3_ Odiada

  Com uma tossida catarrenta e mais nojenta que até a própria sopa, ela se arqueou para frente, socando o próprio peito com pressa, sem conseguir puxar o ar. Vovô Brutus imediatamente se levantou, tentando em vão socorrê-la. Quando me dei conta, ela se jogou para trás, caindo com cadeira e tudo e virando a mesa com os pés. Pulei para trás, saindo da cadeira, por pouco, não tomando um banho de sopa quente.

O barulho de vidro e porcelana se quebrando invadiu o ambiente, cortando o som da voz da jornalista da TV.

O osso saltou de sua garganta, e ela puxou o ar em abundância, quando já estava ficando roxa.

Levei as mãos à boca, me condenando mentalmente. Mais uma tragédia. Por minha culpa novamente. Quando é que eu ia parar de machucar as pessoas?

Dei com o olhar maciço e duro de Helena sobre mim, me fulminando com raiva como se soubesse exatamente o que eu havia feito. Brutus Levantou Stela do chão, que gemia como se houvesse tentando engolir um pinheirinho de natal ou algo assim.

_Vou deitá-la, _ele avisou logo em seguida, nos olhando feio _E vocês, tratem de limpar essa bagunça!

Quando ele sumiu pelo corredor, arrastando Stela consigo, Helena chutou o chão.

_AFF! Que maravilha!!!

Cinco segundos depois, eu estava ajoelhada no chão da sala de jantar, o esfregando com uma esponja, me livrando do enorme estrago que Stela havia causado com apenas um pontapé. Helena estava carrancuda ao meu lado, juntando os cacos de vidro e bufando.

Os gemidos de Stela ainda eram audíveis em algum ponto do corredor, nas profundezas da escuridão a minha direita. Mesmo depois de todas as obscenidades que ela havia cuspido em minha cara, eu não conseguia deixar de me culpar, e de me sentir esquisita. Porque, mas uma vez, a culpa era minha, e eu me perdia em lembranças. Toquei a cicatriz em meu pulso com o dedo indicador, e embaixo de meu queixo, que haviam se formado na hora do impacto, quando eu havia voado pelo para brisas, o quebrando com o corpo. “A caixão vai permanecer fechado” _o Padre havia avisado durante o funeral “Os corpos estão muito desfigurados”. Quando meus olhos lacrimejaram, e as lágrimas ameaçaram rolar por meu rosto, tentei pensar em outra coisa.

_Acha que ela está bem? _perguntei baixo para Helena, sentindo meus joelhos arderem pela posição na qual eu estava.

_Por que diabos acha que eu saberia disso? _ela bufou, dando de ombros com força.

_Me desculpe, eu só achei que...

_Me deixe em paz!

Não consegui mais segurar as lágrimas. Me deixei cair, a encarando perplexa. Droga! Eu havia sofrido um acidente, e havia perdido meus entes muito recentemente. Será que ela não podia ter um pouquinho compaixão?

_O que foi que eu fiz para você? _perguntei num fio de voz, apertando a esponja entre minhas mãos.

Helena bufou mais uma vez, suspirando enquanto também se deixava cair. De repente, não tinha mais aquela expressão dura no olhar. O silêncio predominou, e apenas a voz da TV era presente entre nós.

_Eles não gostam de ninguém, _ela disse de repente, quando achei que não teria uma resposta _ E agora eles vêm despejando tudo em cima de mim, desde quando souberam que você estava vindo...

Pisquei, sentindo minhas pálpebras baterem umas nas outras.

_Sinto muito... _falei, _não queria atrapalhar a sua vida. Ela deu de ombros, suspirando mais uma vez.

_Que diferença isso faz agora?

_Mas eu...

_Precisamos limpar isso _ela me cortou voltando ao seu trabalho, e encerrando o assunto por completo.

Quando faltavam apenas cinco minutos para as nove horas, subi exausta. O cansaço da viagem, mais o cansaço do estresse causado por vovó Stela haviam acabado comigo, e eu estava morta de sono.

Quando cheguei ao quarto, apenas joguei minhas coisas no chão, e me joguei no colchão, me embolando de qualquer forma no lençol, com calçado e tudo.

Eu já estava quase no mundo dos sonhos quando uma fina nesga de consciência me alertou de que Helena havia entrado no quarto. Muito lentamente, meus ouvidos registraram o som das portas de seu armário sendo abertas e o som desigual de roupas sendo tiradas e o pano roçando na pele.

Sem mais, um cutucão em meu ombro me fez pular, seguido de sua voz perfeita.

_Hei, acorde dorminhoca! Fala sério, você mal se deitou...

Abri meus olhos à contra gosto, a fulminando com meu olhar mais irado:

_O que você quer?

_Quero que você se levante. Vou sair.

Franzi a testa ao realmente olhar para ela com os olhos bem abertos. Ela havia trocado o short e a regata por um vestido muito curto cor de berinjela. Não havia mais avental em seus cabelos os cachos caíam soltos como uma cascata pelos ombros. Também havia um pouco de batom em seus lábios.

Cerrei os olhos. Como podia ser tão bonita? Se inveja matasse, eu teria morrido engasgada ali mesmo.

_Pensei que o toque de recolher fosse às nove horas... _resmunguei enquanto ela caminhou na ponta dos pés até a janela e a deslizou para cima com cuidado. Uma brisa fresca entrou no quarto e balançou seus cabelos.

_Dã... acha que eu não sei? Eu não ligo para essa regra boba... e preciso encontrar meu namorado.

_Sempre faz isso?

_Sim.

_Ótimo, então boa sorte e até amanhã _resmunguei, me virando para o canto, louca para voltar ao meu sono.

Sem mais, o lençol foi arrancado com brutalidade de cima de mim. Girei a cabeça para ela, realmente irritada.

_O que você acha que está fazendo? _ela perguntou com um cochicho exasperado _Você vai comigo!

Arregalei os olhos. Ela era ainda mais detestável do que eu me lembrava.

_Ficou maluca??? Fala sério! Eu viajei alguns mil quilômetros, não comi praticamente e estou morta de cansaço e sono. Ninguém te ensinou de ter um pouco de compaixão?

Preciso dormir...

Ela pôs as mãos na cintura.

_Pode dormir o quanto quiser depois que voltarmos.

_Por que tenho que com você? Você me odeia!

Ele revirou os olhos, cruzando os braços como se estivesse falando coma criança de nove anos.

_A: Não confio em você. B: Não vou correr o risco de te deixar aqui e estragar tudo, e C: Enquanto você estiver por aqui, quem manda sou eu!

_E se eu não quiser ir? _perguntei num cochicho cheio de ódio.

_Então se prepare para eu fazer de sua vida um verdadeiro inferno...

Rolei os olhos, me sentando na cama e lutando para manter os olhos abertos. Olhei para baixo. Eu ainda estava com a camiseta branca e a calça moletom preta e folgada.

_Não estou arrumada par sair.

Ela chiou para mim, dirigindo-se para a janela.

_Não me faça me atrasar!

Levantei aos tropeções e a seguia até a janela. Ótimo. Ela podia encontrar esse namorado, e eu acharia um lugar para dormir _nem que fosse a baixo de uma árvore _, até que ela decidisse voltar para casa novamente...

_Geralmente, tenho modos mais rápidos de fazer isso _ela avaliou _Mas você não me deixe opções.

Com a agilidade de uma profissional, ela pulou para fora, caindo no teto da garagem. Depois de esperar alguns segundos, para ter certeza de que não havia acordado ninguém, fez um gesto para que eu a seguisse. Imitei seus movimentos. Mas é claro que eu não tinha a habilidade natural para nada daquilo... principalmente quando estava caindo de sono.

Com passos silenciosos, ela caminhou até a veirada do telhado, onde as telhas se dobravam, e num movimento único e impressionante, se jogou.

Com uma exclamação, corri silenciosamente até lá. Ela havia se agarrado as grades da janela da cozinha, e descia por elas como se fossem uma escada. Quando estava perto do chão, ela se soltou com graça, aterrissando no chão como uma aranha.

_Vamos, não temos a noite toda _ela cochichou lá de baixo, e franzi a testa ao medir a altura.

Eram uns bons quatro metros e meio, e altura sempre me apavorou. Respirei fundo, me ajeitando na veirada do telhado, e tentando alcançar com o pé a grade da janela da cozinha.

_Vou morrer...

Quando finalmente consegui me firmar, me soltei desajeitadamente do telhado, tentando de tudo para não cair enquanto tentava alcançar os ferros abaixo da grade. Eu ainda estava muito longe do chão para poder pular. Helena sibilou lá de baixo, bufando.

_Podemos ir logo com isso, por favor?

Chiei para ela, tentando alcançar as barras. Mas meu outro pé deslizou, se desprendendo da grade, e fiquei pendurada apenas pelas mãos. Helena balbuciou, e o peso de meu corpo foi demais para meus dedos já doloridos, que também se desprenderam. Por uma fração de segundos, o vento balançou meus cabelos, e no próximo segundo, um estalo surdo acertou minhas costas, e senti meus pulmões se deslocarem.

_Inferno... _gaguejei lutando para puxar o ar novamente, e quando abri os olhos, o rosto de Helena estava a centímetros do meu, me observando com curiosidade, sua cabeça contornada pelo brilho da lua atrás dela.

_Você é uma vergonha para a natureza, sabia?

_Esqueci de mencionar que nunca precisei fugir de casa depois do toque de recolher...

_usei todo o sarcasmo que pude _Ainda mais morrendo de sono! Ela levantou uma sobrancelha bem desenhada.

_Está me atrasando, sabia? _ela lembrou, me oferecendo a mão. Com um protesto baixo, aceitei, e ela me ajudou a levantar.

Olhei o Neon estacionado sobre a soleira da garagem. Tinha bancos ótimos e macios para se dormir por longas horas.

_Não podemos ir no seu carro? _perguntei, sabendo que ela já tinha seus dezoitos anos e carta de habilitação.

_Dã... e acordar todo mundo? Você não pensa mesmo, não é?

Segundos depois, ambas estávamos correndo rua abaixo, escapando da mira da casa velha. Mesmo naquela hora, as ruas monótonas e cercadas de árvores velhas estavam tomadas por carros de todos os tipos com som alto ligado e pessoas de todos os tipos transitando por entre as calçadas ou escondidas fazendo coisas ilícitas nos becos quando cheguemos à cidade.

_Onde, exatamente, estamos indo? _perguntei depois de quinze minutos de caminhada.

_Você vai ver... _ela simplesmente disse, encerrando o assunto.

Minha curiosidade aumentou quando ela me puxou para as portas abertas de um prédio abandonado de manutenção de máquinas, mas quando eu ia abrir a boca para falar qualquer coisa, tipo, o que aquele absurdo todo significava, ela pôs o dedo indicador à frente a boca, pedindo silêncio.

O ar de coisas velhas, metal, ferrugem e graxa inundou minhas narinas quando entremos, e franzi a testa, mas Helena me puxou novamente para um canto em especial da área abandonada. Havia um elevador velho e cinzento num espaço livre entre duas paredes.

Ela apertou o botão, o chamando, e segundos depois, as portas se abriram.

A segui quando ela entrou, já de cara fechada por ser tirada da cama daquela forma e não receber demais informações sobre nosso destino.

Encostei-me a parede de trás, cheia de anúncios e cartazes inúteis, e cruzeis os braços. O cheiro de desinfetando e tabaco se desprendia de algum lugar, e logo, depois de alguns andares para baixo, para o subterrâneo, o barulho rangente das engrenagens do elevador foi sendo substituído por outro barulho muito mais alto e estranho. O nervosismo tomou forma em mim quando uma música barulhenta e vozes atordoantes começaram a vazar pelas paredes do elevador.

Quando ele finalmente parou, e as portas se abriram, luzes coloridas dançantes fizerem meus olhos piscar. A fumaça de tabaco encheu minha garganta, me fazendo tossir, e a multidão vacilante de pessoas me deixou atordoada.

_Nossa... você está querendo acabar comigo...

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