Dois meses haviam se passado após mudarem-se de Vilarejo. Não se distanciavam demais do lugar por segurança, por saberem o que tinha ao redor da vila, mas não ao longe dela. Os dias fora de lá eram mais exaustivos: não possuíam o conforto de uma casa, outras pessoas para conversar, mais opções de comida... Emull e Clematis tinham construído uma cabana de galhos e peles de ursos em um local onde os pinheiros estavam mais próximos uns dos outros. A cabana tinha formato piramidal e acolhia a ambos com conforto, a neve não se acumulava no topo por conta do formato e o vento contornava a cabana.
O vento era constante, porém os pinheiros quebravam um pouco da velocidade dele perto da cabana. Próximo dali havia um lago onde Clematis abriu um buraco no gelo para pegar água, um ou outro peixe ou lavar alguma coisa. A água era gélida, mas seria exaustivo além da conta carregar água o suficiente e esquentá-la para fazer o que poderia facilmente ser feito no lago.
Clematis caminhava devagar de volta para a cabana após alguns galhos coletados para uma fogueira mais tarde. No centro da cabana de pouco mais de dois metros de altura, fizeram um buraco no chão de terra endurecida onde acendiam a fogueira para cozinhar, aquecer ou secar roupas. Ela entrou e colocou os galhos em um canto, tratando de reavivar o fogo. Emull, encolhido em meio aos cobertores e peles de cães selvagens, estremecia em meio à tosse carregada; pegara pneumonia depois de tanto dormir de costas para o vento que entrava por uma fresta do antigo abrigo, para que Clematis não sentisse frio.
Ela sorria para Emull, colocando mais lenha na fogueira. Clematis tentava passar segurança para ele, mesmo que, por dentro, o medo a roesse. Emull tinha certa idade e uma doença como aquela o derrubava. Àquela altura da situação, uma doença poderia ser fatal.
Clematis colocava pão de centeio para ferver na água enquanto mordiscava um pedaço que tirou antes de pô-lo na água. Aquela receita costumava sustentar muito bem, embora parecesse um pouco esquisita, transformando-se em sopa de pão.
— Tudo em ordem, querida?
A voz de Emull era baixa e parecia vibra baixinho por conta dos pulmões cheios de secreção sanguinolenta.
— Tudo ótimo. Aqui parece não ter Mariposa alguma, lenha seca é fácil de achar e ainda temos bastante pão.
— Não aguento mais pão. — Emull resmungou esperando que Clematis não escutasse.
— Aqueles arbustos na outra extremidade do lago devem estar carregados de frutinhas maduras. Quer algumas?
Ela percebia que Emull não gostava de deixá-la fazer tudo sozinha, mas não tinham outra opção. Depois de alguns segundos ponderando, Emull se deitou de lado e sorriu debilmente.
— Acho que quero.
Ela se preparou para sair novamente, colocando uma faca na bolsa esverdeada junto de uma garrafa de alumínio que comportava quase três litros; precisavam de mais água. Pendurou a bolsa no ombro e despediu-se de Emull, fechando a cabana para que o calor permanecesse lá dentro.
A preocupação a enchia até ameaçar explodir seu corpo. Sabia que ele não sairia dessa com vida e precisava fazer de seus últimos dias os melhores – algo extremamente difícil com a morte de Roudinie e o sumiço de Cayden rondando a cabana. Emull tinha crises de tosse por horas, cuspindo enormes quantidades de sangue esverdeado e espesso. Os chás quentes e o fogo não eram mais suficientes para mantê-lo aquecido, os quase sessenta anos de Emull pioravam a pneumonia e seu corpo descarnado não aguentava ficar em pé por mais de cinco minutos.
Clematis parou atrás de uma árvore grossa na beira do lago e se encolheu aos pés dela, chorando baixo. Estava mais sozinha do que nunca, jamais havia precisado tanto de seus filhos como o precisava naquele momento e sabia que, se pedisse ajuda de Vilarejo, eles fechariam os portões na sua cara, afinal eles foram embora sem que ninguém soubesse e, para todos os efeitos, estavam banidos. Quem deixava a vila passava a ser desconsiderado por eles.
Um tímido movimento na margem do lago chamou a atenção de Clematis, que se esgueirou pelo esconderijo para avaliar se havia perigo. Um vislumbre rosa rastejava entre os arbustos carregados de frutinhas silvestres, demorando-se em cada um deles.
Anemony.
A língua de Clematis assemelhava-se à uma lixa, tamanha era a secura de sua boca. Via o topo da cabeça loura suja vez ou outra em meio às folhas; a maldita garota não desgrudava das roupas de Roudinie. Certamente ela mesma havia matado sua filha. Tirou a faca da bolsa e escondeu na manga longa da blusa de lã rudemente confeccionada, deixando a bolsa aos pés da árvore. Caminhou como um gato até os arbustos e esperou a garota emergir deles de novo.
Anemony ergueu a cabeça, feliz da vida com o punhado de morangos silvestres em mãos. Colocou tudo em uma pequenina cestinha e preparava-se para voltar ao trabalho quando notou Clematis ali, em pé na orla do pequeno mar de arbustos. A garota arregalou os olhos negros – iguais ao de toda a sua maldita família – e parou de pegar frutinhas, torcendo as mãos no colo.
— Olá! — Anemony tentou soar alegre e receptiva.
— Anemony. Está bem longe de Vilarejo, não está?
— É-é que não tem mais frutinhas l-lá perto.
Clematis tirou a faca avermelhada de ferrugem de dentro da manga, segurando firme com a mão direita. Anemony anuviou, inclinando a cabeça com o olhar fixo na faca.
Por um instante, Clematis jurou que se jogaria na garota e fincaria a faca em sua pele queimada de frio quantas vezes fosse possível para livrar-se daquele sentimento de vazio. Porém, ao ver a menina encolhida daquele jeito olhando-a com ares apavorados, Clematis imaginou se aquela foi a expressão que Roudinie fez antes de morrer. Ela se lembrou de como a filha era esperta e forte, e um sopro de clareza a tomou. Não poderia ter sido Anemony, bobinha e fraca como um coelho raquítico faminto. Sua filha estava morta, não necessitava mais do calor de seu xale rosa-coral.
Clematis guardou a faca, envergonhada.
— É... desculpe. Achei que fosse algo perigoso. Também vim pegar frutinhas para o Emull.
Ela se ajoelhou no arbusto ao lado de Anemony e começou a catar os frutos, formando uma bolsinha com a barra da blusa e jogando os morangos dentro, ignorando Anemony. A garota, ainda em choque, observava Clematis.
— Não vai me matar? — Anemony sussurrou.
— Volte para a vila, garota. O mundo fora dela não é para meninas como você.
— E nem o mundo dentro dela. — Murmurou a menina.
Clematis parou a colheita e fitou Anemony, captando algo que a menina não disse, mas queria.
— Como assim?
Anemony voltou a pegar moranguinhos suculentos, distraindo-se momentaneamente. Clematis notou a extrema magreza e hematomas na pequenina garota – que mais parecia ter dez anos, não os treze que fez no outono. Anemony enfiou alguns morangos na boca, mastigando avidamente como se não comesse havia dias.
— Anemony, o que está havendo?
A menina começou a fungar enquanto comia, tentando conter as lágrimas iminentes. Seus ombros encolhidos tremiam e não demorou para que começasse a chorar convulsivamente. Clematis queria abraçá-la, mas ainda se ressentia com Anemony.
Quando se acalmou o suficiente para falar, Anemony colocou a cestinha de lado e secou as lágrimas em seu rosto lívido.
— Eu vim sem intenção de voltar para Vilarejo.
— Por quê?
— Aqui, nesses arbustos, eu comi mais do que comeria uma semana toda na casa do meu avô, enquanto o Ancião pode se esbaldar com um pernil inteiro se quiser. Eu... eu cansei de apanhar tanto por motivo algum, cansei de ser escrava deles.
Clematis sentia-se estranha ouvindo as confissões de Anemony, alguém que ela jurou que mataria assim que possível. Olhando para o céu, ela viu que ainda era cedo – cerca de nove da manhã – e logo menos os habitantes de Vilarejo sairiam para coletar lenha e alimentos. Não iriam tão longe a ponto de Clematis e Anemony correrem o risco de serem julgadas por eles, mas todo cuidado era pouco.
— Vai ficar pior quando eu crescer e virar mocinha. — Anemony sussurrou pesarosa.
Uma lufada de asco e pena acertou Clematis quando ela entendeu o que a menina queria dizer. Provavelmente a abusariam ou forçariam casamento com familiares; algo que não era raro acontecer em Vilarejo. Clematis tinha de pensar rápido: levaria a garota consigo ou a deixaria à própria sorte? Não poderia largar alguém tão dependente e jovem, Anemony certamente morreria se ficasse sozinha fora da vila e dentro dela havia o terror que sua família a infringia.
A faca em sua manga pesava como um tijolo.
Não mais do que pesavam as opções em suas mãos.
...
O crepúsculo tingia os céus com cores em tom pastel, indicando que o sol se poria em pouco tempo. Já podiam ver a cabana alguns metros à frente, erguendo-se do chão embranquecido de neve.
Floquinhos tímidos se desprendiam do céu, pairando até a primeira superfície que encontravam. Clematis se repreendia mentalmente por ter deixado Emull sozinho por tanto tempo, mas aproveitou a ajuda de Anemony para pegar mais lenha, mais frutinhas e pôde encher a garrafa até a borda.
— É ali que está morando? — Anemony perguntou.
— Sim, só isso nos é possível no momento.
O fogo havia se extinguido faria algum tempo e Clematis notou o silêncio medonho dentro da cabana assim que entrou, seguida de Anemony.
— Acenda o fogo. — Clematis pediu para Anemony.
A garota achou a pederneira com dificuldade – estava demasiado escuro na cabana – e tratou de fazer o que Clematis pediu. A luz e o calor bem-vindos tomaram a cabana e Clematis, chocada e ao mesmo tempo aliviada, fitava o corpo azulado de Emull. Seus olhos fechados e o semblante tranquilo indicavam que ele morrera dormindo, o que a aliviava, de certo modo. Os dias de sofrimento intenso dele a prepararam para aquele momento que ela sabia que viria sem demora.
Anemony observava Clematis ajoelhada ao lado de Emull, chorando baixinho e acariciando os cabelos brancos dele. Não ousaria se intrometer. Sabia que Emull estava severamente doente pois Clematis a contara mais cedo, mas não estava preparada para aquilo.
Clematis acalmou-se e, enfim, pareceu se lembrar de que Anemony estava ali. Olhou por sobre o ombro e sorriu tristonha.
— Espere aqui enquanto eu o levo para o lago, está bem?
Anemony assentiu sem saber o que fazer. Clematis enrolou o corpo mirrado e leve de Emull em uma única pele animal e o arrastou para fora da cabana sem muito esforço.
Sozinha ali dentro, a garota bateu as peles e cobertores e formou uma nova “cama” no canto contrário da cabana. Ajeitou as coisas como pôde e se sentou na nova cama, esperando por Clematis. Anemony achava incrivelmente criativa a ideia que os dois tiveram de cobrir o chão com as pedras planas da margem do lago para que não tivessem contato direto com a terra, mantendo a cabana mais limpa desse jeito.
Quando achava que Clematis não voltaria mais – a noite já havia chegado –, a mulher esgueirou-se para dentro da cabana, cansada e triste, mas bem. Ela se sentou ao lado da garota e as cobriu com uma manta de lã.
— Estávamos juntos há muito tempo.
— Eu sempre o achei muito velho. — Confessou Anemony, com uma pontada de vergonha.
Clematis sorriu, sabendo que os mais jovens sempre achavam aquilo.
— Ele era quase vinte anos mais velho, mas foi e sempre será meu grande amor.
— O que fez com ele?
— Joguei no lago pelo buraco que fiz no gelo uns dias atrás. Era o que tínhamos combinado.
— E agora? — Anemony parecia perdida.
— Agora vam os dormir. Amanhã procuramos outro lugar para montar a cabana.
A respiração falhava de tempos em tempos, piorando com a má postura que, após tantas décadas, o fez corcunda. O Ancião retorcia o rosto em uma expressão horrenda de ódio e apreensão, sentado na poltrona centenária da saleta no final do corredor de sua casa - maior que as demais, afinal ele era O Ancião. Emitia uma espécie de rosnado ao soltar o ar por entre os lábios rachados. Batia as gengivas desprovidas de dentes umas nas outras e murmurava consigo mesmo. A saleta estava fria feito gelo, sem lenha para a lareira, pois Leonid não aparecera ainda com ela.O Ancião acendeu – com extrema dificuldade por conta do mal de Parkinson – uma vela grossa e torta em cima da mesa, aproximando as mãos da chama bruxuleante para aquecê-las um pouquinho que fosse, evitando que as articulações doessem mais do que já o faziam. Uma corrente de ar forte entrava por alguma fresta que ele não conseguia achar, acometendo o corpo idoso e fraco com uma febre que aumentava com o passar dos minutos. Se
Leonid, sentado à beira da cama de seu avô, fitava o rosto pálido adormecido dele. A luz bruxuleante da vela conferia nuances quentes sobre o rosto do Ancião e uma gotinha de sangue ainda sujava uma de suas narinas. O clima rançoso do quarto parecia grudar em seu corpo, deixando-o com uma sensação gosmenta na pele. As tábuas de madeira riscada pelos anos de sapatos pisando e móveis arrastando estalavam vez ou outra, mas Leonid já estava acostumado com os rangidos e estalos. Havia até decorado onde fazia o quê.A porta se abriu sem cerimônia e Oxalis entrou com uma pilha de cobertores nos braços. O vestido cinza estava molhado na altura do abdômen e os cabelos loiros estavam bagunçados, cheios de mechas fora do coque mal feito. Leonid olhava para sua mãe com uma expressão vazia, como se vê-la não fosse nada. O rosto dela era tão parecido com o do Ancião que, vez ou outra, dava pena; o velho era horrível, de fato. Porém, o que o velho tinha de ruindade e ignorância, Oxalis
— Por que não podemos ir para alguma cidade e ficar lá, morando em alguma casa?Anemony ofegava com o esforço de andar pela neve carregando o fardo de utensílios em suas costas esqueléticas. Ela mantinha os cabelos prendidos feito um rabo de cavalo no topo da cabeça, como Clematis a ensinou no dia anterior; prender os cabelos era deveras prático na hora dos afazeres. A garota não levava tanta coisa quando Clematis, entretanto, seu mirrado estado a fazia sofrer com o menor dos pesos.— Porque nas cidades há muitas Mariposas. Com tantos lugares fechados e escuros, elas podem nos ferir até mesmo durante o dia se acabarmos entrando em alguma casa.— Ah, que droga. — Anemony resmungou.— Sei onde tem várias cabanas abandonadas por aqui, podemos morar em uma se não houver ninguém nelas. As pessoas acham mais seguro morar em vilarejos, você sabe.— E se não der certo?Clematis se surpreendia com a inocência e falta de saberes de A
Muscari andava de um lado ao outro na frente da porta do quarto, enrolando os dedos no tecido do avental puído. Ninguém tivera coragem de entrar no quarto para ver o que tinha acontecido, para ver se o Ancião ainda estava lá. Leonid saíra cedo para recolher mais lenha e Oxalis não havia acordado ainda; todos a deixavam dormir o quanto quisesse, vez ou outra, por conta do sofrimento a respeito de Anemony.Cansada de nutrir ansiedade, Muscari fechou a mão esquelética na maçaneta redonda e abriu a porta, apenas uma fresta, deparando-se com uma fatia do quarto vazio e ainda escuro, iluminado precariamente pela luz baça da manhã. A parte da cama que Muscari conseguia ver estava revirada, respingos de sangue e fluídos – que Muscari não sabia do que se tratavam – manchavam os lençóis.Abriu a porta mais ainda e se deteve: uma delas ainda estava lá dentro, no canto ao da janela, virada para a parede. Muscari paralisou, presa entre trancar a porta e nunca mais abrir a
A tenda tremulava com o vento quente que soprava do oeste. O véu achado nas ruínas das casas de uma cidade próxima ao deserto cobria a cabeça loura e a parte inferior do rosto para que o sol fizesse o menor estrago possível. Anemony carregava, pendurada por uma alça de couro em seu ombro direito, uma bolsa feita com estômago de camelo, algo que os povos do deserto usavam para guardar água e mantê-la fresca. Ela ouvia a água balançar dentro do reservatório esquisito a cada passo que dava pela areia fofa e traiçoeira – as dunas mudavam dia após dia, impossibilitando a localização por meio delas. Tinham apenas o sol e as estrelas como relógio, embora esse tipo de localização fosse mais difícil para Anemony. Ela entrou na tenda e tirou o véu negro da cabeça, aliviada por sair do sol e calor seco. Clematis varria com uma vassoura de palha os tapetes que cobriam o chão da tenda; embora fosse um tanto difícil manter os tapetes livres da areia. Ao menos o grosso dela conseguiam tirar.
Aquele dia havia sido difícil; a temperatura caíra drasticamente durante a noite – não bastasse o inverno rigoroso – e uma tempestade de neve ameaçava cair a qualquer instante. Cayden enfiava as mãos geladas dentro de luvas de lã vermelhas e sem dedos, repassando os planos de caça daquele dia: sair, caçar algum animal e voltar sem congelar um dedo que seja. As camadas de roupas velhas e cheias de furos não eram suficientes para o frio que o pegara de surpresa, mas teriam de bastar. Cobriu o rosto com a touca comum onde fez furos para os olhos, transformando em uma balaclava improvisada e calçou as botas grossas de pelo do lobo, um que caçou durante a primavera passada. Fitou seu reflexo no pedaço de metal lustroso que fazia as vezes de espelho e suspirou, de olhos cravados naquele par de íris verde-musgo tão tristes e conformados.O garoto magro de feições suaves e machucadas pelo frio esgueirou-se pela casa decrépita, descendo os degraus de madeira cinza cheios de fenda
A visão de sua casa era privilegiada: podia ver toda a colina onde Vilarejo ficava, via cada uma das casas de madeira enegrecida postas em duas filas, uma de cada lado de um caminho marcado que chamavam de Rua Primeira, uma espécie de rua principal, via até mesmo a Orla norte depois do muro de troncos que ergueram ao redor de Vilarejo. A vila descia a colina do lado oposto ao do extenso lago congelado atrás dela. Roudinie mantinha a janela aberta, deixando entrar o ar da primeira manhã após a Noite Eterna, esvoaçando seus cabelos negríssimos e longos; não tinha o hábito de cortar os fios. Por mais que o vento ressecasse seus olhos verdes e lábios pálidos, ela não ligava, havia passado tempo demais dentro daquela casa, trancafiada nela pelo medo da Noite e para sua segurança que qualquer bocado de luz natural a atraía como um inseto hipnotizado por uma vela.Aquele não era apenas o primeiro período diurno após a Noite Eterna, era também seu aniversário. Roudinie comemorava o pr
A terra dura se recusava a ser tirada aos nacos congelados pela pá de Emull. Cada vez que a fincava no solo eternamente endurecido era como se cavasse em um bloco de gelo; vez ou outra a pá rangia como se gemesse agoniada sempre que cravada na terra. Quase metade do dia havia sido gasto naquele trabalho e logo anoiteceria.Emull tirava os longos cabelos grisalhos do rosto, apoiado no cabo da pá. Seu corpo fraco e velho estremecia com o frio que se embrenhava em suas vestes surradas e a barba criava alguns nós com o vento que o açoitava sem pena. A pele enrugada e queimada de frio se franzia com a tristeza de cavar uma cova para sua própria filha, tudo o que o sobrara.A cada punhado de terra dura que Emull tirava e jogava ao lado o fazia se lembrar do riso contido de Roudinie, de sua preocupação silenciosa com Cayden, sua juventude desabrochando como uma florzinha de pétalas negras e miolo verde e o lembrava de como ela os defendia da hostilidade dos habitantes de