos. No primeiro semestre a gente vê um monte de matéria geral e são duas por dia, o que torna as coisas bem chatas e devagar. Quer dizer, eu queria logo ir para a parte onde eu desenharia o dia inteiro na sala de aula, mas tecnicamente, isso só aconteceria na sexta-feira, a mesma que eu já cogitava em faltar.

Tenho que confessar que eu não sou uma boa aluna. Quase não fiz os pontos para passar nessa faculdade e enfrentei o final do colegial com depressão. Quase repeti de ano! Por sorte passei — no meio do ano, mas passei — e pensava que eu estava pronta para recomeçar.

O professor passou uma enorme lista de livros. Fui pegar o meu estojo de lápis para anotá-los, quando achei dentro da minha bolsa aquele mesmo livro vermelho que tinha certeza que Hilay tinha jogado fora. Estranhando, tirei da bolsa e dei uma olhada na capa, não tinha nada escrito, mas na primeira folha achei mais um daqueles panfletos. É, certamente era o mesmo livro, mas como? Fiquei um tempo confusa, mas suspirei, guardei na bolsa novamente e pensei que, caso eu encontrasse aquele babaca gótico, talvez eu jogasse o livro na cabeça dele. Anotei a matéria e a aula continuou. O professor deu um rápido resumo do que seria o semestre, que assuntos abordaria e disse que não fazia chamada, que deixava a porta aberta para os alunos entrarem e saírem conforme quisessem, enfatizando que não queria que ninguém se sentisse obrigado a assistir aula se não gostasse ou se achasse a aula chata, mas que em contrapartida, esperava que aqueles que ficassem fossem dedicados e não ficassem de baderna na classe.

Esse era um cenário totalmente oposto ao do colegial. Meus professores de colégio basicamente me matariam se eu não quisesse assistir aula e haveria um bedel para me obrigar a voltar para a classe, caso eu saísse. Mas achei interessante! Era uma liberdade que eu desconhecia até então.

Quando a aula terminou eu e Anelise saímos juntas comparando nossos horários e eu descobri que eram os mesmos, ela também era aluna de Artes Plásticas e gostava mais de esculpir coisas do que de desenhar ou pintar. Eu fiquei maravilhada quando ela me mostrou o site dela e disse que já tinha feito uma exposição em Paris e que poderia me apresentar aos donos da galeria que estavam no Brasil. Eu não tinha nada, absolutamente nada, desse porte preparado (pintado ou desenhado), mas eu aceitei conhecê-los.

Pensa! Era uma enorme oportunidade, coisa que apenas quem estuda nos locais certos pode conseguir. A Faculdade São Valentim não era para alunos que não podiam pagar e era mais fechada e almejada que a famosa Harvard dos Estados Unidos, mesmo assim, ela oferecia bolsas de 100% para aqueles alunos talentosos, tinha olheiros em todos os campos, como por exemplo, vôlei, que era o que Túlio jogava e ele vinha a ser muito bom.

Ei, Anelise, quer ir até o ginásio comigo? Meu amigo Túlio faz parte do time de vôlei e sei que ele passa o tempo que pode nas quadras, sei disso porque eu costumava passar esse tempo com ele. — Conto. O peso de minhas palavras me atinge, estou soando como uma perseguidora. — Eu queria dar um “oi’, sabe, dizer que estou estudando aqui, apenas.

Claro, sem problemas. — Anelise concorda balançando a cabeça.

Eu não sou uma stalker. — Eu abano a mão. Anelise ergue uma sobrancelha, apenas uma, me analisando cética. — É só que, bem, é verdade que sou apaixonada por ele desde o primeiro ano do colégio, mas somos só amigos… Por enquanto.

Oh. — Anelise ergue as duas sobrancelhas compreendendo. — Você veio aqui por causa dele?

Não! A faculdade é ótima, você mesma disse… Mas, bem… Uh, talvez. — Confesso. — Deve pensar que eu sou muito trouxa, não é mesmo?

Não. Eu acho legal, fofo, quer dizer, um pouco sonhador, se ele ainda não te deu bola você sendo gata desse jeito. — Ela pisca um olho me incentivando.

Bem, nem sempre fui gata desse jeito. — Dou de ombros explicando. — Ele nem imagina que estou aqui, vestida assim, na verdade.

Então o que estamos esperando? Que ele te veja gata desse jeito. — Anelise me empurra em direção ao corredor com a plaquinha que diz “Ginásio Olímpico”.

Seguimos na direção do ginásio onde ficam as quadras. O pátio da Faculdade São Valentim era ainda maior do que eu imaginava e parecia uma eternidade andar até lá, como se não fôssemos chegar nunca. Mas chegamos! Como imaginei haviam alguns alunos jogando na quadra, mas eram jogos aleatórios e eu não vi assim, de primeira, Túlio.

Anelise deu de ombros e achou que poderíamos ficar até a hora das aulas, tinha uma lanchonete onde ela comprou um hambúrguer e refrigerante, nos sentamos na arquibancada e ficamos olhando e comentando os garotos.

Qual o seu tipo de garoto?

Ahhh, não estou nem um pouco interessada em arranjar namorados agora. — Anelise conta-me enquanto desembrulha o lanche cuidadosamente. — Nesse momento, o importante é me concentrar nos estudos e na carreira.

Hmmm, entendi.

Mas se algum gatinho do time de vôlei perguntar de mim, estou livre e desimpedida! — Anelise pisca um dos olhos castanhos e sorri, antes de dar uma grande mordida.

Do time de vôlei, né? — Ergui as sobrancelhas, debochando. Ela riu tentando não rir, pois estava de boca cheia.

Eu pego o celular e mando uma mensagem para Hilay, avisando que queria apresentar uma nova amiga e ela se empolgou toda do outro lado, decidindo se juntar a nós, para olhar os garotos, já que Felipe não tinha aparecido ainda.

Nossa, se ele souber que ela veio olhar os garotos, tenho certeza que nem que ele esteja na China, mas ele vem correndo para cá. Pensando nisso, eu mando uma mensagem para ele também, avisando e recebo um “É pra já”.

Guardo o celular na bolsa e ergo os olhos, vendo do outro lado Túlio. Nossa, eu poderia reconhecê-lo à anos-luz de distância! Ele está de uniforme de ginástica, verde e branco e cumprimentando outro rapaz na ponta das arquibancadas. Eu me sinto abençoada por ver aquele sorriso empolgado dele e sou atingida por todas as memórias que tenho ao lado de Túlio e uma palpitação forte no coração.

Túlio só não é mais meu amigo porque é meu crush e tem umas coisas que você não conta para o crush, simplesmente! Por exemplo, o fato de que ele é meu crush. Só quem sabe disso é Hilay, Felipe e agora, Anelise. Eu vou me confessar, eu juro. Foi para isso que vim hoje aqui. Confessar meus sentimentos a Túlio é o primeiro evento de uma cadeia de eventos entre nós dois, em nossa busca da felicidade!

Túlio é meu amigo desde os onze anos, a pessoa que me conhece há mais tempo na face da terra, só perdendo é claro para minha mãe, mas nem o meu pai é tão presente assim na minha vida. Nos conhecemos no colégio, como já disse, quando entrei para o time de vôlei e éramos uma dupla e tanto nas quadras. Eu sempre ficava nervosa antes do jogo, vomitando — eu tenho pânico sabe? — E Túlio sempre me acalmava. Teve uma vez que dividimos essa latinha de chá-mate gelado e até hoje eu me pergunto se por acaso já estava predestinado que ele seria o meu primeiro beijo. Por causa dos canudos, entende? Acho que trocar saliva no canudinho é basicamente tão íntimo como um beijo.

Ah, olha ali o Túlio! — Apontei segurando no braço de Anelise e depois, mostrando onde ele estava. Anelise estava mastigando e não disse nada, só concordou. Eu fiquei em pé, largando minha bolsa na cadeira e os cadernos, com o meu precioso presente. — Vou lá.

Uhum. Boa sorte! — Foi tudo o que ela conseguiu responder, colocando a delicada mão na frente da boca e balançando a cabeça, concordando.

Sorri e desci as escadas da arquibancada equilibrando nos saltos. Enquanto descia, ouvi umas risadinhas e levantei o olhar. Vi que ali perto estava o menino arrogante, com três garotas de cabelos coloridos e roupas pretas, uma de cabelo roxo, outra de cabelo verde e outra de cabelo azul, sério, um arco-íris de góticas com suas meias arrastão se atirando em cima dele, rindo, balançando suas bebidas e suas bundas ou peitos!

O rapaz jogou os olhos — gélidos, porém, intensamente encantadores — em cima de mim, tão frios que senti uma espécie de calafrio subir a espinha. Eu até tinha o livro dele comigo para devolver, mas não faria isso agora, havia uma coisa muito mais importante antes.

Enquanto ele me encarava, as meninas pouco a pouco pararam de rir e olharam para mim, foram olhares tão intensos que quase cai da escada, mas consegui me segurar.

Que desastre! — Elas riram.

Ah, só me faltava essa.

Empinei o nariz e continuei andando em direção a Túlio, que estava conversando com esse outro garoto que também parecia do time, ele era bonito e bem forte, musculoso, alto, com uma barba rala e olhos verdes. Foi o amigo de Túlio quem me viu primeiro, deu aquela conferida em todo o meu corpo, um pouco invasiva com o olhar, mas não me importei. Era sinal de que eu estava arrasando!

Túlio! — Anunciei minha chegada.

Túlio virou o rosto na minha direção, os olhos azuis profundos como um oceano no verão me analisaram e ele ergueu as sobrancelhas surpreso por me ver. Eu fui chegando perto, me aproximando, atraída. Túlio é como o sol! Ele é quente e magnético, seus cabelos dourados estão sempre impecáveis e eu conheço tanto o seu cheiro que só de fechar os olhos e inspirar, consigo senti-lo, apenas imaginando-o.

Não fechei os olhos, claro. Apenas me aproximei dele, segurei em seus ombros e estalei dois beijos em suas bochechas macias, marcando de batom perto dos seus lábios, absorvendo a fragrância amadeirada da loção de barbear. Túlio segurou minhas costas, piscando os olhos, surpreso em me ver. O amigo dele deu outra daquelas olhadas, conferindo inclusive o meu traseiro. Túlio, porém, não pareceu muito feliz em me ver, era quase até como se não reconhecesse.

Quem é você? — Ele perguntou franzindo a testa.

Como assim, Túlio? — Dei uma risada estranhando que ele não soubesse, mas, ao mesmo tempo, achando que ele estivesse brincando comigo. — Sou eu! Do colégio. Justina. — Acertei a gola de seu moletom esportivo verde-escuro, ele continuou sem entender. — Éramos vizinhos, estudamos juntos.

Eu vi quando aconteceu. Túlio abriu bem os olhos azuis de forma que parecia até que o planeta Terra havia ficado mais distante na imensidão branca de seus olhos. Ele entreabriu a boca carnuda e prendeu a respiração, caindo em si, lembrando de mim e provavelmente, surpreso por me ver.

Justin? — Ele piscou, a voz quase não saiu e ele ficou como uma estátua feita de cimento na minha frente, endurecendo instantaneamente.

Só que o meu nome é Justina, agora. — Sorri mais abertamente, deixando ele ver os meus dentes que consertei por anos usando aparelho e ficaram perfeitos, sem cirurgia. — Já te falei.

Tutu? — Ouvi uma vozinha de mulher atrás de nós. — Quem é essa?

No susto, Túlio desceu as mãos das minhas costas e buscou um pouco de espaço, ele girou um pouco e essa garota apareceu, me escaneando.

Não é uma garota qualquer, é uma garota linda, estonteante, de cabelos curtos sedosos e brilhantes, bem escuros como seus olhos, com pouca roupa, exibindo a pele bronzeada e o corpo escultural com seios enormes. Ela está super bem-vestida e que parece uma modelo ou uma atriz famosa… Não, espera, ela é exatamente uma pessoa muito famosa! Eu já vi uma novela com ela na televisão! E droga, ela tem os dentes muito mais perfeitos que os meus…

Roxane. — Túlio diz, meio enrolando a língua. Ele tosse, passando as mãos na jaqueta do uniforme como se estivessem sujas e depois olha para mim. — Essa é… — E toma uma pausa, que me incomoda. — Esse é… Justin. Aquele cara de quem eu te falei.

Justina, já te falei, meu nome é Justina. E quem é essa?

Essa é Roxane. — Túlio repete, passando o braço pela cintura da garota que apoia as duas mãos juntas no ombro dele, de forma íntima. — Minha namorada.

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