A respiração falhava de tempos em tempos, piorando com a má postura que, após tantas décadas, o fez corcunda. O Ancião retorcia o rosto em uma expressão horrenda de ódio e apreensão, sentado na poltrona centenária da saleta no final do corredor de sua casa - maior que as demais, afinal ele era O Ancião. Emitia uma espécie de rosnado ao soltar o ar por entre os lábios rachados. Batia as gengivas desprovidas de dentes umas nas outras e murmurava consigo mesmo. A saleta estava fria feito gelo, sem lenha para a lareira, pois Leonid não aparecera ainda com ela.
O Ancião acendeu – com extrema dificuldade por conta do mal de Parkinson – uma vela grossa e torta em cima da mesa, aproximando as mãos da chama bruxuleante para aquecê-las um pouquinho que fosse, evitando que as articulações doessem mais do que já o faziam. Uma corrente de ar forte entrava por alguma fresta que ele não conseguia achar, acometendo o corpo idoso e fraco com uma febre que aumentava com o passar dos minutos. Se
Leonid, sentado à beira da cama de seu avô, fitava o rosto pálido adormecido dele. A luz bruxuleante da vela conferia nuances quentes sobre o rosto do Ancião e uma gotinha de sangue ainda sujava uma de suas narinas. O clima rançoso do quarto parecia grudar em seu corpo, deixando-o com uma sensação gosmenta na pele. As tábuas de madeira riscada pelos anos de sapatos pisando e móveis arrastando estalavam vez ou outra, mas Leonid já estava acostumado com os rangidos e estalos. Havia até decorado onde fazia o quê.A porta se abriu sem cerimônia e Oxalis entrou com uma pilha de cobertores nos braços. O vestido cinza estava molhado na altura do abdômen e os cabelos loiros estavam bagunçados, cheios de mechas fora do coque mal feito. Leonid olhava para sua mãe com uma expressão vazia, como se vê-la não fosse nada. O rosto dela era tão parecido com o do Ancião que, vez ou outra, dava pena; o velho era horrível, de fato. Porém, o que o velho tinha de ruindade e ignorância, Oxalis
— Por que não podemos ir para alguma cidade e ficar lá, morando em alguma casa?Anemony ofegava com o esforço de andar pela neve carregando o fardo de utensílios em suas costas esqueléticas. Ela mantinha os cabelos prendidos feito um rabo de cavalo no topo da cabeça, como Clematis a ensinou no dia anterior; prender os cabelos era deveras prático na hora dos afazeres. A garota não levava tanta coisa quando Clematis, entretanto, seu mirrado estado a fazia sofrer com o menor dos pesos.— Porque nas cidades há muitas Mariposas. Com tantos lugares fechados e escuros, elas podem nos ferir até mesmo durante o dia se acabarmos entrando em alguma casa.— Ah, que droga. — Anemony resmungou.— Sei onde tem várias cabanas abandonadas por aqui, podemos morar em uma se não houver ninguém nelas. As pessoas acham mais seguro morar em vilarejos, você sabe.— E se não der certo?Clematis se surpreendia com a inocência e falta de saberes de A
Muscari andava de um lado ao outro na frente da porta do quarto, enrolando os dedos no tecido do avental puído. Ninguém tivera coragem de entrar no quarto para ver o que tinha acontecido, para ver se o Ancião ainda estava lá. Leonid saíra cedo para recolher mais lenha e Oxalis não havia acordado ainda; todos a deixavam dormir o quanto quisesse, vez ou outra, por conta do sofrimento a respeito de Anemony.Cansada de nutrir ansiedade, Muscari fechou a mão esquelética na maçaneta redonda e abriu a porta, apenas uma fresta, deparando-se com uma fatia do quarto vazio e ainda escuro, iluminado precariamente pela luz baça da manhã. A parte da cama que Muscari conseguia ver estava revirada, respingos de sangue e fluídos – que Muscari não sabia do que se tratavam – manchavam os lençóis.Abriu a porta mais ainda e se deteve: uma delas ainda estava lá dentro, no canto ao da janela, virada para a parede. Muscari paralisou, presa entre trancar a porta e nunca mais abrir a
A tenda tremulava com o vento quente que soprava do oeste. O véu achado nas ruínas das casas de uma cidade próxima ao deserto cobria a cabeça loura e a parte inferior do rosto para que o sol fizesse o menor estrago possível. Anemony carregava, pendurada por uma alça de couro em seu ombro direito, uma bolsa feita com estômago de camelo, algo que os povos do deserto usavam para guardar água e mantê-la fresca. Ela ouvia a água balançar dentro do reservatório esquisito a cada passo que dava pela areia fofa e traiçoeira – as dunas mudavam dia após dia, impossibilitando a localização por meio delas. Tinham apenas o sol e as estrelas como relógio, embora esse tipo de localização fosse mais difícil para Anemony. Ela entrou na tenda e tirou o véu negro da cabeça, aliviada por sair do sol e calor seco. Clematis varria com uma vassoura de palha os tapetes que cobriam o chão da tenda; embora fosse um tanto difícil manter os tapetes livres da areia. Ao menos o grosso dela conseguiam tirar.
Aquele dia havia sido difícil; a temperatura caíra drasticamente durante a noite – não bastasse o inverno rigoroso – e uma tempestade de neve ameaçava cair a qualquer instante. Cayden enfiava as mãos geladas dentro de luvas de lã vermelhas e sem dedos, repassando os planos de caça daquele dia: sair, caçar algum animal e voltar sem congelar um dedo que seja. As camadas de roupas velhas e cheias de furos não eram suficientes para o frio que o pegara de surpresa, mas teriam de bastar. Cobriu o rosto com a touca comum onde fez furos para os olhos, transformando em uma balaclava improvisada e calçou as botas grossas de pelo do lobo, um que caçou durante a primavera passada. Fitou seu reflexo no pedaço de metal lustroso que fazia as vezes de espelho e suspirou, de olhos cravados naquele par de íris verde-musgo tão tristes e conformados.O garoto magro de feições suaves e machucadas pelo frio esgueirou-se pela casa decrépita, descendo os degraus de madeira cinza cheios de fenda
A visão de sua casa era privilegiada: podia ver toda a colina onde Vilarejo ficava, via cada uma das casas de madeira enegrecida postas em duas filas, uma de cada lado de um caminho marcado que chamavam de Rua Primeira, uma espécie de rua principal, via até mesmo a Orla norte depois do muro de troncos que ergueram ao redor de Vilarejo. A vila descia a colina do lado oposto ao do extenso lago congelado atrás dela. Roudinie mantinha a janela aberta, deixando entrar o ar da primeira manhã após a Noite Eterna, esvoaçando seus cabelos negríssimos e longos; não tinha o hábito de cortar os fios. Por mais que o vento ressecasse seus olhos verdes e lábios pálidos, ela não ligava, havia passado tempo demais dentro daquela casa, trancafiada nela pelo medo da Noite e para sua segurança que qualquer bocado de luz natural a atraía como um inseto hipnotizado por uma vela.Aquele não era apenas o primeiro período diurno após a Noite Eterna, era também seu aniversário. Roudinie comemorava o pr
A terra dura se recusava a ser tirada aos nacos congelados pela pá de Emull. Cada vez que a fincava no solo eternamente endurecido era como se cavasse em um bloco de gelo; vez ou outra a pá rangia como se gemesse agoniada sempre que cravada na terra. Quase metade do dia havia sido gasto naquele trabalho e logo anoiteceria.Emull tirava os longos cabelos grisalhos do rosto, apoiado no cabo da pá. Seu corpo fraco e velho estremecia com o frio que se embrenhava em suas vestes surradas e a barba criava alguns nós com o vento que o açoitava sem pena. A pele enrugada e queimada de frio se franzia com a tristeza de cavar uma cova para sua própria filha, tudo o que o sobrara.A cada punhado de terra dura que Emull tirava e jogava ao lado o fazia se lembrar do riso contido de Roudinie, de sua preocupação silenciosa com Cayden, sua juventude desabrochando como uma florzinha de pétalas negras e miolo verde e o lembrava de como ela os defendia da hostilidade dos habitantes de
O saco onde levavam os poucos itens que puderam carregar pesava nas costas de Emull. O vento passava uivando por seus ouvidos e o homem se curvava cada vez mais, protegendo o rosto do gume afiado da ventania. Clematis cobria o rosto com um trapo amarelo em uma falha tentativa de se proteger do frio. Ela se preocupava com seu marido, afinal de contas ele era um homem de idade avançada e carregar peso em uma viagem de algumas horas no frio e neve era extremamente nocivo para Emull. Afundavam até os tornozelos na neve que ainda não havia se compactado, forçando as panturrilhas magras e fracas a trabalhar. Os músculos queimavam com o esforço e os estômagos vazios roncavam alto de fome.— Temos que parar, Emull. — Clematis pediu, tentando falar acima do som do vento.— Não. Precisamos ir mais longe, só mais um pouco.— Estou com cansada e com sede! Por favor...Emull olhou para trás sem parar de andar. Respirou fundo e, diminuindo os passos