Aquele dia havia sido difícil; a temperatura caíra drasticamente durante a noite – não bastasse o inverno rigoroso – e uma tempestade de neve ameaçava cair a qualquer instante. Cayden enfiava as mãos geladas dentro de luvas de lã vermelhas e sem dedos, repassando os planos de caça daquele dia: sair, caçar algum animal e voltar sem congelar um dedo que seja. As camadas de roupas velhas e cheias de furos não eram suficientes para o frio que o pegara de surpresa, mas teriam de bastar. Cobriu o rosto com a touca comum onde fez furos para os olhos, transformando em uma balaclava improvisada e calçou as botas grossas de pelo do lobo, um que caçou durante a primavera passada. Fitou seu reflexo no pedaço de metal lustroso que fazia as vezes de espelho e suspirou, de olhos cravados naquele par de íris verde-musgo tão tristes e conformados.
O garoto magro de feições suaves e machucadas pelo frio esgueirou-se pela casa decrépita, descendo os degraus de madeira cinza cheios de fendas. Cada passo os fazia ranger alto no silêncio da casa abandonada. Cayden passou pela janela do que um dia foi a sala e, encarando os flocos de neve que entravam com o vento, lembrou-se de tirar algumas ripas de madeira de algum canto da casa para tampar aquilo que mais se parecia com um buraco retangular na parede, não mais uma janela. O vento uivava como mil demônios ao redor da casa dia e noite, sem descanso. Cayden escondeu um par de facas nas botas e pegou sua lança – um cabo de vassoura com uma faca amarrada firmemente na ponta –, saindo para um dia branco e extremamente gelado.
A floresta de árvores quase nuas e congeladas – onde vivia – o protegia do grosso da neve e vento, porém não parecia fazer diferença; viver no que uma vez fora o norte russo era como estar preso em um dia igual a todos os outros, como se vivesse o mesmo dia seguidamente. Vez ou outra a rotina mudava com alguma tarefa inadiável como caçar, certificar-se de que todo e qualquer buraco na casa estava fechado ou, raramente, quando via alguém do Vilarejo.
Vilarejo era o pequeno conjunto de casas tão podres quanto a que habitava naquele momento, localizado duas horas longe da floresta. Não tinham ânimo o suficiente para batizar o lugar e “Vilarejo” parecera o suficiente. Cayden evitava pensar no maldito Vilarejo, nas malditas pessoas que lá viviam e no maldito dia em que fora banido dele.
Pelo simples roubo de um punhado de carne.
Claro que, em um mundo que já não era sequer a sombra do que um dia havia sido – chamavam os tempos atuais de pós-mundo –, um mundo transformado em ruínas faria dois séculos, qualquer punhado de comida e calor era mais precioso do que diamantes. Porém, banir um garoto de quatorze anos por um motivo que ele sempre considerou banal não tinha perdão para ele. Raras vezes Cayden encontrava pães duros e grandes, feitos de grãos escuros, em sua porta. Sabia que vinham de Roudinie, sua irmã. Ela se certificava de não o encontrar e Cayden desejava que ela parasse, mesmo que os pães fizessem muita diferença em sua pobre alimentação; o Vilarejo a baniria também se soubessem que Roudinie o levava comida escondido. Lá ela tinha proteção, calor e comida o suficiente para viver sem a sombra do medo de amanhecer morta de fome e frio. Caso fosse banida, tal realidade segura estaria acabada para Roudinie.
Nuvens de vapor se desprendiam de seus lábios entreabertos por baixo da touca, sumindo no frio cortante. Cayden andava encurvado contra o vento e mantinha a lança perto de seu tronco, segurando-a com uma das mãos enquanto na outra ia um pedaço longo de corda enrolada. Ele precisava se apressar, afinal a Noite Eterna chegaria ao final daquele dia e Cayden tinha de preparar-se para os quatro meses de escuridão que viriam.
E para o terror que viria junto da Noite Eterna.
No começo de sua vida, Cayden sempre ria do nome dado aos meses sem período diurno e ridicularizava as histórias sobre as Mariposas – espectros esguios da cor da neve com asas translúcidas como que feitas de vapor, seres que invadiam corpos humanos e os corroía de dentro para fora lentamente, durante dias. Enquanto morava no Vilarejo, Cayden não tivera contato algum com nenhuma Mariposa e pensava que era uma reles história para criancinhas bagunceiras ficarem quietas, até ser banido do Vilarejo e ter sua primeira noite de terror.
As três primeiras noites fora do Vilarejo, Cayden passou ao relento, encolhido embaixo de um pinheiro curvo que formava uma pequena toca de folhas e neve. Tentava se esquentar com o par de cobertores grossos os quais pudera pegar ao ser banido quando, entre as folhas de sua toca, viu a medonha criatura alada, de forma oscilante e rosto comprido munido de olhos ovais cor de gelo. Era um ser que tinha e não tinha uma forma ao mesmo tempo. Algo que Cayden gostaria de nunca ter de explicar. A Mariposa arrastava as asas no chão, deixando um rastro leve na neve. Um terror paralisante tomou conta de Cayden, que permaneceu calado, de olhos cravados na criatura até que o dia raiasse. Ela foi embora – por algum motivo desconhecido apareciam pela noite apenas –, deixando um Cayden apavorado para trás. Ele procurou desesperado por algum abrigo onde pudesse se esconder das malditas Mariposas até que achou aquela casa. Na primeira noite nela, Cayden dormiu dentro de um freezer enferrujado, aterrorizado com a mais remota chance de ver uma delas novamente.
Um ano e meio após vê-las pela primeira vez não era tempo o suficiente para amenizar o horror que sentia quando elas estavam por perto; era como se emanassem aquele sentimento aterrador. Mesmo sem ver, Cayden sabia quando estavam perto ao sentir tais coisas.
Ele arrastava os pés pela neve que o cobria os tornozelos, chegando ao ponto onde a floresta acabava, que chamavam de Orla, o ponto antes do deserto de neve que parecia não ter fim. Sabia que, antes da Noite Eterna começar, um grupo de cães selvagens passava por ali em direção à um aglomerado de cavernas de gelo, onde se escondiam até o dia nascer de novo. Eram cães enormes e gordos o suficiente para render carne por quase toda a Noite. Dali, Cayden podia ouvi-los ganir e latir, rosnar e uivar. Subiu em uma árvore da orla e esperou, pronto para fincar a lança em um deles.
Horas se passaram, levando a esperança e paciência que ele tinha, substituindo-as por medo de morrer no frio e na fome e pela noite que chegava. Cayden não podia arriscar estar fora da casa quando escurecesse. O frio endurecia suas articulações e congelava seus cílios, vez ou outra grudando as pálpebras.
Em uma lufada de sorte, os cães passaram trotando embaixo da árvore onde Cayden estava empoleirado. Ele esperou até que passassem quase todos e, mirando em um dos três últimos, Cayden puxou o braço direito para trás e arremessou a lança com o resto de força que o frio não havia congelado ainda. A lâmina se fincou na cabeça enorme do cão selvagem e o matou imediatamente – Cayden prezava por uma morte indolor – e os demais correram para longe, assustando-se. O toc que fazia quando ele os acertava ecoava em sua cabeça por alguns minutos até que a brancura do campo branco sem fim o trazia de volta. Desceu da árvore com cuidado, fechou as mãos ao redor do cabo da lança e segurou o animal no chão com um dos pés enquanto puxava o cabo com força. Amarrou as patas traseiras com a corda e iniciou o trabalhoso caminho de volta, deixando um rastro fino de sangue do cão na neve, desesperado para estar na segurança de sua destruída casa.
Avistou, ao longe e em meio à neve que caía em peso, a porta de entrada amarela feito a gema de um ovo. Cayden gemeu de alívio e apressou o passo, notando que a claridade se esvaía.
...
O tempo banido o ensinou diversos macetes de sobrevivência: tirar o couro do animal, cortar a carne e armazená-la, tudo em menos de duas horas. Deixava os cortes de carne vermelha e dura em um caixote de plástico na cozinha, onde improvisou uma geladeira com um armário velho e uma abertura na parede atrás dele, coberta com uma grelha de churrasqueira. O frio de fora congelava rápido os alimentos dentro do armário e tal método de armazenamento nunca o dera problema, sendo extremamente eficaz.
Teria de racionar aquele cão, comer o necessário apenas para não morrer de fome. Havia cento e dez pedaços pequenos de carne. Por mais que o cão selvagem fosse grande e tivesse bastante carne, não seria o suficiente para os cento e vinte e dois dias de Noite Eterna. Tinha, além daquele cão, um punhado de café que achou com um corpo enegrecido de alguém que morrera de frio depois da Orla, meio pão duro de grãos, ervas secas para temperar e algum chá. Aquela comida teria de bastar para a Noite Eterna.
O pedaço de carne daquele dia já fora posto na panela de ferro pesado pendurada na lareira acesa. Cayden a encheu com neve e uma pitada de ervas junto da carne; precisava fazer de tudo para que a comida rendesse.
Mexia a sopa rala com uma colher de madeira que ele mesmo havia feito meses antes. Sentado em um banquinho de toco de árvore, Cayden se lembrava da comida boa que tinha no Vilarejo. Podia ser pouca, mas valia cada pedaço: o queijo escuro, as massas e a boa e densa cerveja que produziam... Sentia falta, mas a raiva do povoado de lá encobria a saudade.
Um resquício de luz ainda iluminava o céu. Cayden se lembrou da janela aberta e levantou-se do banquinho, procurando pelas tábuas de madeira que estavam empilhadas em algum canto da casa. Mesmo que ainda houvesse luz lá fora, dentro da casa já tinha escurecido. O fogo da lareira iluminava cerca de dois metros ao redor dele, deixando o restante do andar inferior no escuro. Por fim as achou ao lado da porta de entrada, entre ela e a janela a ser fechada, junto do martelo enferrujado e dos pregos velhos que Cayden havia tirado de uma cama quebrada no quarto do andar de cima. Martelou até a metade quatro pregos na tábua, um em cada canto das extremidades e a posicionou na janela, batendo até o fim nos pregos para prender a tábua. Repetiu aquele processo por mais quatro vezes até que a janela estivesse devidamente fechada.
O cheiro de carne cozida enchia a casa, fazendo o estômago de Cayden roncar. Voltou para seu posto no banquinho e mexeu mais alguns segundos antes de começar a comer na panela mesmo, com a mesma colher que mexia a comida. Faltava sal, a carne era dura como carne de cavalo e o caldo estava ralo, mas a comida o nutriria devidamente. Mastigou devagar e muitas vezes, procurando saciar-se, encolhido na frente da lareira. Durante os dois meses que antecederam a Noite, Cayden juntou muita lenha para manter-se aquecido. Pretendia ter juntado alimentos, mas mal encontrou o suficiente para cada dia, quem diria para estocar.
Terminada a refeição, Cayden colocou a panela perto da lareira e permaneceu sentado, digerindo sua primeira Noite Eterna sozinho. A casa parecia segura contra invasores – animais ou Mariposas –, relativamente aquecida e pronta para a Noite. Ele ponderava colocar alguma coisa na sala vazia quando os meses se passassem, ocupando um pouco da solidão de ter como móvel apenas o banquinho de toco de árvore. Cayden sentia o sono chegando. Sua cabeça tombava para frente e ele pensava se seria ruim deitar na frente da lareira e dormir ali mesmo.
Um estrondo repentino o assustou, fazendo-o se levantar de um pulo. Olhava ao redor desesperado, procurando a fonte do barulho. Por fim, achou: as tábuas da janela tinham caído, abrindo uma fenda de terror em seu peito. Cayden fitava o negrume lá fora, tremendo, tentando convencer a si mesmo de que deveria ir até a janela e pregar de volta as tábuas.
As tentativas de se convencer levaram tempo demais. Na escuridão do mundo fora da casa, Cayden viu uma delas encarando-o ao longe, branca e tremulante contra o breu da Noite Eterna. Ele sentia as ondas de pavor atingindo seu corpo como chicotadas, congelando-o onde estava. A lareira apagou com o vento cortante que vinha da janela, vento esse que parecia empurrar a Mariposa direto para a casa. Cayden sequer pareceu notar a urina que escorria pelas suas pernas e formava uma poça no chão de madeira cinza. Os malditos olhos ovais e etéreos o viram, ele sabia. Ele podia vê-los também, por que não poderia ser visto?
Ela tinha a altura de um andar da casa, não emitia som algum e pairava alguns centímetros do chão naquele momento. As asas brancas fantasmagóricas estavam abertas, denotando o interesse da criatura que se aproximava perigosamente. Cada célula de seu corpo gritava em desespero, travadas e expostas. A Mariposa estava na janela, passando por ela como neblina e voltando para a forma medonha. As asas abriram-se por completo e tomaram toda a sala feito um fantasma gigante. Cayden já podia sentir suas entranhas ardendo e se contorcendo, virando carne moída sob o olhar da Mariposa, expulsando o sangue do corpo, que saía pela boca em rios. Quando ela o tocou, Cayden sentiu o gelo e amargor de mil almas frias agonizando em um inferno de gelo sem fim. Sentia o inverno pós-mundo dentro de si, tomando o espaço de seus órgãos dilacerados, congelando os restos deles, congelando Cayden de dentro para fora. Seus olhos nada viam além de neblina e asas espectrais.
Maldito Vilarejo que o banira.
A visão de sua casa era privilegiada: podia ver toda a colina onde Vilarejo ficava, via cada uma das casas de madeira enegrecida postas em duas filas, uma de cada lado de um caminho marcado que chamavam de Rua Primeira, uma espécie de rua principal, via até mesmo a Orla norte depois do muro de troncos que ergueram ao redor de Vilarejo. A vila descia a colina do lado oposto ao do extenso lago congelado atrás dela. Roudinie mantinha a janela aberta, deixando entrar o ar da primeira manhã após a Noite Eterna, esvoaçando seus cabelos negríssimos e longos; não tinha o hábito de cortar os fios. Por mais que o vento ressecasse seus olhos verdes e lábios pálidos, ela não ligava, havia passado tempo demais dentro daquela casa, trancafiada nela pelo medo da Noite e para sua segurança que qualquer bocado de luz natural a atraía como um inseto hipnotizado por uma vela.Aquele não era apenas o primeiro período diurno após a Noite Eterna, era também seu aniversário. Roudinie comemorava o pr
A terra dura se recusava a ser tirada aos nacos congelados pela pá de Emull. Cada vez que a fincava no solo eternamente endurecido era como se cavasse em um bloco de gelo; vez ou outra a pá rangia como se gemesse agoniada sempre que cravada na terra. Quase metade do dia havia sido gasto naquele trabalho e logo anoiteceria.Emull tirava os longos cabelos grisalhos do rosto, apoiado no cabo da pá. Seu corpo fraco e velho estremecia com o frio que se embrenhava em suas vestes surradas e a barba criava alguns nós com o vento que o açoitava sem pena. A pele enrugada e queimada de frio se franzia com a tristeza de cavar uma cova para sua própria filha, tudo o que o sobrara.A cada punhado de terra dura que Emull tirava e jogava ao lado o fazia se lembrar do riso contido de Roudinie, de sua preocupação silenciosa com Cayden, sua juventude desabrochando como uma florzinha de pétalas negras e miolo verde e o lembrava de como ela os defendia da hostilidade dos habitantes de
O saco onde levavam os poucos itens que puderam carregar pesava nas costas de Emull. O vento passava uivando por seus ouvidos e o homem se curvava cada vez mais, protegendo o rosto do gume afiado da ventania. Clematis cobria o rosto com um trapo amarelo em uma falha tentativa de se proteger do frio. Ela se preocupava com seu marido, afinal de contas ele era um homem de idade avançada e carregar peso em uma viagem de algumas horas no frio e neve era extremamente nocivo para Emull. Afundavam até os tornozelos na neve que ainda não havia se compactado, forçando as panturrilhas magras e fracas a trabalhar. Os músculos queimavam com o esforço e os estômagos vazios roncavam alto de fome.— Temos que parar, Emull. — Clematis pediu, tentando falar acima do som do vento.— Não. Precisamos ir mais longe, só mais um pouco.— Estou com cansada e com sede! Por favor...Emull olhou para trás sem parar de andar. Respirou fundo e, diminuindo os passos
Dois meses haviam se passado após mudarem-se de Vilarejo. Não se distanciavam demais do lugar por segurança, por saberem o que tinha ao redor da vila, mas não ao longe dela. Os dias fora de lá eram mais exaustivos: não possuíam o conforto de uma casa, outras pessoas para conversar, mais opções de comida... Emull e Clematis tinham construído uma cabana de galhos e peles de ursos em um local onde os pinheiros estavam mais próximos uns dos outros. A cabana tinha formato piramidal e acolhia a ambos com conforto, a neve não se acumulava no topo por conta do formato e o vento contornava a cabana.O vento era constante, porém os pinheiros quebravam um pouco da velocidade dele perto da cabana. Próximo dali havia um lago onde Clematis abriu um buraco no gelo para pegar água, um ou outro peixe ou lavar alguma coisa. A água era gélida, mas seria exaustivo além da conta carregar água o suficiente e esquentá-la para fazer o que poderia facilmente ser feito no lago.Clemat
A respiração falhava de tempos em tempos, piorando com a má postura que, após tantas décadas, o fez corcunda. O Ancião retorcia o rosto em uma expressão horrenda de ódio e apreensão, sentado na poltrona centenária da saleta no final do corredor de sua casa - maior que as demais, afinal ele era O Ancião. Emitia uma espécie de rosnado ao soltar o ar por entre os lábios rachados. Batia as gengivas desprovidas de dentes umas nas outras e murmurava consigo mesmo. A saleta estava fria feito gelo, sem lenha para a lareira, pois Leonid não aparecera ainda com ela.O Ancião acendeu – com extrema dificuldade por conta do mal de Parkinson – uma vela grossa e torta em cima da mesa, aproximando as mãos da chama bruxuleante para aquecê-las um pouquinho que fosse, evitando que as articulações doessem mais do que já o faziam. Uma corrente de ar forte entrava por alguma fresta que ele não conseguia achar, acometendo o corpo idoso e fraco com uma febre que aumentava com o passar dos minutos. Se
Leonid, sentado à beira da cama de seu avô, fitava o rosto pálido adormecido dele. A luz bruxuleante da vela conferia nuances quentes sobre o rosto do Ancião e uma gotinha de sangue ainda sujava uma de suas narinas. O clima rançoso do quarto parecia grudar em seu corpo, deixando-o com uma sensação gosmenta na pele. As tábuas de madeira riscada pelos anos de sapatos pisando e móveis arrastando estalavam vez ou outra, mas Leonid já estava acostumado com os rangidos e estalos. Havia até decorado onde fazia o quê.A porta se abriu sem cerimônia e Oxalis entrou com uma pilha de cobertores nos braços. O vestido cinza estava molhado na altura do abdômen e os cabelos loiros estavam bagunçados, cheios de mechas fora do coque mal feito. Leonid olhava para sua mãe com uma expressão vazia, como se vê-la não fosse nada. O rosto dela era tão parecido com o do Ancião que, vez ou outra, dava pena; o velho era horrível, de fato. Porém, o que o velho tinha de ruindade e ignorância, Oxalis
— Por que não podemos ir para alguma cidade e ficar lá, morando em alguma casa?Anemony ofegava com o esforço de andar pela neve carregando o fardo de utensílios em suas costas esqueléticas. Ela mantinha os cabelos prendidos feito um rabo de cavalo no topo da cabeça, como Clematis a ensinou no dia anterior; prender os cabelos era deveras prático na hora dos afazeres. A garota não levava tanta coisa quando Clematis, entretanto, seu mirrado estado a fazia sofrer com o menor dos pesos.— Porque nas cidades há muitas Mariposas. Com tantos lugares fechados e escuros, elas podem nos ferir até mesmo durante o dia se acabarmos entrando em alguma casa.— Ah, que droga. — Anemony resmungou.— Sei onde tem várias cabanas abandonadas por aqui, podemos morar em uma se não houver ninguém nelas. As pessoas acham mais seguro morar em vilarejos, você sabe.— E se não der certo?Clematis se surpreendia com a inocência e falta de saberes de A
Muscari andava de um lado ao outro na frente da porta do quarto, enrolando os dedos no tecido do avental puído. Ninguém tivera coragem de entrar no quarto para ver o que tinha acontecido, para ver se o Ancião ainda estava lá. Leonid saíra cedo para recolher mais lenha e Oxalis não havia acordado ainda; todos a deixavam dormir o quanto quisesse, vez ou outra, por conta do sofrimento a respeito de Anemony.Cansada de nutrir ansiedade, Muscari fechou a mão esquelética na maçaneta redonda e abriu a porta, apenas uma fresta, deparando-se com uma fatia do quarto vazio e ainda escuro, iluminado precariamente pela luz baça da manhã. A parte da cama que Muscari conseguia ver estava revirada, respingos de sangue e fluídos – que Muscari não sabia do que se tratavam – manchavam os lençóis.Abriu a porta mais ainda e se deteve: uma delas ainda estava lá dentro, no canto ao da janela, virada para a parede. Muscari paralisou, presa entre trancar a porta e nunca mais abrir a