3

ULLY

            Anton não apareceu na minha janela nos três dias seguintes e, apesar de ter gostado um pouco da liberdade, me senti com um peso no peito porque acreditava que ele estava magoado com as minhas palavras.

            - Você tem visto o Anton? – minha mãe perguntou enquanto eu lavava a louça do jantar.

            - Não. – respondi tentando soar despreocupada.

            - Estranho ele não aparecer... – ela comentou distraída antes de ir para seu quarto.

            Foi a última gota para mim. Irritada, fui até meu quarto e passei pela janela. Se eu ia fazer mesmo isso, não queria ter que discutir o assunto com a minha mãe, com certeza ela iria dissecar o cada detalhe até o infinito.

            Andei pelos galhos grossos das árvores, saltando de uma para a outra, até chegar na janela do quarto dele. Parei por um instante, sem acreditar que eu realmente faria isso. Por que não deixar para lá?

            - Ully? – e ali estava ele.

            Anton apoiou as mãos na janela para me ver melhor entre as folhas, estava sem camisa e eu podia ver o contorno dos seus músculos. Sua expressão foi de surpresa para confusa em segundos.

            - Certo, vamos fazer isso. – murmurei me aproximando – Minha vez.

            Passei pela janela com tranquilidade e olhei ao redor. Seu quarto não era muito diferente do meu, uma cama no chão e um armário para as roupas, uma porta que devia levar para um banheiro.

            - O que você está fazendo aqui? – Anton cruzou os braços no peito.

            - Vim pedir desculpas. – disse antes que perdesse a coragem – Fui muito grossa com você.

            Ele não respondeu nada, a expressão fechada, apenas me olhando ali parada dento do seu quarto – onde eu nunca tinha estado antes. Talvez não acreditasse nas minhas desculpas, ou simplesmente tivesse se cansado das minhas palavras sempre ásperas.

            - Me desculpe. – pedi mais uma vez – Você tem razão, eu não sou fácil. E só percebi que sentia sua falta quando você não estava mais lá.

            Sua expressão suavizou, as mãos caíram para as laterais do corpo, e quase vi um sorriso surgindo nos lábios, antes que ele disfarçasse.

            - Eu sei que posso ser um pouco sufocante. – assumiu.

            - Eu agradeceria se fosse agisse menos como um pai. – sorri.

            - Eu não tenho idade para ser seu pai. – ele reclamou com a testa franzida – Só me preocupo com você. – acrescentou num tom mais leve.

            - Eu estava errada. Nós somos amigos. – finalmente falei.

            Era perturbador constatar, já que eu nunca gostava de estar errada, mas nós éramos realmente amigos. Com toda provocação e reclamação, sempre estávamos juntos e havia certa cumplicidade quando ele guardava meus segredos.

            Anton me abraçou tão repentinamente que prendi o ar. Nós nunca estivemos tão próximos, principalmente quando ele estava sem camiseta, mas não tive coragem de negar e passei os braços ao seu redor.

            - Fico feliz que tenha vindo. – ele se afastou um pouco para poder me olhar.

            - Tudo bem. – falei olhando para seu peito, sem coragem de erguer o rosto porque eu podia sentir sua respiração na minha pele.

            Finalmente me afastei sem que parecesse grosseria, e ele pegou uma camiseta preta em cima da cama antes de me olhar novamente. Parecia completamente feliz agora que tínhamos nos entendido.

            - Vamos? – me provocou com um sorriso.

            - Para onde?

            Ele gesticulou para a janela.

            - Mesmo? – me surpreendi.

            Como resposta ele mergulhou pela janela de costas e corri para acompanhar. Consegui vê-lo se pendurando em um galho, descendo gradativamente até o chão, e me apressei para não ficar para trás.

            Aterrissei na terra um segundo depois dele, e disparamos para dentro da mata fechada a toda a velocidade. Nossas risadas se misturaram ao vento e uma sensação de liberdade tão grande me alcançou que tive certeza que nunca seria suficiente viver ali, presa na copa das árvores quando todo mundo podia sair.

            Anton desacelerou quando chegamos na cidade, e eu parei ao seu lado pensando se só iríamos até ali. Nunca tínhamos feito isso, era a primeira vez que saímos juntos, e eu não sabia o que esperar de um cara que era sempre tão protetor.

            Para minha surpresa ele continuou andando pelas sombras até alcançar uma escada de incêndio de um prédio, comigo em seus calcanhares. Tudo era tão mais bonito lá do alto, Anton não devia ser imune a beleza noturna da cidade.

            Começamos a correr de prédio em prédio e, devo admitir, eu era boa com a velocidade, mas Anton era um artista. Seus saltos eram completamente sem medo, como mergulhos perfeitos no escuro e aterrissagens minimamente calculadas.

            - O que foi isso? – perguntei depois de quase uma hora, arfando – Como você escondeu isso de mim?

            Ele riu, deitado no telhado, e o acompanhei sem pensar.

            - Já fui um jovem despreocupado como você.

            - Você é incrível. – comentei.

            - Você acha? – sua voz estava séria.

            Virei a cabeça, e ele já me olhava intensamente.

            - O que você fez foi uma arte! – exclamei.

            Mais uma vez Anton riu, voltando a olhar para o céu, que estava repleto de estrelas.

            - Por que estamos aqui? – perguntei minutos depois.

            Não que eu reclamasse por termos saído, mas ele sempre tentava me fazer desistir de ir até a cidade. Por que agora estava agindo tão despreocupado? Era um novo lado que eu estava conhecendo, e gostando muito mais.

            - Você nunca me procurou antes. – sua resposta foi simples.

            - Nunca pensei que você tivesse um lado mais relaxado. - me sentei de pernas cruzadas.

            Ele riu mais uma vez, mas permaneceu onde estava, com um braço atras da cabeça feito travesseiro. Foi a primeira vez que eu o vi como um semelhante, e não como um adulto chato tentando me ditar regras.

            - Você nunca pensou em me chamar para suas escapadas. – ele se sentou.

            - Você sempre foi um defensor de regras severas. – provoquei com um meio sorriso.

            - Estando com você, eu poderia protegê-la. – seu sorriso era sincero.

            Balancei a cabeça, o lado protetor nunca desapareceria e eu sempre gostaria menos do que desse Anton meio rebelde e completamente livre. Talvez agora eu realmente conseguisse vê-lo como um verdadeiro amigo.

            - Talvez seja melhor voltarmos. – ele se levantou.

            - Mas está tão lindo aqui. – reclamei levantando também.

            - O segredo é não abusar demais, Ully. – já andava em direção ao parapeito do prédio.

            Mais uma vez ele mergulhou na escuridão e tive que correr para poder acompanhar. Se alguém me dissesse que Anton saltava de alturas assim eu jamais teria acreditado, não o cara que me seguia a noite e me fazia voltar para casa.

            - Vamos voltar pelo mesmo caminho que viemos. – ele me avisou.

            - Pela ponte é mais rápido.

            Uma sombra passou pelo seu rosto. Não era possível que ele acreditasse que eu iria me jogar no rio mais uma vez atrás de um suicida, era?

            - O que foi? – perguntei inocentemente.

            - Nada.

            Acabamos indo pelo caminho por onde cruzaríamos a ponte, e quando estávamos em cima do prédio que eu sabia que era o do garoto com cabelos borgonha, precisei de um nível muito grande de auto controle para não espiar na sua janela.

            Felizmente não havia som algum, então pude respirar aliviada quando meus pés alcançaram o chão. Anton, ao meu lado, parecia ainda mais aliviado por eu ter me comportado.

            - Essa noite foi incrível. – comentei momentos depois, quando estávamos começando a atravessar a ponte.

            - Foi. – sua resposta foi simples, mas deixava transparecer toda sua satisfação.

            Estar em cima da ponte mais uma vez me fazia pensar no jovem com mais força do que antes. Eu ainda podia sentir seu olhar em mim como se estivesse acontecendo naquele momento, tão intensamente que minha pele se arrepiou.

            Algo me atraiu e voltei meu olhar lá para baixo, a faixa de areia para onde eu o tinha arrastado. Havia um pequeno vulto parado lá, olhando diretamente na minha direção, e era por isso que eu estava toda arrepiada.

            - Não é possível. – Anton disse ao meu lado, a voz entre descrente e irritada.

            Por mais incrível que fosse, foi a sua voz que me fez parar em cima da ponte e colocar as mãos na grade fria. O coração batia tão acelerado que comecei a achar que lá de baixo o rapaz poderia me ouvir.

            - Ully, não faça isso. – ele pensou em tocar meu braço, mas recolheu a mão.

            - Não sei o que acontece, Anton. – minha voz parecia vir de longe.

            - Olhe para mim, Ully. Olhe para mim. – pediu insistentemente – Olhe para mim!

            Forcei meus olhos a desgrudarem dos do homem lá em baixo e foquei nos olhos escuros do meu amigo. Pensei que estariam irritados, até raivosos, mas eles estavam suplicantes.

            - Vamos embora. – suplicou.

            - Ele estava me esperando. – a frase saiu espontaneamente, mas era uma verdade incontestável, eu sentia isso com toda a força.

            - É perigoso. – argumentou em voz baixa – Eles são perigosos.

            - Como podem? – arrisquei mais uma olhada lá para baixo – Você vive entre eles todos os dias.

            - Eu faço meu trabalho e recebo meu dinheiro.

            Olhei para Anton mais uma vez, levemente confusa.

            - Não se engane, Ully, se soubessem o que eu sou... eu não voltaria para casa. – sua voz estava mais sombria do que eu já tinha escutado antes.

            Fiquei parada, sem saber o que fazer. Estava sendo chamada lá para baixo, mas sentia que Anton estava sendo sincero em suas palavras, mesmo que eu não entendesse. Como podia haver perigo naquele humano magro, de cabelos borgonha e olhos num tom tão suave?

            - Ully... – dessa vez Anton não teve medo de tomar meu braço – Por favor, é por causa deles que eu sou órfão.

            Isso me chamou a atenção de vez. Anton nunca falava sobre o que aconteceu com seus pais, e todas as vezes que vi alguém chegar perto desse assunto, ele se retirou. Eu sempre tive o bom senso de nunca fazer perguntas dolorosas.

            Deixei que ele me levasse pela ponte por mais que fosse doloroso decepcionar quem me esperava, e fiquei em silêncio até que estivéssemos seguros dentro da mata fechada.

            - Anton... – segurei seu braço – O que aconteceu?

            Ele parou no mesmo instante, olhando para o chão. Parecia reviver coisas que daria tudo para esquecer, mas eu não queria desistir de entender.

            - Ully... – finalmente ele se virou para mim – Há motivos para vivermos assim, escondidos e longe de todos.

            - E quais são? – insisti tentando soar como alguém que não desistiria.

            - Houve um tempo em que vivemos todos misturados. – seus olhos estavam brilhantes – Até perceberem o quanto éramos fortes, rápidos e resistentes. Famílias foram destruídas, assassinatos foram cometidos. Vai por mim, nem crianças escaparam.

            - Então os seus pais... – minha garganta estava seca.

            - Nós morávamos em um bairro na cidade. Já havia uma tensão no ar, tanto que sentimos necessidade de ficar uns próximos dos outros. – lágrimas brilharam nos seus olhos – Uma noite acordei com gritos, estavam invadindo as casas com armas e matando todos nós.

            - Anton! – exclamei levando as mãos à boca.

            - Vi meus pais morrem me protegendo, literalmente colocando seus corpos como escudos. Pulei a janela e encontrei outros sobreviventes.

            Meus olhos também estavam marejados. Como era possível que pessoas como aquele rapaz podiam ter feito uma coisa dessas?

            - Foi assim que vim parar aqui. – ele engoliu algumas vezes – É por isso que sou tão protetor. – suas mãos pousaram em meus ombros – Eu não suportaria perder você também.

            - Eu sinto muito. – falei com a voz embargada – Nunca imaginei que você tivesse passado por algo assim.

            - Não quero perder você, Ully. – uma de suas mãos tocou minha nuca com uma certa força – Não quero te ver morrer.

            - Não vai. – prometi balançando a cabeça repetidas vezes.

            Havia um brilho diferente em seus olhos e uma intensidade em seu rosto, coisas que eu nunca tinha visto ali antes. Por um instante ele se aproximou de mim, mas depois me soltou bruscamente e olhou para os lados.

            - Vamos para casa. – sussurrou virando de costas.

            Voltamos lentamente pela mata e, olhando as costas de Anton se movendo suavemente, me perguntei o que ele realmente tinha passado na vida e como conseguia estar todos os dias entre pessoas que destruíram a sua família.

            Andamos entre os galhos e entrei pela minha janela enquanto ele seguia para sua casa. Ainda era cedo, eu podia ouvir minha mãe se movimentando em seu quarto sem suspeitar que eu tinha saído por algumas horas.

            Me joguei na cama, de barriga para cima, mas estava completamente desperta. Parte de mim não consegui acreditar que aquele jovem, que parecia tão sofrido, pudesse ser capaz de nos matar.

            Impulsivamente atravessei a janela e fui mais uma vez até a janela de Anton. Estava tudo escuro e apoiei as mãos para olhar lá para dentro, mas o quarto estava vazio, então simplesmente pulei lá para dentro.

            Apurei os ouvidos, esperando descobrir em qual cômodo ele estava, mas só havia o som suave do vento e o movimento das folhas. Será que ele não tinha vindo para casa?

            Passei pela porta que levava até a sala, onde estava um grande e macio sofá, e vi Anton sentado num galho de árvore, usando apenas uma calça preta, através da janela aberta e das cortinas que balançavam suavemente. Deveria estar realmente distraído para não me ouvir.

            Andei lentamente e, apenas quando eu estava prestes a encostar as mãos na janela, escutei um som que fez meu coração se apertar. Ele estava chorando, fazendo o possível para ser silencioso, mas as costas balançavam com a intensidade das lágrimas que estavam saindo.

            Então era assim que Anton era quando ninguém estava olhando? Será que ele tinha alguém para conversar sobre as coisas horríveis que tinha passado? Em algum momento alguém passava aqui, ou o único consolo que ele tinha era ir até aminha casa?

            Me arrependi por todos os momentos em que fui rude, por todas as vezes que o mandei ir embora. Como eu não tinha percebido o que se passava?

            - Anton? – chamei.

            Ele se colocou de pé em um pulo, virando na minha direção. Pareceu realmente confuso por me ver ali, pela segunda vez na vida e sem ser convidada, e depois constrangido por ter sido pego em um momento de vulnerabilidade.

            Com um salto gracioso ele atravessou a janela e parou na minha frente, o rosto molhado e os olhos vermelhos. Me olhou de cima para baixo com dureza, e mordeu a boca, mas seu queixo tremia.

            Passei meus braços ao seu redor e apoiei a cabeça em seu peito nu. Ele permaneceu parado por alguns instantes, completamente surpreso pelo meu contato físico espontâneo, depois passou os braços ao meu redor com força.

            Sua pele era quente e seu coração batia cada vez mais acelerado contra o meu ouvido. Era confortável estar ali, muito mais do que eu imaginava que seria, e era bom ter os braços de outra pessoa ao meu redor.

            - Não vai embora. – ele sussurrou com a voz tremida.

            - Não. – prometi imediatamente.

            Num movimento ágil ele me tirou do chão e, com o susto, passei as pernas ao seu redor. Como se eu não pesasse nada, ele andou comigo até o quarto e me desceu suavemente até o chão mais uma vez.

            - A noite toda? – sua testa estava apoiada na minha cabeça.

            - A noite toda. – repeti com convecção.

            Nos deitamos lado a lado no colchão e não conversamos sobre nada. As lágrimas dele desceram por um longo tempo e o único consolo que dei foi segurar a sua mão, pois não havia nada que eu pudesse dizer.

            Com o tempo o sono nos venceu, não sei dizer quem fechou os olhos primeiro, mas quando os abri novamente já era dia. Só que eu estava com a cabeça apoiada no peito de Anton e ele tinha uma das mãos ao meu redor.

            A mudança da minha respiração já foi suficiente para ele acordar também e, quando percebeu que estávamos tão perto, rapidamente se sentou com o rosto levemente vermelho.

            - Minha mãe... – gaguejei levantando.

            - Sua mãe! – ele exclamou preocupado.

            Anton pegou uma camiseta rapidamente e nós saímos pela janela do seu quarto, quanto menos gente percebesse que eu tinha passado a noite ali, melhor seria. Mas eu quase não tinha esperanças de que minha mãe não tivesse percebido.

            Entramos pela janela do meu quarto, que parecia intocado, mas assim que respiramos aliviados a porta se abriu e ela surgiu de braços cruzados.

            - É culpa minha. – Anton se adiantou.

            - Não, eu que fui até sua casa. – protestei.

            Para nossa surpresa, Dana riu e ergueu uma das mãos.

            - Até que enfim aconteceu. – falou e saiu.

            Ficamos parados, completamente embasbacados, depois nos olhamos sem jeito.

            - Melhor eu ir. – ele apontou para a janela.

            - É, é... – concordei.

            Assim que Anton sumiu, saí do quarto e fui até a cozinha, de onde vinha um delicioso aroma de café da manhã. Minha mãe estava completamente relaxada, muito longe da raiva que pensei que estaria.

            - Anton não vai comer? – parecia até mesmo decepcionada por me ver sozinha ali.

            - Mãe, o que está acontecendo? – consegui perguntar enquanto ela colocava as coisas na mesa.

            - Ully, eu estava esperando há algum tempo que vocês se entendessem. – sorriu – Toda a implicância, as palavras de provocação... – ela deu uma risadinha.

            - Você não está supondo que nós... ? – fiquei completamente surpresa com a sua ideia.

            - Não estão juntos? – franziu o cenho.

            - É óbvio que não. – dei uma risada – Nós só... – pensei que Anton não gostaria que o nosso momento fosse espalhado para outras pessoas – conversamos demais e acabamos pegando no sono.

            - Ah... – Dana realmente parecia decepcionada, mas um pouco confusa.

            Me sentei para comer com um estranho incômodo. Será que havia alguma coisa que eu não estava vendo?

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