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ULLY

            - Vamos, Ully... – acordei com batidas na porta.

            Abri os olhos, que estavam ardendo, e vi que o sol já entrava pela janela. Ainda era bem cedo, eu não devia ter dormido muito.

            - Ully! – minha mãe bateu mais uma vez e abriu.

            - Já acordei. – respondi tentando soar o mais desperta possível.

            - Ótimo. – ela fechou a porta novamente.

            Me levantei e espreguicei. Estava terrivelmente cansada, o corpo parecia pesar uma tonelada. A madrugada anterior parecia ter acontecido a milhares de anos, ou podia ter sido apenas um sonho.

            Eu realmente tinha me jogado num rio revolto para salvar um completo estranho?

            - Pensando no que aprontou? – a cabeça de Anton surgiu pela janela.

            - Já falei para você parar com essa mania. – reclamei – Eu podia estar sem roupa.

            - E aí a janela estaria fechada. – ele pulou a janela sem cerimônia.

            Sai do quarto com uma pontadinha de irritação. Esse cara parecia que estava em todo lugar o tempo todo, como se me vigiasse, e eu não sabia se era mais difícil me desvencilhar dele ou da minha mãe.

            - Temos companhia para o café da manhã. – anunciei entrando na cozinha.

            - Oi, Anton. – minha mãe não precisou nem se virar para saber quem seria inconveniente o suficiente para aparecer tão cedo.

            - Bom dia, Dana. – ele puxou uma cadeira do outro lado da mesa.

            Fiz cara feia para ele, que sorriu completamente confortável ali.

            - Fiz ovos para todo mundo. – Dana se virou com um prato com três omeletes grandes.

            Por um momento apenas comemos em silêncio, o que era extremamente agradável para o meu cansaço matinal, mas então minha mãe resolveu romper tudo com ordens.

            - Preciso que vá até a cidade hoje, Ully. Precisamos de alguns mantimentos.

            Grunhi uma resposta enquanto mastigava. Eu gostava de ir até a cidade durante o dia, mas odiava cumprir ordens.

            - Anton, você poderia ajudar a arrumar um telhado hoje?

            - Claro, eu adoraria. – ele sorriu bajulador.

            - Vou tomar banho. – ela se levantou e saiu.

            Bufei para Anton, mas continuei mastigando porque estava muito bom e eu estava com muita fome.

            - Ela gosta de mim. – ele provocou.

            - Porque você faz tudo o que ela quer. – dei de ombros.

            - Vou com você até a cidade. – Anton anunciou num tom protetor.

            - Mas não vai mesmo. – sussurrei rindo, completamente incrédula.

            - Ully... – seu tom era reprovador.

            - Não. – protestei mais uma vez – Essa chance só acontece uma vez no mês, as vezes nem isso, e eu não quero você agindo como meu pai ao meu...

            - Eu não tenho idade para ser seu pai! – protestou.

            - Então não haja como se fosse. – rebati me levantando.

            Tranquei a porta do quarto e fechei a janela, mas Anton não pareceu tentar vir atrás de mim dessa vez. Então abri meu guarda-roupas e escolhi uma calça jeans clara e uma camiseta preta antes de entrar no banheiro.

            Meu banheiro era apertado, mas tinha uma vista legal do topo das árvores porque o teto alto era de vidro. Conseguia ficar ainda mais bonito quando chovia, principalmente à noite, e muitas vezes eu fiquei ali deitada no chão vendo o céu noturno.

            Na esperança de Anton ter saído, abri a porta do quarto animada com a ida até o mercado, mas ele estava sentado no sofá da sala e se levantou assim que me vi. Fechei a cara e o ignorei enquanto abria a porta no chão para descer.

            Aterrissei no chão da floresta e segui meu caminho sem olhar para trás, mas mesmo que eu não pudesse ouvir seus passos sabia que ele estava logo atrás de mim. Ele tinha essa mania paterna que me tirava do sério.

            - Você tem um telhado para consertar. – comentei.

            - Isso pode esperar. – ele surgiu ao meu lado.

            - Por que, diabos, você não desgruda? – parei, irritada e cruzei os braços no peito.

            - Acho que você precisa de supervisão depois de ontem a noite. – seus olhos escuros estavam estreitos.

            - Ontem a noite foi a milhões de anos. – o encarei tão séria quanto.

            Anton riu, balançando a cabeça, mas não desistiu de me acompanhar e eu não soube o que fazer para me livrar dele. Sendo assim caminhamos, dessa vez normalmente pelas calçadas, lado a lado e em um silêncio pesado.

            Havia algumas pessoas na rua, mas nós não chamávamos qualquer atenção. Durante o dia podíamos passar completamente despercebidos se nós mantivéssemos em atividades normais.

            Passei pela porta do mercado com Anton em meus calcanhares e comecei a pegar algumas coisas que eu sabia que Dana aprovaria em uma cesta. Para minha alegria, quando percebeu que eu não estava com nenhum plano absurdo, ele se afastou para olhar algumas prateleiras no fundo.

            Respirando aliviada me virei para seguir adiante, mas a passagem estava bloqueada por um corpo que eu não esperava ver de novo. O jovem da noite passada estava parado no meio do corredor, os braços soltos ao lado do corpo, o rosto pálido e os olhos arregalados me encarando sem disfarçar.

            Abri a boca para pedir para ele sair da minha frente, mas não saiu som algum. Mesmo com ele completamente calado eu sentia uma atração estranha, algo que eu não podia entender e que nunca tinha sentido.

            - É você.

            Ele se aproximou tanto de mim que pude ver que seus olhos eram de um tom de marrom claro, quase verde. Não era muito alto, mas ainda assim eu precisava erguer um pouco a cabeça para poder encará-lo.

            Meu coração disparou e minha boca secou, mas acho que tinha pouca relação com ele se lembrar de mim e mais com a proximidade com ele completamente consciente.

            - Não sei do que você está falando. – consegui dizer, mas de uma maneira tão ridícula que era óbvio que era uma mentira.

            - Pensei que era uma ilusão. – ele prosseguiu sem se abalar, um pequeno sorriso surgindo em seus lábios.

            Não tentei dizer mais nada, mas eu precisava me afastar dali. Precisava me afastar o quanto antes, antes que alguém nos notasse parados no corredor.

            - Eu quase morri noite passada. – parecia que era a primeira vez que ele admitia para si mesmo.

            - Fico feliz que não tenha. – respondi tentando soar casual.

            - A ambulância disse que não tinha ninguém comigo... – dessa vez a frase parecia mais para si mesmo.

            - Você está bem? – cedi finalmente.

            - Por sua causa. Acabei de sair do hospital. – parecia tão casual que soou como se ele tivesse ido apenas passear lá.

            Só então percebi que ele ainda usava as roupas da noite anterior. Eu devia ter reparado antes, devia estar atenta. A maior regra de andar por aí era sempre estar alerta.

            - Me diz o seu nome. – parecia quase uma suplica.

            - O nome dela não te diz respeito. – a voz de Anton surgiu atrás de mim e logo senti sua mão passar pelos meus ombros.

            Abaixei a cabeça constrangida pela forma que ele tinha escolhido interromper, mas logo depois voltei a olhar o rapaz porque era impossível ignorar a atração. Seu olhar tinha mudado para uma completa decepção enquanto intercalava entre Anton e eu.

            Deixei que Anton me guiasse para longe como se meu corpo não me pertencesse. Ousei olhar apenas uma vez para trás, mas o rapaz estava passando pela porta do mercado rapidamente.

            - Não acredito no que você fez... – sussurrei enquanto Anton colocava nossas coisas no balcão.

            - E eu não acredito no que você estava fazendo. – ele retrucou com um sussurro raivoso.

            Pouco depois saímos do mercado com as sacolas e involuntariamente meus olhos varreram a rua em busca do jovem. Obviamente ele não estaria mais por perto, mas foi impossível de resistir ao impulso.

            - Ele não está aqui. – Anton disse irritado.

            - Eu não fiz nada. – protestei.

            - Como você fez para ele vir até aqui? – sua voz era irritada.

            - Eu não fiz nada! – exclamei exasperada.

            Anton soltou as sacolas e respirou fundo, como se buscasse forças para lidar com uma pessoa tão complicada, e eu apenas fiquei parada o encarando com uma expressão impassível.

            - Você quer dizer que foi uma completa coincidência?

            - Você estava lá. Eu não conversei com ele. – eu estava exausta.

            Ele olhou ao redor, mas as poucas pessoas que passavam pela rua nos ignoravam completamente, depois pegou as sacolas e recomeçou a caminhada. O segui em silêncio, sem vontade nenhuma de continuar uma discussão tão infrutífera.

            Quando chegamos novamente em casa minha mãe não estava mais lá, e Anton subiu comigo mais uma vez. Eu estava louca para me livrar dele, mas estava sem forças para protestar.

            - Ully... – ele se sentou na mesa, pela primeira vez parecendo cansado – Eu só quero proteger você.

            Algo em sua expressão de desamparo, sem toda a raiva e as palavras irritadas, fez minha irritação sumir como mágica. Mesmo assim eu não queria que ele imaginasse que nos tornaríamos amigos íntimos, então eu precisava ser neutra.

            - Sei que ontem ultrapassei limites, eu já assumi isso. – me sentei de frente com ele e apoiei as mãos na mesa – Hoje foi totalmente inesperado, eu juro.

            - Acredito em você.

            Ele segurou minhas mãos com as mãos dele, o que era realmente muito estranho, então as puxei lentamente para fora da mesa. Parecendo levemente constrangido, ele me imitou e se colocou de pé na mesma hora.

            - Bom, eu vou lá ajudar com o telhado de uma vez. – Anton tentou sorrir, mas não saiu muito direito – Não posso me atrasar para o trabalho depois. – e saiu pela janela da sala sem cerimônia.

            - Você pode usar a porta, sabe? – gritei para ele, mas já estava sumindo nas copas das árvores.

            Fiquei parada olhando pela janela. Anton não era uma má pessoa, era um cara bem confiável e sempre estava pronto para ajudar quem precisasse, eu só não gostava da forma como ele sempre pairava atrás de mim e me tratava como uma criança.

            Ele trabalhava na cidade há algum tempo, que era uma coisa que eu desejava e minha mãe não queria nem ouvir comentar sobre, mas todos os dias aparecia em casa e conversava com nós duas – bem mais com ela porque eu o ignorava na maioria das vezes.

            De toda forma, era injusto que ele fosse visto como adulto apenas porque seus pais tinham morrido cedo. Claro que acredito que Anton tenha amadurecido mais rápido por ter ficado sozinho, mas isso não fez dele um adulto. Aos dezoito anos ele já trabalhava na cidade sem que ninguém ficasse seguindo-o e dando inúmeras recomendações, e isso era dois anos a menos do que eu tinha.

            Anton tinha perdido os pais aos quatorze anos, como eu era apenas uma menina de nove anos na época não me recordo como foi que aconteceu, mas depois disso todas as pessoas passaram a cuidar dele. Dana foi a mais presente, deixando-o dormir em casa durante muito tempo até que estivesse pronto para ficar sozinho em sua própria casa.

            Passamos vários dias sozinhos, enquanto minha mãe trabalhava, mas nunca fomos muito próximos. Essa obsessão por ficar me vigiando tinha surgido há pouco tempo, e eu esperava que fosse apenas uma fase idiota.

            Pouco depois fui até a casa de Violetta, uma idosa que morava em uma árvore próxima da nossa, para ajudá-la com algumas coisas da casa. Era o que faziam as crianças e adolescentes enquanto os adultos iam até a cidade trabalhar, e eu já estava começando a ficar farta dessas atividades.

            Durantes as entediantes tarefas de arrumar a casa e fazer algumas comidas, minha mente viajou para o garoto de cabelos borgonha. Como ele tinha se sentido quando viu Anton passar os braços pelos meus ombros? Parecia tão decepcionado... Eu sabia que era errado conversar com ele, mas não parava de imaginar qual seria seu nome e sobre o que poderíamos ter feito se tivéssemos saído do mercado juntos.

            Isso era ridículo, me repreendi imediatamente. Nós não devíamos ter contatos profundos com eles, era proibido e perigoso. As pessoas normais não sabiam conviver conosco, histórias bizarras do passado comprovavam isso, e nada poderia ter terminado bem.

            Mesmo assim eu não estava arrependida de ter salvado sua vida. Teria feito isso por qualquer um que tentasse morrer na minha frente, minha consciência não me daria paz um segundo se eu me omitisse de algo tão óbvio.

            - Já está bom, querida. – Violetta me disse numa voz meio desesperada.

            Meu purê estava quase virando uma sopa de batatas.

            - Ah, sim. Desculpe. – respondi envergonhada.

            Aquela tarde foi a mais longa de todas, apenas porque meus pensamentos insistiam em permanecer longe de onde eu estava, e eu precisava me chamar de volta toda hora para não destruir a casa da senhorinha.

            Finalmente, quando começou a escurecer, eu comecei a voltar para minha própria casa, onde não seria perigoso fantasiar o que eu quisesse sem atrapalhar ninguém. Ainda assim eu precisava me policiar para não imaginar coisas impossíveis.

            - Como você está? – a voz de Anton surgiu pela janela do meu quarto.

            Tomei um susto, e logo em seguida fiquei irritada. Quando é que ele pararia com isso?

            - Quando é que você vai perder essa mania? – reclamei.

            - Tudo bem por aqui hoje? – ele passou para dentro sem parecer ouvir minha reclamação.

            - Como sempre. – respondi ranzinza – Sabe, acho que você tem a ilusão de que somos amigos. – cruzei os braços.

            - Nós somos. – ele respondeu estreitando os olhos – Passamos quase todo tempo livre juntos.

            - Porque você não dá espaço. – revirei os olhos.

            Ele suspirou e apenas me olhou por alguns instantes, como se estivesse me avaliando.

            - Às vezes você é tão difícil. – sussurrou mais para si mesmo do que para mim.

            Uma pontada incomoda de remorso me fez vacilar. Ele era realmente uma boa pessoa, mas mesmo assim isso não queria dizer que podia se impor o tempo todo sem respeitar a minha vontade.

            - E você sabe ser inconveniente. – rebati com uma voz mais branda.

            - Certo... – ele abaixou os olhos dos meus e voltou para a janela.

            - Sabe, você não precisa ir já que está aqui. – falei sem graça com sua expressão magoada.

            Anton hesitou por um momento, mas depois jogou as pernas para o lado de fora e sumiu lentamente entre as folhas sem olhar para trás.

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