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5. Morangos Suculentos e Uma Lâmina Enferrujada

Dois meses haviam se passado após mudarem-se de Vilarejo. Não se distanciavam demais do lugar por segurança, por saberem o que tinha ao redor da vila, mas não ao longe dela. Os dias fora de lá eram mais exaustivos: não possuíam o conforto de uma casa, outras pessoas para conversar, mais opções de comida... Emull e Clematis tinham construído uma cabana de galhos e peles de ursos em um local onde os pinheiros estavam mais próximos uns dos outros. A cabana tinha formato piramidal e acolhia a ambos com conforto, a neve não se acumulava no topo por conta do formato e o vento contornava a cabana. 

O vento era constante, porém os pinheiros quebravam um pouco da velocidade dele perto da cabana. Próximo dali havia um lago onde Clematis abriu um buraco no gelo para pegar água, um ou outro peixe ou lavar alguma coisa. A água era gélida, mas seria exaustivo além da conta carregar água o suficiente e esquentá-la para fazer o que poderia facilmente ser feito no lago. 

Clematis caminhava devagar de volta para a cabana após alguns galhos coletados para uma fogueira mais tarde. No centro da cabana de pouco mais de dois metros de altura, fizeram um buraco no chão de terra endurecida onde acendiam a fogueira para cozinhar, aquecer ou secar roupas. Ela entrou e colocou os galhos em um canto, tratando de reavivar o fogo. Emull, encolhido em meio aos cobertores e peles de cães selvagens, estremecia em meio à tosse carregada; pegara pneumonia depois de tanto dormir de costas para o vento que entrava por uma fresta do antigo abrigo, para que Clematis não sentisse frio. 

Ela sorria para Emull, colocando mais lenha na fogueira. Clematis tentava passar segurança para ele, mesmo que, por dentro, o medo a roesse. Emull tinha certa idade e uma doença como aquela o derrubava. Àquela altura da situação, uma doença poderia ser fatal.

Clematis colocava pão de centeio para ferver na água enquanto mordiscava um pedaço que tirou antes de pô-lo na água. Aquela receita costumava sustentar muito bem, embora parecesse um pouco esquisita, transformando-se em sopa de pão. 

— Tudo em ordem, querida? 

A voz de Emull era baixa e parecia vibra baixinho por conta dos pulmões cheios de secreção sanguinolenta. 

— Tudo ótimo. Aqui parece não ter Mariposa alguma, lenha seca é fácil de achar e ainda temos bastante pão. 

— Não aguento mais pão. — Emull resmungou esperando que Clematis não escutasse. 

— Aqueles arbustos na outra extremidade do lago devem estar carregados de frutinhas maduras. Quer algumas? 

Ela percebia que Emull não gostava de deixá-la fazer tudo sozinha, mas não tinham outra opção. Depois de alguns segundos ponderando, Emull se deitou de lado e sorriu debilmente. 

— Acho que quero.

Ela se preparou para sair novamente, colocando uma faca na bolsa esverdeada junto de uma garrafa de alumínio que comportava quase três litros; precisavam de mais água. Pendurou a bolsa no ombro e despediu-se de Emull, fechando a cabana para que o calor permanecesse lá dentro. 

A preocupação a enchia até ameaçar explodir seu corpo. Sabia que ele não sairia dessa com vida e precisava fazer de seus últimos dias os melhores – algo extremamente difícil com a morte de Roudinie e o sumiço de Cayden rondando a cabana. Emull tinha crises de tosse por horas, cuspindo enormes quantidades de sangue esverdeado e espesso. Os chás quentes e o fogo não eram mais suficientes para mantê-lo aquecido, os quase sessenta anos de Emull pioravam a pneumonia e seu corpo descarnado não aguentava ficar em pé por mais de cinco minutos. 

Clematis parou atrás de uma árvore grossa na beira do lago e se encolheu aos pés dela, chorando baixo. Estava mais sozinha do que nunca, jamais havia precisado tanto de seus filhos como o precisava naquele momento e sabia que, se pedisse ajuda de Vilarejo, eles fechariam os portões na sua cara, afinal eles foram embora sem que ninguém soubesse e, para todos os efeitos, estavam banidos. Quem deixava a vila passava a ser desconsiderado por eles. 

Um tímido movimento na margem do lago chamou a atenção de Clematis, que se esgueirou pelo esconderijo para avaliar se havia perigo. Um vislumbre rosa rastejava entre os arbustos carregados de frutinhas silvestres, demorando-se em cada um deles. 

Anemony.

A língua de Clematis assemelhava-se à uma lixa, tamanha era a secura de sua boca. Via o topo da cabeça loura suja vez ou outra em meio às folhas; a maldita garota não desgrudava das roupas de Roudinie. Certamente ela mesma havia matado sua filha. Tirou a faca da bolsa e escondeu na manga longa da blusa de lã rudemente confeccionada, deixando a bolsa aos pés da árvore. Caminhou como um gato até os arbustos e esperou a garota emergir deles de novo.

Anemony ergueu a cabeça, feliz da vida com o punhado de morangos silvestres em mãos. Colocou tudo em uma pequenina cestinha e preparava-se para voltar ao trabalho quando notou Clematis ali, em pé na orla do pequeno mar de arbustos. A garota arregalou os olhos negros – iguais ao de toda a sua maldita família – e parou de pegar frutinhas, torcendo as mãos no colo. 

— Olá! — Anemony tentou soar alegre e receptiva.

— Anemony. Está bem longe de Vilarejo, não está?

— É-é que não tem mais frutinhas l-lá perto.

Clematis tirou a faca avermelhada de ferrugem de dentro da manga, segurando firme com a mão direita. Anemony anuviou, inclinando a cabeça com o olhar fixo na faca. 

Por um instante, Clematis jurou que se jogaria na garota e fincaria a faca em sua pele queimada de frio quantas vezes fosse possível para livrar-se daquele sentimento de vazio. Porém, ao ver a menina encolhida daquele jeito olhando-a com ares apavorados, Clematis imaginou se aquela foi a expressão que Roudinie fez antes de morrer. Ela se lembrou de como a filha era esperta e forte, e um sopro de clareza a tomou. Não poderia ter sido Anemony, bobinha e fraca como um coelho raquítico faminto. Sua filha estava morta, não necessitava mais do calor de seu xale rosa-coral. 

Clematis guardou a faca, envergonhada.

— É... desculpe. Achei que fosse algo perigoso. Também vim pegar frutinhas para o Emull.

Ela se ajoelhou no arbusto ao lado de Anemony e começou a catar os frutos, formando uma bolsinha com a barra da blusa e jogando os morangos dentro, ignorando Anemony. A garota, ainda em choque, observava Clematis.

— Não vai me matar? — Anemony sussurrou.

— Volte para a vila, garota. O mundo fora dela não é para meninas como você. 

— E nem o mundo dentro dela. — Murmurou a menina.

Clematis parou a colheita e fitou Anemony, captando algo que a menina não disse, mas queria. 

— Como assim?

Anemony voltou a pegar moranguinhos suculentos, distraindo-se momentaneamente. Clematis notou a extrema magreza e hematomas na pequenina garota – que mais parecia ter dez anos, não os treze que fez no outono. Anemony enfiou alguns morangos na boca, mastigando avidamente como se não comesse havia dias. 

— Anemony, o que está havendo?

A menina começou a fungar enquanto comia, tentando conter as lágrimas iminentes. Seus ombros encolhidos tremiam e não demorou para que começasse a chorar convulsivamente. Clematis queria abraçá-la, mas ainda se ressentia com Anemony. 

Quando se acalmou o suficiente para falar, Anemony colocou a cestinha de lado e secou as lágrimas em seu rosto lívido. 

— Eu vim sem intenção de voltar para Vilarejo. 

— Por quê?

— Aqui, nesses arbustos, eu comi mais do que comeria uma semana toda na casa do meu avô, enquanto o Ancião pode se esbaldar com um pernil inteiro se quiser. Eu... eu cansei de apanhar tanto por motivo algum, cansei de ser escrava deles.

Clematis sentia-se estranha ouvindo as confissões de Anemony, alguém que ela jurou que mataria assim que possível. Olhando para o céu, ela viu que ainda era cedo – cerca de nove da manhã – e logo menos os habitantes de Vilarejo sairiam para coletar lenha e alimentos. Não iriam tão longe a ponto de Clematis e Anemony correrem o risco de serem julgadas por eles, mas todo cuidado era pouco. 

— Vai ficar pior quando eu crescer e virar mocinha. — Anemony sussurrou pesarosa. 

Uma lufada de asco e pena acertou Clematis quando ela entendeu o que a menina queria dizer. Provavelmente a abusariam ou forçariam casamento com familiares; algo que não era raro acontecer em Vilarejo. Clematis tinha de pensar rápido: levaria a garota consigo ou a deixaria à própria sorte? Não poderia largar alguém tão dependente e jovem, Anemony certamente morreria se ficasse sozinha fora da vila e dentro dela havia o terror que sua família a infringia. 

A faca em sua manga pesava como um tijolo. 

Não mais do que pesavam as opções em suas mãos. 

...

O crepúsculo tingia os céus com cores em tom pastel, indicando que o sol se poria em pouco tempo. Já podiam ver a cabana alguns metros à frente, erguendo-se do chão embranquecido de neve.

Floquinhos tímidos se desprendiam do céu, pairando até a primeira superfície que encontravam. Clematis se repreendia mentalmente por ter deixado Emull sozinho por tanto tempo, mas aproveitou a ajuda de Anemony para pegar mais lenha, mais frutinhas e pôde encher a garrafa até a borda. 

— É ali que está morando? — Anemony perguntou.

— Sim, só isso nos é possível no momento. 

O fogo havia se extinguido faria algum tempo e Clematis notou o silêncio medonho dentro da cabana assim que entrou, seguida de Anemony. 

— Acenda o fogo. — Clematis pediu para Anemony. 

A garota achou a pederneira com dificuldade – estava demasiado escuro na cabana – e tratou de fazer o que Clematis pediu. A luz e o calor bem-vindos tomaram a cabana e Clematis, chocada e ao mesmo tempo aliviada, fitava o corpo azulado de Emull. Seus olhos fechados e o semblante tranquilo indicavam que ele morrera dormindo, o que a aliviava, de certo modo. Os dias de sofrimento intenso dele a prepararam para aquele momento que ela sabia que viria sem demora. 

Anemony observava Clematis ajoelhada ao lado de Emull, chorando baixinho e acariciando os cabelos brancos dele. Não ousaria se intrometer. Sabia que Emull estava severamente doente pois Clematis a contara mais cedo, mas não estava preparada para aquilo.

Clematis acalmou-se e, enfim, pareceu se lembrar de que Anemony estava ali. Olhou por sobre o ombro e sorriu tristonha. 

— Espere aqui enquanto eu o levo para o lago, está bem?

Anemony assentiu sem saber o que fazer. Clematis enrolou o corpo mirrado e leve de Emull em uma única pele animal e o arrastou para fora da cabana sem muito esforço. 

Sozinha ali dentro, a garota bateu as peles e cobertores e formou uma nova “cama” no canto contrário da cabana. Ajeitou as coisas como pôde e se sentou na nova cama, esperando por Clematis. Anemony achava incrivelmente criativa a ideia que os dois tiveram de cobrir o chão com as pedras planas da margem do lago para que não tivessem contato direto com a terra, mantendo a cabana mais limpa desse jeito. 

Quando achava que Clematis não voltaria mais – a noite já havia chegado –, a mulher esgueirou-se para dentro da cabana, cansada e triste, mas bem. Ela se sentou ao lado da garota e as cobriu com uma manta de lã.

— Estávamos juntos há muito tempo. 

— Eu sempre o achei muito velho. — Confessou Anemony, com uma pontada de vergonha.

Clematis sorriu, sabendo que os mais jovens sempre achavam aquilo.

— Ele era quase vinte anos mais velho, mas foi e sempre será meu grande amor. 

— O que fez com ele?

— Joguei no lago pelo buraco que fiz no gelo uns dias atrás. Era o que tínhamos combinado. 

— E agora? — Anemony parecia perdida.

— Agora vam os dormir. Amanhã procuramos outro lugar para montar a cabana. 

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