CAPÍTULO 1

Catarina

Minha cabeça explode após mais uma reunião infrutífera sobre como salvar a empresa na qual trabalho da completa falência. A água quente desce pelo meu corpo, relaxando os músculos, mas não faz milagre.

Milagre seria ser rica ou pelo menos chutar meu chefe para bem longe da minha vida. Mas isso implicaria em eu acreditar em coisas extraordinárias capazes de dirigir nossas vidas, a despeito de nós mesmos.

E eu não acredito.

Não que eu não tenha fé alguma, mas prefiro ser cética no que concerne ao que eu quero ou não fazer com a minha vida. Minha família sempre viu isso como medo. Medo de que no fim tudo desse errado e, para remediá-lo, eu estava sempre pronta a dar um empurrãozinho no destino.

Para mim se trata de não esperar as coisas acontecerem, sob pena de estagnar a vida por falta de ação. E meu ponto estava certo, quando não fui mais uma mulher da minha família a nascer, crescer e viver eternamente a mesma vida que suas ancestrais.

Acho justo almejar sempre mais e não me apeno por isso. Então, nada de milagre, apenas me esforço em um árduo trabalho para tirar a empresa do buraco.

Assim que saio, vejo a Camila, minha melhor amiga, se arrumando quase com pulinhos de alegria pela sexta-feira. Uma vez por semana fazemos um programa apenas nosso e hoje ela resolveu fazer surpresa.

Só me avisou que eu preciso estar escandalosamente linda. Eu estou cansada e o único escândalo que amaria fazer seria em sonhos. Ela sabe disso, mas me ignora completamente.

– Por favor, não fique tão feliz. Não resolvemos nada e a nossa demissão é certa. Só aguentaremos mais uns meses.

– Mulher, vamos desafogar sua mente, pelo amor de Deus! – Ela diz me empurrando para que eu acelere meu ritmo.

“Roberta fazia parte disso”, penso com um aperto no peito. Minha irmã me deixou há três anos, com apenas um recado no aplicativo de mensagens: “Estou bem, não se preocupe. Te amo, irmã”.

Eu praticamente a criei, como não me preocupar? Ela tinha apenas vinte anos quando fugiu, sem se importar com nada.

– Queria que ela me mandasse qualquer notícia. – Reclamo, sem precisar dizer sobre o que estou falando.

– Melhor eu não comentar nada para não estragar o clima. – Camila acha que minha irmã foi uma ingrata comigo e com tudo o que passamos para termos relativa estabilidade. Mas eu sei que Roberta não é assim, apenas não entendo o que aconteceu.

Ou me enganei por todos esses anos.

– Queria algum sinal dela, qualquer sinal que indique que esteja viva. Não a obrigaria a voltar se não quisesse.

– Quando você menos esperar, isso vai acontecer. – Ela comenta como se eu já não esperasse por três anos. – Pensa positivo, acho que ela não é tão cruel a esse ponto.

– Não criei uma pessoa cruel.

– Você não a criou, amiga. Essa é a questão. Vocês conviveram juntas, sem seus pais desde a juventude. Não assuma uma responsabilidade que não é sua. – Ela diz me dando um beijinho e empurrando um vestido absurdo de lindo, cuja existência eu não me lembrava.

– Não é exagerado?

– Quando descobrir onde nós estamos indo, vai entender.

Conforme prometido, estou vestida, penteada e com saltos imensos, pronta para ir seja lá onde Cami tenha planejado. Deixei meus cabelos com muito volume e soltos em mechas e uma make arrematada no batom vermelho.

Sem erros.

Quem olha de longe enxerga uma bela e resolvida mulher, que exala domínio e sofisticação. Essa sou eu fora de casa, impondo uma autoridade necessária, em um mundo que tantas vezes decidiu que eu não era suficiente para exercer determinadas funções.

Não quer ser mãe?”

Não pretende se casar? Já tem trinta anos. Vai ficar para titia?”

Como respeitarão uma mulher solteira no local de trabalho integrado por tantos homens?”

E por aí vai.

Minha escolha em não casar e ter filhos se deu exclusivamente porque assisti as mulheres da minha família cedendo ao doméstico em detrimento dos seus sonhos.

E eu não queria aquela frustração que todas tinham no olhar, por não conseguirem ser quem sempre sonharam. Com exceção da minha tia Amália que sempre sonhou em ser do lar, as demais soterraram os planos de serem professoras, contadoras e até mesmo confeiteiras.

Talvez tia Amália e eu sejamos as mais satisfeitas com a vida que levamos. Parece que quando se casavam, perdiam a si mesmas. Tudo bem que tudo isso se deu no interior e o acesso à informação era menor, mas para mim mais parece uma maldição de família.

Eu sonhei e fui atrás, tirando do caminho o que entendia como empecilho. Tudo bem que eu sequer tentei outros caminhos, mas não poderia arriscar tudo apenas para tentar algo incerto. Meu último namoro fixo foi há quase quatro anos, meses antes de Roberta sumir e terminei tudo quando ele tentou colocar uma aliança no meu dedo.

O imbecil do Antônio fez a proposta diante de uma penca de gente, tentou trapacear na hora h e ainda esperava meu sonoro sim.

Meu destino nunca poderá cruzar o de ninguém.

Fugi na cara dura, não sou obrigada.

– Aonde vamos, afinal?

– Na maior casa noturna de todas e eu nem quero perguntas sobre como consegui isso. Riecha S-Club!

– O clube dos ricos? Como?

– Sem perguntar, amada. Apenas aceita.

O motorista do aplicativo estaciona o carro na rua de trás e Camila ignora minha levantada de sobrancelha questionadora. O clube é simplesmente caro, daqueles que gritam sou caro e tem gente cara aqui dentro que paga caro para estar aqui.

Entramos pela área de serviço, onde um homem alto e aparentemente feliz em ver minha amiga nos permite entrar. Aguardo os dois minutos de interação entre eles e é quando o reconheço.

– Carlos?

– Ele mesmo.

– Mas vocês terminaram.

– E continuamos assim. Mas uma mulher solteira pode relembrar às vezes sem julgamentos. – Diz rindo e andando de forma elegante até a área principal.

– Minha Nossa Senhora da grana curta e do bolso furado! – Digo incrédula sobre o lugar. É absurdamente muito mais do que eu achei que fosse. Acho que esse é o cheiro de rico que eu nunca senti. – Tudo aqui deve custar uma fortuna. Moderação, hein, Cami!

– Nem que eu use o fundo de garantia para pagar meu consumo, amiga. Mas hoje, eu aproveito. E você também deveria. – Ela me recomenda e logo mergulha naquele mar de gente, ansiosa demais para me esperar.

Eu sou o tipo de pessoa que antes de se jogar como ela, observa. Gosto de saber exatamente em que terreno estou pisando, pois uma mulher sozinha hoje em dia precisa estar atenta, infelizmente. Atravesso a multidão até conseguir sentar naquelas poltronas brancas e lindas que ficam espalhadas para quem quer conforto.

O local está muito cheio, o que me faz questionar quantos ali não entraram como Camila e eu. Não é possível que a classe A seja tão numerosa assim! Tomando coragem, me levanto para analisar bem o local – sabe Deus quando vou pisar aqui novamente.

Aproximo-me do garçom e peço uma água. Homens e mulheres vestidos de preto transitam no local servindo e registrando os pedidos em um cartão que serve como comanda. O garçom me encara como se eu fosse louca e eu sorrio convicta, como se beber água em um lugar desses fosse a coisa mais normal do mundo.

Não gosto de chegar a um lugar desconhecido e logo afugentar meu juízo com coragem líquida.

Olho ao redor e, curiosa, verifico a galeria que dá acesso à área VIP. A piada vem pronta, quando o clube de ricos possui uma área VIP para pessoas ainda mais ricas. Quase o Olimpo da boemia. Mulheres em roupas finíssimas parecem estar entregues à diversão, como se nada mais importasse.

Eu acho que quando você não preocupa com boletos ou com uma falência iminente é assim que funciona, não é? Deve ser. Os homens são ridiculamente bonitos e tenho certeza de que quem não é, ficou assim que ascendeu ao Olimpo.

Um homem está lá, o único a não dançar, olhando tudo e nada ao mesmo tempo. Curioso como sua postura parece destoar dos demais clientes ao mesmo tempo em que parece muito confiante. Não consigo ver seu rosto, acobertado pela penumbra, mas suas mãos seguram firme na imensa barreira de vidro.

Sua mente parece estar tão distante daqui, quanto a minha, mas é interessante analisar sua postura em meio aos sorrisos fugazes de quem se diverte em um local como esse.

Talvez eu esteja igualmente destoante, mas é inevitável quando se é percebedor demais. Seu olhar parece chegar mais próximo de onde estou e logo viro o rosto. Ser pega no flagra e não sustentar é a certeza de constrangimento.

Viro o rosto, olhando como as pessoas estão integradas e parecem adornar a bonita arquitetura do lugar, em um conjunto harmonioso que oferece felicidade efêmera por um preço bem alto.

Mas meu momento contemplativo parece entrar em suspenso tão logo desvio o rosto do estranho observador. Em meio àquela finita alegria, o som, as vozes e as músicas ficam turvos, quando sinto um arrepio na espinha, daqueles que sentimos quando somos observados. A sensação parece arrefecer e eu não resisto, me virando em busca de quem resolveu me fazer presa.

Esse jogo eu sei jogar.

O garçom que trouxe o pedido agora me encara diferente. Vejo que preparou algo diverso do que pedi, em uma taça bonita, na qual o líquido colorido traz vivacidade, na medida em que se espalha.

Percebo seu olhar para o alto e o acompanho. O homem permanece no topo, como uma águia, apenas me observando. Continuo sem conseguir identificá-lo, mas apenas sei que eu sou a presa mirada pela águia, pronta para dar seu voo rasante e, talvez, levar-me junto.

Ele não esconde que me encara, que me toma apenas por estar ali. Desprovido da usual vergonha que acomete quem é pego no flagra, ele me rende um brinde à distância, de forma discreta e praticamente imperceptível para quem não está prestando atenção.

– Você está flertando, senhorita Catarina?

– Camila se aproxima de mim.

– Parecia mais que eu estava sendo caçada. – Digo curiosa sobre o homem que não me deixou ver seu rosto antes de desaparecer completamente.

– E onde está o caçador?

– Quem sabe? – Pergunto retoricamente, quebrando aquela aura do suspense que antecede o primeiro contato entre pessoas que intencionam interagir.

Inicio de vez a minha noite, mais confiante desde que entrei aqui e mergulho na estonteante leveza de me permitir ser apenas eu, despida de problemas sem solução e ignorante do fato de que, em breve, descobriria toda a aura predatória daquela ave imponente.

A madrugada prometia alcançar o seu auge, quando um garçom me avisou que eu estava sendo procurada na área VIP. Predador, eu tive praticamente certeza.

– Amiga, você vai, não é?

– Você naturalmente aceita convite de desconhecidos?

– Aquele desconhecido ali em cima te encarando? Sim. Eu estarei de olho e não abandone seu celular. Você precisa daquele número ali para ontem, meu bem! Pode me agradecer depois!

Sem me deixar negar, ela desaparece, mergulhada em sua diversão. Subo a bonita escada sem afobação, tentando mostrar um interesse contido, até mesmo porque eu não consegui sequer vê-lo adequadamente.

Chego à galeria, mas não o encontro ante tantas pessoas reunidas e em função do jogo de luzes. Quase desistindo, sinto perder meu autocontrole quando uma voz forte praticamente me sussurra com uma proximidade perigosa.

– Vejo que não fugiu. – Ele comenta em meu ouvido. Se eu estivesse pronta para aquilo, ainda assim não estaria.

O homem fala com uma firmeza que pouco se encontra hoje em dia, como se até o volume de voz fosse completamente controlado. A vibração traz uma segurança atordoante para quem o ouve. Ela grita poder e masculinidade e eu nem sei por qual razão esperava menos do que isso do meu predador. Poderia passar horas o escutando sem me entediar.

Tenho milésimos de segundos para absorver a intensidade deste ser, que perdeu a humanidade em algum lugar no espaço e se tornou isso tudo aqui na minha frente. Seu porte é grande, seus braços apresentam definição, o que qualquer ser com a vista boa pode perceber mesmo sob a camisa. Seu rosto possui uma masculinidade óbvia, adornada em uma barba loira e um cabelo espesso na mesma coloração.

Percebo que suas ondas são bravamente domadas e controladas. Seus olhos pequenos em um tom de azul bonito parecem também me analisar, por isso, logo me aprumo, ajeitando a postura e soltando um breve pigarro.

– Predadores não fogem. – Respondo, me igualando ao homem que termina por me oferecer a noite mais inesquecivelmente não planejada da minha vida.

Eu mal poderia suspeitar que essa foi o início de uma curva sinuosa que se mostrou em meu caminho, perturbando meu traço tão perfeito e lançando-me ao desconhecido.

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