Se quiser evitar decepções ao longo de sua vida, não crie expectativas para o futuro. Essa é a regra máxima que todo ser humano deve seguir e que, infelizmente, demorou um pouco para eu entender como essa dinâmica funcionava. É inevitável: eu sou patética.
Cultivei essas expectativas como uma plantinha na jardineira da janela. Prestei atenção aos seus ciclos, reguei todas as manhãs, tardes e noites. Eu só pensava no quanto a minha vida ia melhorar depois que eu conseguisse o que eu tanto queria. Juntei energias, mentalizei, fiquei vivendo as situações imaginárias na minha cabeça enquanto estava deitada no meu quarto e estava pronta para encontrar a felicidade.
Eu estava confiante de que tudo daria certo e que depois de meio ano distante dos meus amigos de colégio, eu conseguiria — finalmente — tudo aquilo que eu mais desejava. Entreabri os lábios cheios de gloss labial cor-de-rosa e inspirei fundo, absorvendo toda a nova situação em que eu me encontrava.
Aquele era o paraíso. O cheiro de café da cafeteria no pátio principal, o vento gelado da noite e as vozes das pessoas conversando se misturavam. Eu tinha conseguido aprovação em uma das mais caras — e mais bem-conceituadas — faculdades privadas, a que tinha o melhor centro de artes de todo o país. Eu estava empolgada!
— Justina! — Um gritinho de alegria chama minha atenção, vindo da esquerda.
Giro, segurando a alça da minha bolsa grande e com estampa de caveirinhas, na qual eu trouxe um estojo recheado de lápis de cor e com a outra mão, um caderno e um bloco de desenhos, que imaginei precisar deles no primeiro dia de aula, mesmo sabendo que provavelmente nenhum professor dê nada, a primeira semana é meio morta; encarando uma garota de cabelos descoloridos cacheados e olhos azuis, com um ar entre o elegante e o “moleca”, usando um vestido cor-de-rosa, suéter branco e converse, balançando os braços acenando para mim no meio do pátio. Essa é minha melhor amiga de todo o sempre — e a única maluca a falar comigo depois de tudo.
— Hilay! — Abro um sorriso e me aproximo dela.
— Uau, você caprichou! — Ela j**a as mãos na cintura fina e desce os olhos azuis, analisando minhas roupas, que apesar de serem todas pretas, eram bem grudadas no corpo e femininas. — Deve estar mesmo querendo impressionar Túlio, soltou os cabelos e tudo!
Hilay segurou em uma mecha do meu cabelo, que é bem comprido e está recentemente pintado de preto (antes eram castanhos e sem graça, sempre trançados). Passei mais maquiagem do que o normal e nem preciso discorrer sobre o fato de usar o mais alto salto alto que eu tinha no meu armário, certo?
— Ai, fala baixo! — Olho para os lados, checando se ao redor haveriam pessoas que poderiam escutar e me julgar. — Vai todo mundo ficar sabendo que entrei nessa faculdade por causa dele!
— Relaxa, Jujuba que aqui não é como o colégio, não. — Fazendo uma careta que me considerava meio besta por externar aquele pensamento e abanando a mão, Hilay segurou no meu braço e me guiou pelo pátio. — Tem milhares de alunos, todos muito ocupados com suas notas e trabalhos para prestar atenção em você. Chega a ser solitário, às vezes.
— Solitário? Mas você e o Felipe não estão juntos? — Estranhei.
Felipe e Hilay são o meu casal favorito de todos os tempos, mais do que aqueles que eu fico torcendo nas séries de televisão. Eles estão juntos desde os primeiros anos do colegial e toda a sorte que eu não tenho para namorados, minha amiga tem!
Hilay solta uma risada escrachada abrindo bem a boca cheia de batom vermelho, jogando a cabeça para trás, como se eu tivesse contado uma daquelas piadas ótimas, mas já a conheço bem o suficiente para saber que ela está rindo de amargura.
— Aquele sonso vive faltando na aula para jogar com os amigos e me deixando fazer todos os trabalhos sozinha, fora arrumar a casa! — Ela abre bem os olhos vermelhos, enfatizando.
— É mesmo! Vocês estão morando juntos, vivando todo aquele sonho idealizado de todo casal que sai junto do colegial! — Suspiro inspirada pelo amor desses dois.
— Hm, de sonho não tem nada, está mais para pesadelo, Jujuba! — Hilay dá tapinhas no meu braço por cima do casaco preto.
— Tenho certeza que você está exagerando, Felipe não é nenhum bagunceiro e você deve estar aproveitando bastante o fato de que podem dormir na mesma cama, sem o seu pai enchendo o saco.
— Ah, sim, essa parte continua ótima, como sempre. — Hilay pisca um olho satisfeita e me puxa pelo braço, adentrando um corredor.
É bem na hora que um garoto está saindo da biblioteca, segurando alguns livros de capa dura e um que parece uma grande enciclopédia. Apesar de eu ser uma garota magra, eu sou alta e forte. Costumava fazer parte do time de vôlei do colégio e mesmo tendo abandonado o time no último ano, eu ainda sou bem mais forte que as garotas em um geral. É biológico, eu acho!
Eu me choco contra ele, empurrando-o contra a parede com a força do meu corpo e os livros escorrem para o chão, abrindo as páginas, soltando folhas e uns panfletos de uma casa de show, esparramando por cima de seus coturnos com bico de aço.
— Ai! — Faço, colocando a mão por baixo dos seios, na costela, onde os livros bateram.
— Ei! — O garoto reclama.
— Jujuba! — Hilay acrescenta drama, colocando as duas mãos na boca. É tudo muito rápido, mas os detalhes ficam gravados na minha mente como uma tatuagem.
Ergo os olhos para encarar o rapaz contra o qual me choquei, gradativamente subindo por aquelas calças negras visivelmente coladas, as correntes prateadas presas no cinto, os esmaltes negros nos dedos cheios de anéis e um deles, um bico-de-corvo bem gótico, subindo para a gola da jaqueta negra com patches da Novocaine Mausoleum, uma banda mais morta do que aquele visual dele, inclusive e paro nos… lábios.
Nossa. Devia ser proibido um garoto ter lábios assim, bem desenhados, avermelhados, super simétricos e cheio de piercings. Um deles está até avermelhado na parte de baixo, como quem acabou de fazer aquele furo.
— D-desculpe. — Fico até gaga diante daquela visão, que para muitos seria até assustadora.
— Saco. — Ele faz, meio sem vontade.
Eu me abaixo para pegar os livros e é exatamente na mesma hora em que ele está se abaixando também, o que causa um segundo choque entre a gente, agora, nossas testas se batem com força.
— Ai! — Caio sentada com a mão na testa e o garoto da mesma forma. Encontro os olhos dele, azuis como um céu de inverno, frios e completamente cravados em mim. Ele está com a mão cobrindo parte da testa, mas não demonstra sentir nenhuma dor e sua pele é tão branca que ele parece um vampiro. — Desculpe!
Diante de mim está a bagunça, de livros, papéis e panfletos, que eu junto como posso com as mãos, tentando não perder os meus preciosos desenhos que se desprenderam do bloco que eu trouxe. Junto tudo e me levanto. É quando percebo que Hilay segura alguns livros também e o garoto fica segurando uma folha de papel, encarando um desenho que eu fiz de Túlio. Sabe, é um presente, que pretendo entregar quando eu o encontrar.
— Ai! — Puxo rapidamente a folha da mão do garoto e ele pisca os olhos cheios de maquiagem negra, sem me entender. — Aqui, seus livros. — Entrego para ele, disfarçando. — Eu não te vi, desculpe.
— Hm. — O rapaz responde, sem dizer nada, apenas esticando as mãos e pegando os livros.
Eu fico esperando um “obrigado”, mas não vem. Reparo que ele está com essa bolsa-carteiro, toda negra e de pano, com patches de bandas colados e com correntes, um chaveiro de morcego. Mórbido demais até para mim. O rapaz guarda os livros na bolsa, pega os que estão na mão de Hilay que está com os olhos bem abertos e essa expressão incrivelmente assustada em seu rosto pálido.
Ele pega os livros, guarda, dá um passo para sair e Hilay estranhamento dá quase que um pulo para trás como um animal assustado, me puxando junto. O garoto se afasta de nós.
— Nossa, que mal-educado! — Eu digo, antes que ele se afasta. — Não vai cair a língua se disser um “obrigado”, viu?
— Jujuba, o que você está fazendo? — Hilay dá uns tranquinhos no meu braço puxando a minha jaqueta, falando como um sussurro, me repreendendo.
O garoto para de costas para a gente e olha por cima do ombro com seus olhos azuis gélidos. Não sei se ele está tentando ser ameaçador ou o quê, mas não funciona, ergo as sobrancelhas exigindo o “obrigado”, mas ele apenas venta, rindo de canto, mostrando as pontinhas do canino pontudo e me ignora, voltando-se para o corredor.
Mas que arrogante!
— Ei! Ei! — Eu tento chamar, acompanhando suas passadas rápidas por entre as pessoas até que, de repente, eu o perco de vista, como um passe de mágicas. — Ai, mas que idiota! Se eu encontrar esse garoto de novo, eu vou dar um soco nele!
— Cê tá louca! — Hilay aperta as unhas por cima das minhas roupas e eu olho para ele sem entender. — Não chega perto desse cara, Justina!
— Por que? — Pergunto conferindo meus cadernos enquanto voltamos a caminhar, é quando encontro um livro pequeno e de capa preta entre minhas folhas, um livro que não é meu. — Argh, deve ser dele! — Balanço o livro.
— Ai! J**a isso fora! — Hilay toma o livro da minha mão. — Deve estar amaldiçoado! — E atira na primeira lixeira que encontra.
— Espera! — Grito assustada.
— Vamos embora, agora! — Hilay me impede de chegar perto da lixeira, e pensando bem, foda-se. O garoto foi um tremendo arrogante, nem ligo de jogar o livro dele no lixo.
Por um tempo, apenas vamos andando pelo corredor e seguindo as placas que indicam a secretaria, onde posso pegar uma cópia do meu horário e saber onde irei estudar.
— Quer me contar o que foi aquele surto? — Pergunto, cortando o silêncio entre a gente.
— Olha, tudo bem. — Hilay coloca a mão em sua testa, como se limpasse o suor. — Vamos esquecer e rezar para ele esquecer o que aconteceu e não fazer nada com a gente.
— Pfff! Fazer o quê?
— Você não tem ideia de quem ele é! — Ela abana o rosto, apavorada.
— E você tem? — Desafio.
— Sim! Todo mundo sabe quem ele é, o nome é claro que eu não sei, mas o apelido é pinhead. — Ela abre bem os olhos azuis enfatizando. — Sabe, igual aquele do filme, por causa dos piercings.
— Pegavam mais levo comigo no colegial do que com ele aqui, hein? — Dou uma risada debochada. Eu gosto de heavy metal e já fui em alguns shows, mas nunca debocharam de mim por isso e sim, por outros motivos. — Coitado.
— Coitado, nada.
— Lay! — Digo alto, meio que repreendendo por ela não estar me dizendo nada.
— Ai, Jujuba, tá bom eu te digo, se quer tanto saber, mas não vai rir… O pinhead é satanista, vendeu a alma para o demônio e já matou uma pessoa. — Hilay explica. Eu dou risada e penso, que ridículo. — Ah, você está rindo?!
— Desculpe, foi inevitável!
— Inevitável é o que ele pode fazer contra a sua alma, isso sim! — Hilay balança o dedo no meu nariz, dando meio que bronca, como uma mãe. — O pinhead e esse cara, um maluco motoqueiro, discutiram feio por causa de uma menina, ele até levou um soco e ficou com o olho roxo, mas… bem, o motoqueiro sofreu um acidente e está em coma até hoje.
— Hilay, estar em coma e morrer tem uma grande diferença. — Eu a corrijo e ela cruza os braços. — E não é possível que você acredite nisso, você não tem mais doze anos para ficar impressionada com lendas urbanas.
— Não é lenda urbana! Aconteceu bem aqui na faculdade e todo mundo viu! Pode perguntar pro Felipe, ou pro Túlio! — Ela estreita os olhos, como se atirasse dardos sobre mim. — Não chega perto desse cara, Jujuba!
— Tá, tá. — Reviro os olhos e encerro o assunto, dando por vencida. — Você não vai me levar para a secretaria?
— Tou levando! — Ela diz e puxa o meu braço. — Vem, vamos logo que as aulas já vão começar e eu tenho que ir.
— Achei que a primeira semana era uma semana morta, que os alunos não fazem nada e nem os professores… — Comento sendo arrastada pelo corredor.
— Ah, pois trate de ir se acostumando que aqui na Faculdade São Valentim as coisas são bem diferentes do que você imaginou. — Hilay sentencia.
A Faculdade São Valentim era uma das universidades mais antigas da cidade, era católica diziam, mas ninguém era obrigado a ir à igreja. O engraçado dela era que os prédios eram um antigo mosteiro — por isso o nome — e tinha todo um ar do século XIX, com mesas e cadeiras de madeira maciça que pareciam ter saído de filmes antigos de orfanatos e janelas de vitrais colorido. Eu imaginava que estudar nessa sala pela manhã seria muito bonito, inspirador, para a turma de artes plásticas e, com certeza, seria lindo ver a luz do sol atravessar os vitrais azulados que tinham no prédio. Eu até me chateava de ter escolhido o turno da noite quando pensava nisso, mas Túlio não estudava no turno da man
— Namorada? Como assim, “namorada”? — Aquelas palavras me atingiram como uma bomba e eu tinha explodido em mais de mil pedacinhos microscópicos. Bem, meu coração tinha.Eu senti um misto de sentimentos naquela hora, olhando para Túlio e aquela celebridade de quinta categoria com grande descrença. Era quase inacreditável que ele tivesse dito que estava namorando outra menina e pior, uma que era muito mais bonita do que eu, diga-se de passagem. Eu me senti traída pelo pior tipo de pessoa, com raiva, de Túlio e dessa tal Roxane. Meu sangue ficou mais volumoso, bombeando em minhas veias, esquentando como fogo e eu senti raiva. M
— “Seu aroma é rico, com notas frutadas e doce fragrância de flores do outono”. — Li a parte detrás da garrafa azul escura de porcelana, com detalhes dourados, dando um largo gole naquele uísque de cor intensa. — Mas eu só sinto gosto de fumaça.— Seu paladar é destreinado. — Olhei para a bancada da cozinha, onde Bruno estava de costas para mim, só de meias, relaxado, tinha tirado a jaqueta e eu podia ver a camiseta de uma banda gótica, a linha de uma cruz vermelha de ponta-cabeça desenhando suas costas… enfim. — Esse é um dos me
Tomei uma grande respiração enchendo os meus pulmões de ar. O cheiro de café entrou pelas minhas narinas atiçando o meu paladar. De manhã cedo, logo que acordo, eu costumo ter muita fome, mas hoje, estava enjoada por causa da ressaca.— Bom, está pronto. — Digo fechando a garrafa térmica pequena e colocando em cima da bancada da ilha da cozinha, perto de onde estava o cotovelo de Bruno, apoiado, enquanto ele fumava mais um daqueles cigarros fedorentos. Ele já tinha vestido a jaqueta de couro, privando meus olhos de parte do delírio que era o corpo dele. — Sabe, não
Hilay puxa o plástico que envolve um pirulito vermelho em forma de coração e colocou na boca rapidamente enquanto andava pelo pátio. Ela joga o papel na primeira lixeira que viu e volta a dar as mãos com o namorado, Felipe.Minha melhor amiga está com os cabelos trançados em um bonito penteado, usando uma blusinha branca rendada e jeans, com sandálias de salto e um suéter preto. A noite está fresca e o céu, encoberto. Andamos pelo jardim da faculdade, que é cheio de árvores e flores, têm alguns postes de luz amarela e um caminho de paralelepípedo, que d&aa
— Nem adianta dar esse sorrisinho de vitória, não, Túlio. — Com violência, puxo novamente meus cadernos das mãos de Túlio, segurando-os. Eu o encaro sem a menor paciência para lidar com ele no momento, minha voz sai até mais seca que o normal. Sei muito bem o que Túlio veio fazer aqui, motivo pelo qual não atendi suas ligações e o ignorei quando ele foi ao meu apartamento. É ressaca moral. Ele se arrepende quando faz algo errado e fica pedindo desculpas intermináveis. — Não faz assim. — Uma lufada de vento fresco atinge
Marilyn Manson está berrando através das caixas de som amplificadoras. A garrafa de Royal Salute está em cima da mesa, ao lado há um copo com gelo quase derretido do qual eu já tinha tomado todo o uísque. Bruno coloca os dedos para dentro do copo e alcança uma pedra de gelo, os anéis reluzem e os esmaltes pretos em suas unhas também, ele lambe os dedos, contendo uma gotinha que escorre, de forma totalmente sexy, e se aproxima
Não sei se estou mais embriagada pelo álcool do uísque ou pelos lábios perfeitos de Bruno. É um pouco dolorido beijá-lo, minha boca está com um piercing recém-feito e certamente, uma das recomendações é exatamente não beijar na boca!Há um pouco de gosto de sangue permeando nossas línguas, mas a boca fresca de Bruno é extremamente viciante e eu me afogo