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Capítulo 04: Royal Salute 21

 

— “Seu aroma é rico, com notas frutadas e doce fragrância de flores do outono”. — Li a parte detrás da garrafa azul escura de porcelana, com detalhes dourados, dando um largo gole naquele uísque de cor intensa. — Mas eu só sinto gosto de fumaça.

Seu paladar é destreinado. — Olhei para a bancada da cozinha, onde Bruno estava de costas para mim, só de meias, relaxado, tinha tirado a jaqueta e eu podia ver a camiseta de uma banda gótica, a linha de uma cruz vermelha de ponta-cabeça desenhando suas costas… enfim. — Esse é um dos melhores uísques escoceses de todos os tempos e foi criado para homenagear a coroação da Rainha Elisabeth. Mostre algum respeito, ele é mais velho que você. — Ele estava raspando a lata de patê para gatos com uma colher. Tinha esse gato felpudo de pelo totalmente preto, olhos verde-amarelados e gordinho, sentado aos pés dele, esperando, com uma coleira segurando um guizo e um medalhão escrito “Lorde Byron”.

Miaaaaaau!

Aqui está. — Bruno colocou o pote do gato no chão.

Você imagina que um rapaz tão gótico, que dirige uma moto barulhenta, usa anéis, é todo cheio de piercings e não ter vergonha de andar pelos corredores da faculdade de maquiagem sirva comida ao seu gato em um crânio humano tirado do cemitério, não é mesmo? Pois a realidade não tinha nada a ver com isso, o pote de ração de Lorde Byron era bem comum, desses pesados de aço, com uma plaquinha com o nome do felino inscrito em preto. Aliás, todo o apartamento de Bruno era bem normal.

Era um apartamento amplo de três quartos, sala de jantar, living room e varanda, com uma moderna cozinha sem paredes, móveis de madeira negra, com puxadores de aço escovado e uma decoração ao mesmo tempo clean e luxuosa. As paredes eram brancas, os quadros eram obras de artes modernas e havia uma escadaria que dava acesso ao segundo andar, onde tinha a piscina e uma ampla varanda com churrasqueira gourmet e um espaço para receber os amigos. Não tinha nada de satanista naquilo e ao mesmo tempo que era muito positivo, causava aquela sensação de que tinha sido enganada.

A única coisa realmente gótica era Bruno. Quando entrou, depois de tirar os sapatos e jogar a jaqueta com a bolsa em uma poltrona, ele pegou um controle remoto da estante e ligou a música do rádio, era uma melodia bem macabra, com notas interrompidas saídas de um cravo e a tensão do acorde de teclados. Parecia inclusive uma música ritualística, de vocais tristes bizarros. Acho que assustaria aquelas pessoas que temem filmes de terror, mas eu conhecia muito bem Sopor Aeternus & The Ensemble of Shadows para ter medo deles.

Se o uísque é tão bom, por que não está bebendo? — Pergunto soltando a garrafa em cima da mesa de centro de vidro e estrutura de aço.

Eu não bebo. — Bruno saiu da bancada da cozinha, deixando seu gato comer e contornou o sofá, sentando-se na minha frente com o espaço de um assento entre nós, de forma que eu tinha uma boa visão de seu rosto iluminado pelas luzes dos abajures da sala de estar. Eu tinha contado seus piercings: um no bridge, outro no septo (uma argola preta) e snakes bites. Para compor, um brinco na orelha esquerda comprido, com uma cruz pontuda como uma adaga. Eu me perguntava se ele teria um piercing na língua e como seria beijá-lo, caso ele tivesse, mas eu não tinha visto Bruno com a boca aberta o suficiente. Além do mais, estava curiosa para saber se ele furava outras partes do corpo também e se tinha tatuagens. Uma vez vi um documentário sobre modificações no corpo e dizia que as pessoas ficavam viciadas nas sensações de se cortar, pinçar e furar, porque o cérebro soltava endorfina no corpo para se proteger da dor. Era isso, ou ele era viciado em dor. — O uísque é do meu pai.

Oh. Então você mora com ele?

Moro com a minha mãe e ocasionalmente encontro o meu pai. — Bruno abaixa a cabeça, comprimindo os lábios e contando os piercings, tomando um segundo de silêncio para si. — É mais saudável para nossa relação.

Hm. — Dou mais um gole naquele uísque e me encosto contra a almofada. — Sua mãe está em casa?

Nem por chance. — Bruno tira do bolso um maço de cigarro amassados e um isqueiro desses simples que vendem em bancas de revistas e mercados, vermelho, puxa um cigarro e apoia entre os dedos. — Ela é uma mulher muito… muito… Ah, ela não gosta de ficar trancada em casa. — Ele coloca o cigarro nos lábios. — Está em Cancun por esses dias. — Ele rola o isqueiro e acende o cigarro tragando, a pontinha acende queimando e o cheiro da fumaça invade a sala de estar. Larga o maço e o isqueiro em cima da mesa e solta fumaça, exalando forte, pensando onde sua mãe está. — Provavelmente quando voltar ela apresente o meu décimo segundo padrasto, terei sorte se for um professor de esqui.

E o seu pai apresenta muitas madrastas?

Ah, não. — Ele apoia o cigarro nos lábios perfeitos e traga, por entre aqueles piercings e eu fico imaginando como ele consegue viver com tantos pregos e argolas na boca, digo no rosto todo. — Meu pai é um homem que só amou uma vez.

Soa bem solitário. — Mordo a boca ponderando. — Basicamente como a minha mãe. Desde que se separou do meu pai... E essa separação você pode pôr na minha conta, já que ele saiu de casa muito ofendido comigo! — Aponto para o meu corpo indicando o real motivo dele ter se ofendido. — Ela não tem procurado mais ninguém e dedica todo o seu tempo livre para encher o meu saco e controlar cada pedacinho da minha vida.

Acho que ela não deve ser muito boa nisso. — Bruno comenta, ergo uma sobrancelha quase ofendida. Ei, é da minha mãe que ele está falando! — Se a minha filha fosse para uma faculdade só por causa de um cara, ainda mais um daquele tipo, eu certamente não deixaria nem ela pensar em se matricular!

Ah, isso!

A Faculdade São Valentim é a melhor do estado, do país, ela não teve muita resistência quando eu disse que tinha entrado. — Dou de ombros, engolindo mais uísque. — E você, estuda literatura?

Por que acha isso? — Ele dá um sorriso achando graça. Nossa, os dentes dele são perfeitos, simétricos, retinhos, é sem dúvida um sorriso bonito e se torna ainda mais precioso por ter sido o único sorriso que ele deu até a agora. — Tenho cara de professor?

Pensei no nome do seu gato, Lorde Byron. É um escritor, não é?

Poeta. Ultra-romantismo. Meu favorito. — Ele explica com sua simplicidade de sempre. É uma espécie de dom usar apenas três palavras para formular uma ideia, eu acho. — Estudo engenharia física.

Ugh! Só de pensar em fazer contas, meu cérebro explode. — Dou mais um gole na bebida, rindo. — Eu sempre fui péssima em matemática.

O seu estado lógico é… ilógico. — Ele ergue as sobrancelhas tirando o cigarro da boca e apoiando a cabeça na mão. — Então… Você e Túlio.

O que tem?

Há algo no ar.

Besteira.

Ele ficou revoltado quando você ameaçou dizer alguma coisa. — Bruno repara, eu sinto um pouco de curiosidade em sua voz e isso me diverte um pouco.

Vamos dizer que ele me pegou em um dia bom, caso contrário eu teria dito mesmo assim. — Suspiro, batendo as unhas no copo e solto-o por cima da mesa. Volto a me encostar no sofá e junto os cabelos nas mãos, enrolando e jogando por cima do ombro. — Está curioso?

Talvez sim.

Vai continuar. — Brinco, rindo, piscando um olho, mas nem por um milhão de dólares eu vou dizer a ele o que era. — Ah, por falar nisso. — Viro tateando o sofá, alcançando a alça da minha bolsa e a puxo, trazendo para perto. Abro o zíper e pego o livro de capa dura que está na minha bolsa, mostrando para ele. — Acho que isso é seu.

Bruno reparte os lábios, surpreso, ele parece bem assustado nesse momento e demora para pegar o livro, prendendo a respiração. Es-qui-si-to!

Deve ter caído quando nos trombamos, eu pensei até que Hilay, minha amiga, a loira, tivesse jogado ele fora, mas acho que imaginei, pois estava na minha bolsa. — Conto, ainda balançando o livro na frente dele. — Toma, pega.

Não quero, pode ficar com esse inferno para você. — Ele se afasta um pouco no sofá, até, como quem odeia aquele objeto.

Mas é seu! Vou deixar aqui em cima da mesa. — Solto lá. Bruno acompanha com o olhar os meus movimentos e eu percebo que ele fica um pouco tenso, coçando a sobrancelha com os dedos e o cigarro queimando entre eles. Incomodado. — O que foi?

Hm? — Ele parece acordar de um transe e j**a os olhos gelados em cima de mim, aquele clima de amigos se dissipou totalmente, ele parece mais sério do que antes, inclusive. — Não. Nada. Você estava me falando de Túlio.

Eu estava falando que não vamos falar de Túlio. Por que não falamos daquele arco-íris de góticas ao seu redor? Alguma delas é sua namorada?

Hm. — Ele venta pelo nariz, rindo. — Então está com ciúmes?

Não confunda ciúme com curiosidade, vai pagar mico.

Mesmo que eu pagasse, não me compararia a você, rainha do mico. — Acrescenta, dando basicamente um tapa na minha cara. Ele tem razão. — Não tenho nada com nenhuma delas.

Hm. — Apenas dou um sinal de que estou ouvindo por não ter o que comentar. Eu até queria perguntar se ele está falando no presente para não ter que falar no passado, mas achei melhor não dizer nada.

Inclino para encher mais o meu copo e Lorde Byron trança o corpo em minhas pernas, se esfregando e fazendo “prrrr”.

Miaaaaau!

Eu solto a garrafa e desço a mão para fazer um carinho em seus pelos.

Cuidado que ele é arisco. — Bruno avisa, colocando o cigarro na boca.

Meus dedos encostam nos pelos felpudos de Lorde Byron e ele dá a cabeça, deixando que eu coce com as unhas compridas e devidamente pintadas em baixo, no pescoço. O gato fecha até os olhos, se entregando.

Arisco? — Dou risada, Bruno solta fumaça, erguendo as sobrancelhas e fazendo cara de quem não sabe o que está havendo com o gato. — Estou vendo, ele é tão arisco como o dono. — Pego o gato e coloco no meu colo, acariciando.

Prrrrrr! — O gato ronrona.

Veja só, qualquer fera felpuda pode ser domada.

Hm. — Bruno b**e o cigarro para trás do sofá, nada impressionado.

Ficamos em silêncio um tempo e continuo fazendo carinho em Lorde Byron, até que o gato dorme no meu colo e eu bebo todo o uísque do copo, já sentindo os primeiros efeitos ébrios, como pontas dos dedos dormentes, língua quente e nariz mole.

Você quer saber de uma coisa realmente patética? — Corto aquele momento, me esticando com cuidado para colocar o copo vazio na mesa.

Ahm? — Bruno desperta de, sei lá onde ele estava, com os dedos na boca, cutucando os piercings. Seus olhos me alcançam, ele ri de canto. — Quer dizer além de ter se matriculado em uma faculdade para perseguir o crush do colégio? Vamos lá, estou curioso para saber se você consegue mesmo se superar!

Hoje é meu aniversário. — Olho no relógio. — Era… E Túlio… Bem, ele simplesmente esqueceu.

Oh. — É a única reação de Bruno e acho que posso considerar uma reação e tanto diante das reações que ele normalmente dá. — Você deveria ter dito.

Para Túlio? Nem pensar! Não depois dele ter fingido que não me conhece e toda aquela cena diante da “nova” — faço aspas com as mãos — namorada dele. Tomara que ele exploda! E ela, com aqueles dentes perfeitos e aqueles cabelos lisos… Ugh! — Nem consigo verbalizar a raiva toda.

E é quando aquela realidade me atinge. Túlio tem uma namorada. Eu pensei que quando eu entrasse na Faculdade, eu teria uma série de motivos para ser feliz, eu mentalizei todos aqueles momentos, eu os vivi na minha cabeça, fiz planos e construí meus sonhos baseados nisso, em Túlio. Mas aquilo tinha me destruído!

Eu sou tão patética!

Cubro o rosto com as duas mãos, curvando o corpo. Apenas começo a chorar, copiosamente, aos soluços. Lorde Byron deixa o meu colo, indo se aninhar na poltrona e Bruno fica meio sem saber o que fazer, pergunta se eu quero uma água, essas coisas.

Termino a noite vomitando na lixeira da cozinha da casa de Bruno, antes de voltar para o meu apartamento, sabendo que acordaria no dia seguinte de ressaca e com vergonha daquele vexame para o resto da minha vida.

Eu culpo o Royal Salute 21 anos.

***

Minha cabeça estava latejando quando liguei o meu celular e esperei por alguns minutos enquanto ele vibrou freneticamente em cima da mesa.

Eu tinha muitas mensagens, da minha mãe — que explodiu a minha caixa postal com mensagens de voz perguntando onde eu estava e ameaçando subir no meu apartamento se eu não ligasse para ela (ela não veio, deve ter dormido antes) -, algumas muitas mensagens de texto de Hilay e Felipe, preocupados, umas mensagens de Anelise — que fofa! — Preocupada e querendo saber se eu tinha chegado bem em casa e… Um trilhão de mensagens de Túlio, a maioria “Fala comigo”.

Eu respondi as mensagens de Hilay dando um update completo do que houve, depois mandei uma mensagem para Anelise agradecendo e dizendo que estava bem e que o garoto gótico tinha me levado para casa — sã e salva, liguei para a minha mãe e deletei todas as mensagens de Túlio, passando o tratamento do silêncio.

Tinha me decidido queimar aquele desenho que fiz para ele, mas acabei desistindo da ideia, pois foram horas de dedicação naquela arte. Enquanto eu mexia na minha bolsa, encontrei novamente aquele livro de capa dura, de Bruno.

Enchi as bochechas de ar. É brincadeira? Certeza que ele colocou o livro dentro da minha bolsa, para tirar onda comigo.

Larguei a bolsa em cima da mesa e abri a porta, pisando para fora do corredor ignorando a premissa do condomínio para não sair pelos corredores de camisola. Toquei a campainha e esperei. Nada. Toquei de novo. Estava tão silencioso que escutei o som da campainha ressoando. Esperei mais… Nada.

Brincadeira!

Irada, soquei o botão da campainha ouvindo a melodia que nem se completava na sala de estar, tocando frenética.

Bruno abriu a porta.

Miaaaaau! — A primeira coisa foi Lorde Byron, que passou por entre suas pernas correndo e saiu, entrando direto no meu apartamento.

Lorde Byron! — Bruno fez uma careta e encostou a cabeça no batente, sem disposição alguma de correr atrás do gato, suspirando, os cabelos negros bagunçados, dando um ar ao mesmo tempo desleixado e encantador a ele. — Ai, droga.

Reparei que Bruno estava sem camisa, só de calça e que ele tinha uma, apenas uma, tatuagem na espinha ilíaca, uma estrela de Davi, mas que tinha mais pontas, quase um círculo, talvez fosse uma mandala, acho. Nada mal, viu? Nesse mesmo instante em que eu observava aquele corpo bem trabalhado dele, o telefone do meu apartamento começou a tocar. Devia ser minha mãe de novo, sei lá!

Não tem problema, o apartamento tem grade de proteção. — Eu aviso. — O antigo dono que colocou.

O que você quer? — Bruno reclamou, de mau-humor.

Oh, bom dia para você também, Bruno. — Eu disse.

O que tem de bom?

Aff! — Arfo diante daquela amargura toda, balançando o livro no nariz dele. — Posso saber por que você colocou esse livro na minha bolsa de novo? Eu não sou mula de carga para ficar carregando suas coisas para cima e para baixo, não.

Eu não coloquei.

Ah, não? E o quê? Vai me dizer que ele simplesmente apareceu na minha bolsa, do nada? — Coloquei as mãos na cintura.

Foi.

Estreito os olhos fulminando-o com o olhar, mas Bruno continua escorado no batente, o que me irrita profundamente.

Muito engraçado, Bruno, realmente! Por que não tirar mais um pouco de sarro da patética aqui? Se isso tem graça para você, ótimo, mas para mim, não tem graça nenhuma!

Justina, são onze horas da manhã. — Bruno reclamou, colocando a mão na testa. — Você deveria estar de ressaca, não enchendo o meu saco.

Eu estou de ressaca! — Atirei o livro para dentro do apartamento.

Talvez eu tenha arremessado com força demais, pois o livro voou por cima do ombro desnudo de Bruno e atingiu um abajur, jogando-o no chão e quebrando o objeto em vários pedaços. Ops! Bruno olhou para trás, com a boca entreaberta e depois, jogou os olhos gelados em cima de mim, de uma forma que a temperatura do corredor caiu dois graus, ficando mais frio. Mas eu já tinha feito e não ia voltar atrás.

Idiota. — Eu dei as costas e entrei no meu apartamento, para pegar Lorde Byron, que estava no meu sofá, novinho, raspando as unhas e se esticando. O telefone fixo começou a tocar de novo, mas eu não fui atender. — Ei! — Fui para perto do gato, para impedir que ele continuasse.

Percebi algo dentro da minha bolsa. Uma pontinha saliente, para fora. Algo que não deveria estar lá. Senti o meu corpo todo congelar e ignorei os toques do interfone, até que ele cessou. Caminhei até a mesa, mexi na bolsa e tirei de lá o livro novamente, encarando-o com muita surpresa.

Mas que diabos? — Eu nem conseguia entender como aquele livro tinha ido parar lá dentro e tinha certeza que alguma coisa muito bizarra estava acontecendo.

Meu coração acelera, dando batidas profundas e aumentando o fluxo de sangue no meu cérebro, fazendo com que eu pensasse mais depressa, mesmo assim, foi impossível chegar a uma conclusão lógica. Parecia que a realidade estava se quebrando, que presenciar o impossível, mudasse tudo na minha vida e dentro de mim.

Saio do apartamento mais uma vez, com o livro nas mãos, apontando para ele e meio sem reação, sem saber até o que dizer. Bruno, que estava esperando o gato, ainda encostado no batente, apenas cruza os braços, sério:

Se você quer que eu explique… O mínimo é me oferecer um café.

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