CAPÍTULO 2

Arthur

Sinto que mesmo fazendo tudo certo, a única coisa que não tenho na minha vida são certezas. Ter uma família abastada, me tornar CEO da maior companhia de engenharia civil do país e ser uma pessoa compreensiva na vida pessoal e justa na profissional em nada me ajudaram a ser quem eu sempre sonhei me tornar.

A desestruturação da minha família, facilitada pelo desmoronar do meu pai, pela rebeldia do meu irmão e pela ausência da minha irmã, tornaram minha jornada em nos manter juntos, um borrão de imperfeições.

Sozinho eu não consigo.

Já não consigo sequer me encontrar, muito menos ser o ponto de convergência entre todos nós. Três anos atrás meu pai e irmão tiveram a maior briga que eu já ouvi e, mesmo depois que ele desapareceu, Henrique Ferraço não ousou dizer uma única palavra.

É como se meu irmão Guilherme jamais tivesse existido e isso é assustador. Minha avó Odeth e eu colocamos um investigador em seu encalço, ao menos para conseguir descobrir se estava bem. Mas até hoje obtivemos apenas seu silêncio.

Tudo começou a ruir entre nós quando minha mãe Sarah se foi, quando eu ainda era um garoto. Meu pai a amou demais e se frustrou ao perdê-la. Mas a vida mais uma vez lhe sorriu quando ele se uniu a Sandra, minha madrasta.

Eles tiveram bons anos juntos, aproveitaram o nascimento de Guilherme e Helena, meus irmãos. Mas nada disso foi suficiente para Sandra. Ela queria aproveitar a vida que dois filhos, um enteado e um esposo não lhe permitiam. Então ela apenas se foi, deixando para trás destroços que eu ainda tentava juntar.

São anos tentando, abrindo mão de tudo por todos, sem nada conseguir.

Hoje é o aniversário do meu irmão e, como sempre, mando-lhe um e-mail na esperança de que se atreva a responder. O número do seu celular foi desligado há muito tempo, rompendo com muitas das minhas expectativas.

– Você está com aquela cara. – César, meu amigo e vice-presidente da empresa, comenta quando me encontra remoendo a vida sentado à mesa do meu escritório.

– Que cara?

– De cachorro que caiu da mudança. Você está cansando e desmotivado e isso não é bom.

– Não afeta os negócios, fique tranquilo.

– Quem está falando de negócios? Falo de você. Por que não tira férias? Procura uma nova motivação? Um hobby? Uma esposa?

– Esposa. – Repito e rio amargo.

Faz anos que carrego no meu íntimo essa vontade de constituir uma família, que seja sadia e que me faça sentir que efetivamente pertenço a um lar. Mas a confusão que trago como carga é demasiada e seria injusto obrigar uma mulher a partilhar isso comigo. Principalmente alguém que eu amasse.

A mulher teria que estar muito consciente de tudo o que eu trago no pacote e, necessariamente, interessada em mim. Não no meu sobrenome, na empresa ou na fortuna.

Em Arthur, somente.

Mas, além de tudo, esse requisito me pareceu impossível de ser cumprido ao longo do tempo. Elas se aproximam com seus olhos cobiçosos e interesses fugazes, sem nada em comum comigo.

Falam sobre viagens, heranças e coluna social, mas não fazem a mínima ideia de partilhar comigo algo que seja relevante. Alguém que não se importe em apenas ler um livro sábado à noite ou assistir uma série, sem precisar sair e me exibir como um troféu. Que queira viajar pela aventura e não pelo glamour. Que queira se casar por amor e não por sobrenome. Que queria filhos para amá-los e não para ter herdeiros.

Que queira uma família para ter um lar e não para fotos bonitas na coluna de fofocas.

Os problemas com minha família e a falta de certeza sobre a verdadeira intenção das mulheres com quem estive, ambos me fizeram adormecer esse sonho ou até mesmo dele desistir.

Já não importa.

Não consigo sequer manter a família que já existe, pensar em uma nova seria estupidez.

– Enfim, você acredita nessas coisas. – César trata o matrimônio como se fosse sarna. – Acho que seria bom para você. Mas já que não aceita minha sugestão, ao menos podemos, pelo amor de tudo o que é sagrado, sair deste escritório para vermos gente? É sexta-feira e você não é rico para gastar seu tempo aqui.

De alguma forma ele consegue me convencer, não a casar, mas a sair do escritório e do apartamento um pouco para aproveitar a noite como uma pessoa normal.

Decidimos pelo Riecha S-Club e algumas doses depois, César já estava flertando com uma moça. Notei outra me olhando, verificando se estava aberto para que se aproxime, ou ao menos, interessado. Ela é bonita, cabelos longos e encaracolados, lábios cheios e uma beleza fora do comum.

Mas não me interessou, pois vi em seus olhos que ela sabia exatamente quem eu era. Levanto-me a fim de evitar constrangimentos e sigo para a grande área onde todos dançam, mas não me retenho ali. Vou além, me apoiando no vidro que garante visão ampla do térreo. Apenas encaro as pessoas e seus sorrisos livres de problemas. No fundo, eu as invejo.

É então que meu olhar é completamente cativado pela mulher sentada em uma das poltronas, encarando a felicidade alheia. Ela olhava curiosa para mim, mas logo desviou, voltando a apreciar o lugar.

Vejo-a morder o lábio inferior coberto com vermelho vivo, como se fosse uma reação à ansiedade, mas logo cessa o movimento e se levanta em um rompante.

Decidida, caminha com passos suaves e elegantes, porém determinados. Ela sabe onde pisa, mesmo que eu tenha notado aquele mínimo segundo de hesitação. Seu vestido cai suave por suas curvas, em um tecido leve que a deixa com movimentos quase etéreos.

Seus cabelos volumosos caem em ondas sutis, mas cheias de balanço, dando-lhe um movimento único de quem deve ser admirada.

Posso notar o quanto é bonita e tenho certeza de que, se eu me aproximar mais, posso constatar que na verdade é linda. Mas ainda estranho sua falta de interação com as pessoas, demonstrando que está deslocada.

Noto que o garçom irá lhe servir água e não compreendo a pertinência da escolha. Paro um dos atendentes da área VIP e peço que se comunique com o bar.

– Que ofereçam o melhor para a moça. – Digo, apontando-a. Ele logo avisa ao seu colega pelo ponto que todos possuem para facilitar a comunicação entre os profissionais.

Quando ele a serve, noto uma breve tensão, seu tronco ficando ereto. Ela se vira para trás, buscando um olhar que não encontraria ali, não fosse o garçom me delatando. Mas não ligo.

Na verdade, eu esperava isso. Ela me busca, mas sei que sua visão não lhe proporciona muitas informações, enquanto eu estou na penumbra. Brindo-lhe confirmando que sou seu admirador e cogito em pedir que a chamem para a área VIP.

Ser visto no andar térreo com alguém renderia um sem fim de fofocas e quero evitar, até mesmo para preservá-la. E é exatamente isso que eu faço.

Assisto-a subir a escadaria, como se fosse dona do lugar e tivesse perdido o receio inicial de quem estava deslocada. Dona de si, ela me busca, sem êxito, eis que me posicionei em melhor lugar para surpreendê-la.

Sua sensualidade se espalha como perfume levado pelo vento e eu tenho quase certeza de que a vejo em câmera lenta.

– Predadores não fogem.

Sua resposta extrai de mim um sorriso que há muito eu não me permitia ter. Eu tinha razão. A mulher é absolutamente deslumbrante, mas seu maior encanto é o completo desconhecimento sobre quem eu sou.

Claramente é a primeira vez que vem a esse lugar, pois todo frequentador sabe quem são os ilustres que vez ou outra resolvem aparecer. Ela demonstra coragem ao me encarar abertamente, enquanto me analisa por inteiro e eu faço questão de fazer o mesmo.

Mas não de uma forma cretina como se fosse um pedaço de carne, mas sim porque ela é merecedora de admiração. Seus cabelos caem em um volume no seu colo que a deixa selvagemente independente.

Posso identificar melhor seus traços mais suaves, as maçãs do rosto acentuadas, o nariz alongando, as sobrancelhas grossas e os lábios cheios como se fossem frutas à espera de serem provadas.

Estou tão perto que posso sentir o seu cheiro floral, misturado a um completamente desconhecido que acredito seu o seu próprio. Cheiro de mulher inteira e que apenas se intensifica quando bem apreciada.

Mas o que parece me tragar por inteiro são seus olhos em um misto de âmbar e jade que dançam entre si na medida em que posso sentir sua excitação. Olhos de cigana indomável, que não pedem licença, mas tomam para si. Exigem.

E ela exige.

Absolutamente tudo naquela noite perdida em minha semana, na qual eu não tinha qualquer pretensão. Nossa saída do lugar em nossa fugaz felicidade sequer é notada, quando chegamos a um luxuoso hotel, onde sua ferina insubmissão, nos leva ao auge da satisfação.

A noite passa por nós como em uma tempestade, a qual fazemos questão de nos lançar, enquanto nos confundimos entre presa e predador, em uma profusão de toques, beijos e uma dança lasciva que eu tinha a certeza jamais esqueceria.

Ao amanhecer, a cigana ainda estava ali, talvez para me provar que era real. Mesmo sem saber seu nome, sua essência já tinha sido completamente despida para mim.

Infelizmente, não pude eternizar aquele momento único de paz que ela me proporcionou, quando depois de três anos, meu celular tocou com a informação mais valiosa que eu poderia ter.

Levantei-me discretamente, guardando minha última memória daquela mulher profundamente adormecida, com seus cabelos espalhados e uma paz que eu poderia querer ter comigo para sempre.

Mas deixo-a, pois Guilherme foi encontrado.

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