EPÍGRAFE
“Não poucas vezes esbarramos com o nosso destino pelos caminhos que escolhemos para fugir dele”.
Jean de La Fontaine
PRÓLOGO
Jean de La Fontaine, poeta francês do século 17, certa vez escreveu que é possível esbarrarmos com a vida que nos foi destinada justamente quando tentamos fugir dela.
Sua sabedoria me parece ser apenas isso: uma bonita frase de efeito, cujo sentido não é exatamente aplicável. Se uma pessoa decide tomar um caminho diverso do esperado para que seu futuro seja diferente, ele será diferente.
Requer apenas uma decisão, seja ela a mais excelente ou a pior de todas e, trabalho duro. Temos livre arbítrio para isso. Ponto final. Não tem discussão, certo?
Errado.
Completamente errado.
Eu acreditava com todas as minhas forças que cada um é dono do seu próprio destino e sabe onde o fluxo de sua vida deve desaguar. Essa ideia surgiu aos meus catorze anos de idade, quando ouvi uma pequena conversa entre minha mãe e tias, sobre seus arrependimentos.
Em um pequeno sítio no interior de São Paulo, a vida sempre passou devagar e os sonhos se limitavam a apenas seguir vivendo. Elas comentavam sobre minha bisavó, descendente de imigrantes portugueses que foram tentar a vida no Brasil, mas não deu muito certo.
Minha bisa sonhava em ser freira, mas seus pais não viam sentido, quando a família poderia ganhar mais respeito a casando com meu avô, filho de um comendador da região, falido, porém respeitável.
Em vez de servir a Deus, como sonhava, serviu ao seu marido e filhos, todos homens, os quais jamais a deixaram decidir a via mais feliz para seu futuro.
Minha avó se arrependia de não ter sido professora, pois meu avô era vendedor e oferecia seus produtos de porta em porta. Dependia da ajuda dela para que pudessem dar conta e quando os filhos chegaram, ela considerou que era tarde demais para se formar.
Minha tia Ana sempre falava sobre como o mundo seria mais doce se conhecesse seus bolos, mas que era uma pena não ter tido a oportunidade de vendê-los. Seus dias mais felizes eram na festa da igreja, quando ela exibia seu talento.
E mamãe.
Ela era a que mais me partia o coração, pois eu me recordava dos seus pequenos sonhos em escrever. Ela sempre quis trabalhar com livros, fosse em uma biblioteca, como escritora ou até mesmo no jornal local como digitadora.
Mas se casou cedo demais, antes que ficasse “para titia” e a natureza mandona do meu pai não permitiu. Por isso, ela foi voraz quando chegou a minha vez.
Com dificuldade e apoio da minha mãe, consegui começar a cursar faculdade, trabalhando no centro da cidade para pagar as mensalidades.
Meus pais tiveram a briga mais feia que já vi quando isso aconteceu, mas nós duas não abrimos mão. Meu pai dizia que era perigoso estudar de noite, que nenhuma mulher da família nunca precisou e que eu logo arrumaria um bom casamento. Sei lá mais quantas coisas ele argumentou.
Ele era uma boa pessoa, mas a falta de conhecimento o limitou para o mundo e quase me levou junto.
A cada momento da minha vida, eu analisava as mulheres que vieram antes de mim e via como todas elas eram meras espectadoras da própria vida. Eu não queria ser mais uma Assis que não conseguiu.
Que não se libertou e seguiu rumo aos próprios sonhos. E foi com isso em mente que eu passei boa parte da vida acreditando que Jean de La Fontaine não sabia do que estava falando.
Sempre achei que o destino fosse obra das nossas decisões, daquilo que almejamos e o quanto trabalhamos para isso. Afastava o acaso e a sorte como se fossem doenças prontas para contaminar meu plano bem traçado.
Nunca quis a sorte das mulheres Assis.
Nunca acreditei na mitologia de que nossa vida é um fio traçado pela providência divina, pelas leis naturais ou por algo maior do que qualquer um de nós.
Mas no fim, Jean de La Fontaine sempre teve razão.
Sempre vamos esbarrar com o nosso destino, mesmo que estejamos constantemente fugindo dele. Eu fugi por trinta anos da minha vida, certa de que poderia persistir até o fim, enfrentando os obstáculos e as dificuldades, mas jamais saindo do curso eu planejei.
No entanto, é impossível fugir para sempre e a minha fuga me levou ao exato ponto no qual eu jamais sonhei em estar.
Nesse momento exato, diante dos olhinhos verdes da minha pequena Rebeca, eu me desfaço de todas as certezas que eu sempre tive. Talvez, apenas talvez, os gregos tivessem razão e o destino fosse um fio tecido ao bel prazer de seu tecelão, a quem chamo destino.
O acaso abre suas portas e me convida a conhecer o caminho desconhecido e não planejado, com encruzilhadas e curvas que ora tropeçam com outros fios alheios. E é nesse ponto que descubro que minha vida apenas está começando, após ficar tanto tempo dormente à fluidez do destino e a beleza do inesperado.
Catarina Minha cabeça explode após mais uma reunião infrutífera sobre como salvar a empresa na qual trabalho da completa falência. A água quente desce pelo meu corpo, relaxando os músculos, mas não faz milagre. Milagre seria ser rica ou pelo menos chutar meu chefe para bem longe da minha vida. Mas isso implicaria em eu acreditar em coisas extraordinárias capazes de dirigir nossas vidas, a despeito de nós mesmos. E eu não acredito. Não que eu não tenha fé alguma, mas prefiro ser cética no que concerne ao que eu quero ou não fazer com a minha vida. Minha família sempre viu isso como medo. Medo de que no fim tudo desse errado e, para remediá-lo, eu estava sempre pronta a dar um empurrãozinho no destino. Para mim se trata de não esperar as coisas acontecerem, sob pena de estagnar a vida por falta de ação. E meu ponto estava certo, quando não fui mais uma mulher da minha família a nascer, crescer e viver eternamente
Arthur Sinto que mesmo fazendo tudo certo, a única coisa que não tenho na minha vida são certezas. Ter uma família abastada, me tornar CEO da maior companhia de engenharia civil do país e ser uma pessoa compreensiva na vida pessoal e justa na profissional em nada me ajudaram a ser quem eu sempre sonhei me tornar. A desestruturação da minha família, facilitada pelo desmoronar do meu pai, pela rebeldia do meu irmão e pela ausência da minha irmã, tornaram minha jornada em nos manter juntos, um borrão de imperfeições. Sozinho eu não consigo. Já não consigo sequer me encontrar, muito menos ser o ponto de convergência entre todos nós. Três anos atrás meu pai e irmão tiveram a maior briga que eu já ouvi e, mesmo depois que ele desapareceu, Henrique Ferraço não ousou dizer uma única palavra. É como se meu irmão Guilherme jamais tivesse existido e isso é assustador. Minha avó Odeth e eu colocamos um investigador em seu e
CatarinaTenho a sensação de que minha alma saiu do corpo e só agora parece voltar. O estranho predador e eu decidimos não trocar nomes e nos deixamos ser apenas nós dois ali, em um mundinho único de um quarto de hotel.Confesso que do quarto eu pouco me recordo. Mas dele? Cada detalhe. Cada mísero detalhe até eu amanhecer sozinha naquele lugar, com um bilhete ao lado da almofada.Poderia ter me sentido ofendida, mas convenhamos, se trata de algo completamente casual e eu nunca mais o verei novamente. Ele me pedia desculpas, pois teve uma emergência e terminou de uma forma tão doce, que mais alguns minutos com ele eu sequer me reconheceria.“Nunca vou esquecer seus belos olhos, cigana”.– Nem eu esquecerei você, solitário predador. – Guardo o pequeno papel dentro da minha agenda. Sim, eu uso agendas de papel, por achar mais prático. E é em algum lugar da minha confusa organização.Eu poderia tentar classi
Arthur O mal de se criar uma expectativa muito alta sobre uma questão é que a frustração nos leva a uma queda brusca. E a minha foi cruel. O que parecia ser incrível, logo se tornou um pesadelo, quando o investigador me informou que Guilherme sofreu um acidente. Ele estava internado em um hospital estadual muito longe de casa, como esteve nos últimos anos. Se não fosse seu acidente, provavelmente eu jamais o teria encontrado e agora eu preferia a ignorância. Eu me mantive distante tempo demais, chegando tarde na tentativa de nos reunir. A culpa me alcança com força todos os dias, mesmo sabendo que existem coisas que fogem ao nosso controle. Eu aceito o que o destino me reserva e apenas luto para sobreviver às consequências. Mas o destino tinha que ser tão cruel com o Gui? A viagem foi longa e cansativa e chegamos ao hospital horas após nossa partida, ao fim do dia. O céu ainda estava escuro e a madrugada silenci
Dois anos depoisCatarinaA manhã está um caos.Minha vontade real e sincera é me sentar no cantinho da minha cama, abraçar minhas pernas e chorar. Seria simples e tiraria do meu peito esse peso imenso que mora em mim há meses.Mas não posso. A pequena empresa de arquitetura na qual trabalho desde que me formei na faculdade e me aceitou sem qualquer experiência profissional, está mal das pernas há dois anos e meio.Conseguimos segurar as pontas por um tempo, peguei mais projetos do que poderia suportar e fizemos cortes na folha de pagamento. Alguns foram demitidos e outros, como eu, aceitaram reduzir seus próprios salários.Minhas finanças pessoais, portanto, estão igualmente na lama e volto ao meu pensamento inicial sobre o caos.A situação chegou a esse ponto, nã
Catarina– Catarina. – Raphael Mendes Cretino da Silva Sauro me chama sem ao menos dar bom dia. – Chame todos para reunião agora.– Bom dia, Doutor Raphael. Estaremos lá. – Alfineto demonstrando educação, enquanto a forma de tratamento soa amarga da minha mente. Doutor. Até parece.Logo, todos os Doutores Chauvinistas estão sentados em seus lugares e assim que assumo o meu lugar, Raphael aparece com uma animação assustadora.Sabe os vilões das animações infantis que vez e outra soltam aquela gargalhada maldosa quando consegue vencer uma batalha? É essa a cena que se cria diante dos meus olhos, faltando apenas o cetro do mal e os raios lançados sobre nós.Credo!– Bom dia, Senhores. – Agora se lembrou de ser educado. – Como sabem, estamo
Arthur A lembrança daquela noite, dois anos atrás, ainda queima na minha memória com tantos detalhes, que poderia revivê-la mil vezes se eu quisesse. E é o que faço, enquanto sigo estacionado em uma rua de um bairro em um local oposto ao meu apartamento, esperando ver uma nota de esperança. Faz uns dias desde que o investigador descobriu onde minha sobrinha está. Demoramos meses para conseguir qualquer pista, pois aparentemente, meu irmão não a registrou ou enviou o suposto e-mail que escreveu. Mas agora sabemos onde Rebeca está, depois que uma mulher me procurou querendo dinheiro em troca de informação há uma semana. Ela era estranha e parecia estar assustada, mas não hesitei e aceitei, pois sua informação se confirmou. Ela cobrou um preço alto e me ofereceu apenas um endereço, antes de desaparecer completamente. A pista dela foi certeira. Minha sobrinha Rebeca está vivendo nesse prédio. As fotografias
Catarina O fim de semana passou como um sopro, que eu sequer pude aproveitar decentemente. Choveu absurdamente e Beca passou bastante tempo de mau humor, já que nossos sagrados passeios restaram apenas no nosso mundo da imaginação. Uma coisa sobre crianças de quatro anos que ninguém me avisou é sobre a fonte inesgotável de energia em que consistem. Inventei tudo o que foi possível e meu auge foi o nosso acampamento na minha pequena sala. Uma barraca feita de cobertas de ursinhos, pisca-pisca que encontrei perdido do natal, almofadas em um número que eu nem lembrava ter e desenho animado. Era uma constante infinita de musiquinhas infantis que a faziam dançar, saltitar e cantar na sua língua infantil, que às vezes, é impossível de compreender. Quando ela se cansava, deitava em meu colo e segurava meu queixo, um costume que não sei se ela já tinha antes de chegar para mim. Nesse momento, ela adormecia e eu ganhava o direito de co