Catarina
Tenho a sensação de que minha alma saiu do corpo e só agora parece voltar. O estranho predador e eu decidimos não trocar nomes e nos deixamos ser apenas nós dois ali, em um mundinho único de um quarto de hotel.
Confesso que do quarto eu pouco me recordo. Mas dele? Cada detalhe. Cada mísero detalhe até eu amanhecer sozinha naquele lugar, com um bilhete ao lado da almofada.
Poderia ter me sentido ofendida, mas convenhamos, se trata de algo completamente casual e eu nunca mais o verei novamente. Ele me pedia desculpas, pois teve uma emergência e terminou de uma forma tão doce, que mais alguns minutos com ele eu sequer me reconheceria.
“Nunca vou esquecer seus belos olhos, cigana”.
– Nem eu esquecerei você, solitário predador. – Guardo o pequeno papel dentro da minha agenda. Sim, eu uso agendas de papel, por achar mais prático. E é em algum lugar da minha confusa organização.
Eu poderia tentar classificar essa noite como uma das melhores que eu já tive, pois o estranho fez questão de me fazer conhecer o Olimpo e cada poder condizente a um deus grego. Mas isso tornaria todas as anteriores tão desvalorizadas que poupo as pobrezinhas.
Afundando a vontade de que um repeteco seria mais do que bem-vindo, saio de forma digna do hotel direto para minha casa, avisando a Camila que eu estou bem.
Ao chegar, quase com o nascer do sol, coloco uma camisa bem larga e me jogo na cama em um sono profundo e digno de quem começou bem o fim de semana.
Mas minha mente parece ser logo puxada para longe da inconsciência pela campainha que soa estridente. Levanto no susto, a cabeça sem muita coerência, mas logo compreendo onde estou e que preciso me esforçar para atender a porta.
A porta? Seu Agnaldo liberou alguém para subir sem minha autorização?
Receosa, vou à área de serviço e pego uma vassoura. Ideia fantástica, eu sei. Começo a me mover silenciosa pelo corredor, vencendo a leve tontura e alcanço a sala.
Como eu queria ter um olho mágico nesse momento, meu Deus! Não instalamos por falta de tempo e agora pago o preço. A abro de supetão, pronta para avançar, quando me dou conta da situação estranha à minha entrada.
Uma moça baixinha me sorri, como se quisesse me vender um produto. Juro, parece aquelas vendedoras de cosméticos que estão encalhados e ela precisa urgentemente se livrar para não ter prejuízo.
Está com uma calça jeans básica, cabelos soltos e um boné, que se cair um pouco mais, cobre seu rosto.
Ela não tem cosméticos e, por um minuto penso que preferia comprar centenas deles a cogitar o que ela faria ali. Em seu colo, uma menina sonolenta e uma bolsa infantil disputam suas forças, ambas parecendo querer levá-la ao chão de tão pesadas.
– Bom dia. – Digo sem saber como agir.
– Catarina Assis?
– Eu mesma. – Ela sabe meu nome e isso não me deixa tranquila. É tipo empresa de cobrança que aparece nos momentos mais inoportunos com todos os seus dados. – Quem é você?
– Eu era amiga da Roberta. – Ela diz de forma atropelada, como se estivesse com pressa. – E ela deixou a Rebeca para você.
– Rebeca? – A olho como se seus cabelos fossem de medusa e eu precisasse sair correndo urgentemente.
E eu estava certa.
– Sua sobrinha. – Ela praticamente joga a menina.
– É o que? – Eu realmente queria estar mais sóbria agora para compreender as ações da mulher que coloca a criança no meu colo e segue pelo corredor, sem olhar para trás.
Como saindo de um transe e com a criança um pouco desajeitada em meu colo, corro tentando alcançá-la, mas a porta do elevador já fechou. A menina segue adormecida e decido que correr de camisa e calcinha pelo meu prédio atrás de uma desconhecida com uma criança na mão, provavelmente me tornaria caso de polícia.
Entro e fecho a porta, encarando aquele pacotinho de gente. Seus cabelinhos loiros são espetadinhos, deixam-na parecendo um pequeno sol.
– O que você tem a ver com a Roberta, hein, mocinha?
Deito-a no sofá de forma desengonçada – tanto eu, quanto a criança – e vou até a cozinha para chamar a portaria pelo interfone.
– Bom dia, dona Catarina.
– Bom dia! Alguém esteve aqui, mas sumiu quando atendi a porta. Autorizou a subida de alguém?
– Desculpa Dona Catarina, mas disse que era amiga da sua irmã e achei que a senhora gostaria de receber. Desculpa, ela parecia assustada com a menina no colo.
– A moça já saiu do prédio?
– Ela já foi, senhora.
– Obrigada. Vou ver se alcanço na rua.
Vou ao banheiro lavar o rosto e trocar de roupa, na esperança de que minha irmã esteja lá embaixo com a moça e que tudo isso seja um engano. Com o tempo que ela passou pela portaria, eu sei que provavelmente não irei alcançá-la, mas não custa tentar.
Esperança, o nome disso eu acho, coisa que não uso muito.
Estou com uma perna dentro da calça, equilibrando-me para colocar a outra, enquanto brigo com o camisão que eu deveria ter tirado antes de me trocar, quando ouço um som vindo da sala.
Um choro.
Chorinho, daqueles sofridos que dão aperto no coração e nos fazem querer chorar junto.
Esse choro.
Desisto da calça, a fim de facilitar meu equilíbrio e vou a caminho da sala. Meu Deus todo poderoso, que fôlego é esse?
Eu simplesmente me sento diante dela completamente atordoada sem saber o que fazer, me beliscando para saber se não é consequência da bebida colorida da noite anterior.
Doeu.
Pego o celular e abro o aplicativo de mensagens, completamente sem ação.
– Camila, tem um bebê aqui.
É só o que eu consigo dizer, antes da minha vida mudar completa e irrevogavelmente. O universo soube como enviar uma bela representante predadora da minha sanidade repleta de cabelos dourados, pulmões de aço e os olhinhos mais lindos que eu já vi na minha vida.
Remexo na bolsa vendo se encontro algo que a faça parar e a console um pouco e sinto lágrimas brotarem em meus olhos. Acho que é a primeira vez que realmente me sinto perdida na vida e não sei como lidar. Receber notícias assim, sem que Roberta venha falar comigo e me deixe uma criança que, em tese, é sua filha, me abala.
A menina parece ter uns dois anos, mas está tão magrinha, que eu não saberia distinguir com precisão. Meu Deus, um bebê!
Meu caminho sempre foi sem curvas, sem imprevistos e todo planejado. Um bebê inconsolável e que, ao menos hoje, depende de mim, já é uma curva enorme em uma estrada que não sei andar.
Acho uma pasta e a abro apressada, ansiosa em desfazer a ideia absurda de Roberta ter uma filha. Nenhum documento.
Uma carta.
A pessoa larga um ser humano com uma completa desconhecida e deixa uma carta, como se fosse uma encomenda que fiz pela internet.
– Eu preciso chamar a polícia, meu Deus!
Mas antes de assumir qualquer plano, a grafia no papel me chama atenção. Uma letra normal de uma pessoa que escreve com pressa. Roberta sempre teve pressa e nunca teve aquela letra bonita dos cadernos de caligrafia.
Sentindo as mãos tremerem, confiro a assinatura ao final e confirmo meus maiores medos. Solto o papel, inicialmente sem coragem, pegando a bebê para tentar niná-la. Ou chorarmos juntas.
O que acontecer primeiro.
Logo ela pega no sono mais uma vez e eu já não tenho nenhuma desculpa para não ler o pedaço de papel mais aterrorizante da minha vida. Minha mão coça para acordá-la e ter, de novo, um motivo para ignorar aquelas palavras que parecem gritar diante dos meus olhos.
Mas a menina segue dormindo plenamente, como se não tivesse sido empurrada para o colo de uma pessoa que não sabe, em absoluto, o que fazer.
“Catarina,
Eu poderia ter enviado uma mensagem, feito uma ligação ou até mesmo ido aí pessoalmente quando tudo começou. Mas confesso que tive medo, irmã.
Quando fui embora, eu esperava meu bebê, pois entrei em pânico. Eu errei muito às escondidas e agora as consequências nos ameaçam. Eu não podia arriscar você. Nem ela.
Fiz um negócio arriscado acreditando que ganharíamos muito dinheiro, mas deu tudo errado. Tão errado.
O pai dela e eu saímos da cidade e fomos para longe. Não foi fácil e sequer a registramos para que não fôssemos encontrados. Foi nossa única saída, pois, apesar dele ter como pedir ajuda a família, é orgulhoso demais para isso.
Se você recebeu essa carta é porque não consegui resolver tudo. Peço desculpas por ter sido tão ingênua e tão ambiciosa. Queria ter tido sua coragem, mas minha covardia me levou por caminhos mais fáceis.
Por favor, jamais deixe que descubram que ela é minha filha, assim como para você é melhor não saber quem é o pai. Conheço-te, irmã, e, sei que logo os procuraria para que ela tivesse a família que você sempre achou não poder ser.
Mas foi para mim e apenas peço que também seja para ela. Ela é a única inocente que sofrerá as consequências se descobrirem.
Adote minha bebê e cuide dela como fez por mim. Você não errou comigo, todos os erros foram meus e dos meus sonhos exagerados.
Ela é doce como nossa mãe, mas teimosa como você. Desculpa interferir nos seus sonhos, mas te conheço e sei que será uma mãe tão brilhante, quanto é como arquiteta. Como foi minha irmã.
Ela se chama Rebeca, aquela que une.
E ela agora nos une por toda vida.
Com amor, Beta”.
Nesse momento, todas as minhas decisões na vida parecem me encarar, enquanto zombam abertamente de mim, que sempre fui voraz em tomar a vida nas mãos e fazer eu mesma meu próprio destino.
Rebeca abriu seus olhos mais uma vez, parecendo alcançar um ponto adormecido dentro do meu peito que eu nunca quis que fosse acessado. Seria mais seguro deixá-lo ali inerte, enquanto eu podia seguir livre sem sentir falta de algo que nunca tive.
Eu poderia dizer que foram as más decisões de Roberta que me trouxeram aqui, mas ali está o destino, de peito aberto mostrando o caminho da maternidade, sempre latente, mas nunca desperto em Catarina Assis.
E agora a porta foi aberta e é Rebeca quem me chama a trilhá-lo.
Meu destino começou a se entrelaçar de forma irremediável ao acaso, me despindo da tarefa de decidir o futuro, quando tudo o que tenho ao meu controle é o hoje, unido à única lembrança deixada pela minha irmã.
Arthur O mal de se criar uma expectativa muito alta sobre uma questão é que a frustração nos leva a uma queda brusca. E a minha foi cruel. O que parecia ser incrível, logo se tornou um pesadelo, quando o investigador me informou que Guilherme sofreu um acidente. Ele estava internado em um hospital estadual muito longe de casa, como esteve nos últimos anos. Se não fosse seu acidente, provavelmente eu jamais o teria encontrado e agora eu preferia a ignorância. Eu me mantive distante tempo demais, chegando tarde na tentativa de nos reunir. A culpa me alcança com força todos os dias, mesmo sabendo que existem coisas que fogem ao nosso controle. Eu aceito o que o destino me reserva e apenas luto para sobreviver às consequências. Mas o destino tinha que ser tão cruel com o Gui? A viagem foi longa e cansativa e chegamos ao hospital horas após nossa partida, ao fim do dia. O céu ainda estava escuro e a madrugada silenci
Dois anos depoisCatarinaA manhã está um caos.Minha vontade real e sincera é me sentar no cantinho da minha cama, abraçar minhas pernas e chorar. Seria simples e tiraria do meu peito esse peso imenso que mora em mim há meses.Mas não posso. A pequena empresa de arquitetura na qual trabalho desde que me formei na faculdade e me aceitou sem qualquer experiência profissional, está mal das pernas há dois anos e meio.Conseguimos segurar as pontas por um tempo, peguei mais projetos do que poderia suportar e fizemos cortes na folha de pagamento. Alguns foram demitidos e outros, como eu, aceitaram reduzir seus próprios salários.Minhas finanças pessoais, portanto, estão igualmente na lama e volto ao meu pensamento inicial sobre o caos.A situação chegou a esse ponto, nã
Catarina– Catarina. – Raphael Mendes Cretino da Silva Sauro me chama sem ao menos dar bom dia. – Chame todos para reunião agora.– Bom dia, Doutor Raphael. Estaremos lá. – Alfineto demonstrando educação, enquanto a forma de tratamento soa amarga da minha mente. Doutor. Até parece.Logo, todos os Doutores Chauvinistas estão sentados em seus lugares e assim que assumo o meu lugar, Raphael aparece com uma animação assustadora.Sabe os vilões das animações infantis que vez e outra soltam aquela gargalhada maldosa quando consegue vencer uma batalha? É essa a cena que se cria diante dos meus olhos, faltando apenas o cetro do mal e os raios lançados sobre nós.Credo!– Bom dia, Senhores. – Agora se lembrou de ser educado. – Como sabem, estamo
Arthur A lembrança daquela noite, dois anos atrás, ainda queima na minha memória com tantos detalhes, que poderia revivê-la mil vezes se eu quisesse. E é o que faço, enquanto sigo estacionado em uma rua de um bairro em um local oposto ao meu apartamento, esperando ver uma nota de esperança. Faz uns dias desde que o investigador descobriu onde minha sobrinha está. Demoramos meses para conseguir qualquer pista, pois aparentemente, meu irmão não a registrou ou enviou o suposto e-mail que escreveu. Mas agora sabemos onde Rebeca está, depois que uma mulher me procurou querendo dinheiro em troca de informação há uma semana. Ela era estranha e parecia estar assustada, mas não hesitei e aceitei, pois sua informação se confirmou. Ela cobrou um preço alto e me ofereceu apenas um endereço, antes de desaparecer completamente. A pista dela foi certeira. Minha sobrinha Rebeca está vivendo nesse prédio. As fotografias
Catarina O fim de semana passou como um sopro, que eu sequer pude aproveitar decentemente. Choveu absurdamente e Beca passou bastante tempo de mau humor, já que nossos sagrados passeios restaram apenas no nosso mundo da imaginação. Uma coisa sobre crianças de quatro anos que ninguém me avisou é sobre a fonte inesgotável de energia em que consistem. Inventei tudo o que foi possível e meu auge foi o nosso acampamento na minha pequena sala. Uma barraca feita de cobertas de ursinhos, pisca-pisca que encontrei perdido do natal, almofadas em um número que eu nem lembrava ter e desenho animado. Era uma constante infinita de musiquinhas infantis que a faziam dançar, saltitar e cantar na sua língua infantil, que às vezes, é impossível de compreender. Quando ela se cansava, deitava em meu colo e segurava meu queixo, um costume que não sei se ela já tinha antes de chegar para mim. Nesse momento, ela adormecia e eu ganhava o direito de co
Catarina Dando-me um tempo valioso, uma moça bate à porta, trazendo-nos café e água, o que agradeço profundamente. Ela me serve e eu me controlo para não beber todo o conteúdo de uma vez e aplacar a secura na minha garganta que parece querer me impedir de falar. – Fico feliz que Raphael a tenha enviado como representante da Mendes. – Ele inicia formalmente nossa reunião, me tirando daquele espiral de ansiedade. – Raphael me designou para essa reunião, mas pelo que verifiquei do projeto, vocês praticamente fizeram a maioria dos acertos. – Consigo interagir de forma sã e celebro internamente. – O projeto que ele apresentou é horrível. – O homem é honesto e eu não resisto em arregalar os olhos, o que parece lhe chamar a atenção. – Como? – Eu sei que é horrível, mas se ele já tinha essa opinião, exatamente o que estou fazendo aqui? – Antes de contatar vocês, analisei diversos projetos da empresa e apenas um
Arthur – Quer explicar o que acaba de acontecer ali fora? – César me pergunta e me sento puto na minha cadeira, sem saber como responder. O que aconteceu? Nada, só não esperava que o impacto que tive há dois anos se renovasse. E que história foi aquela que nosso encontro não deve ter sido relevante? E por qual razão eu estou debatendo isso na minha mente nesse instante? Não é por isso que ela está aqui. O que aconteceu entre nós foi mero acaso, coincidência e obra do destino. Não tenho qualquer razão para lembrar como ela me abalou por tanto tempo ou pensar em como ela está absolutamente linda hoje. Ela estava com um vestido preto, que a deixava profissional e sexy ao mesmo tempo. Os cabelos presos, ainda tinham suas mechas adornando seu rosto e seu colo. Ao mesmo tempo em que parece uma mulher séria de negócios, ela me impressiona com a espontaneidade que emana de si. Algo que ela guarda até de si mesma, mas qu
ArthurConsigo fugir do trânsito pesado, saindo muito antes do necessário e a empresa ainda está pouco movimentada. Maria Emília já se encontra em seu posto e assim que me vê, se levanta animada, como se fosse me contar uma fofoca.– Ela é linda! – Diz antes mesmo de me dar bom dia. Maria Emília e eu somos amigos, antes mesmo de sermos chefe e secretária. Diante dos outros nos tratamos formalmente, mas minha família e César sabem que é apenas para manter o local de trabalho, um local de trabalho.É assim que eu evito cenas como essa.– Bom dia, Maria Emília. – Ela afugenta meu mau humor com a mão como quem abana uma mosca.– Ouviu o que eu disse? Ela é linda! Tipo, linda, como aquelas crianças da televisão. – Que maravilha, minha secretária já con