A terra dura se recusava a ser tirada aos nacos congelados pela pá de Emull. Cada vez que a fincava no solo eternamente endurecido era como se cavasse em um bloco de gelo; vez ou outra a pá rangia como se gemesse agoniada sempre que cravada na terra. Quase metade do dia havia sido gasto naquele trabalho e logo anoiteceria.
Emull tirava os longos cabelos grisalhos do rosto, apoiado no cabo da pá. Seu corpo fraco e velho estremecia com o frio que se embrenhava em suas vestes surradas e a barba criava alguns nós com o vento que o açoitava sem pena. A pele enrugada e queimada de frio se franzia com a tristeza de cavar uma cova para sua própria filha, tudo o que o sobrara.
A cada punhado de terra dura que Emull tirava e jogava ao lado o fazia se lembrar do riso contido de Roudinie, de sua preocupação silenciosa com Cayden, sua juventude desabrochando como uma florzinha de pétalas negras e miolo verde e o lembrava de como ela os defendia da hostilidade dos habitantes de Vilarejo, que os crucificavam por conta do delito de Cayden.
— Um delito imbecil, malditos sejam. — Emull resmungou contra o vento, sentindo-o enfiar todas as suas palavras de volta em sua boca rachada.
As sobrancelhas franzidas tentavam proteger os olhos verdes da brancura da neve, do vento e dos cristais de gelo que ele levava consigo. O trabalho ainda estava na metade e ele sabia que precisaria esperar até o dia seguinte para finalmente enterrar sua amada filha, sua pequena Roudinie.
A luz se esvaía e Emull parou de cavar. Apoiou a pá no ombro e se arrastou de volta para casa, olhando para as pontas de seus sapatos velhos com furos. Mal prestava atenção nos olhares que recebia dos vizinhos. Saiu da Rua Primeira e tomou o caminho de trás das casas, subindo a colina. Parou na porta dos fundos de uma das casas iguais – o Ancião dizia que ter casas iguais os igualava perante todos – e fitou a luminosidade fraca que saía por baixo da porta. Ele torceu a maçaneta redonda e a abriu, entrando rapidamente para se abrigar do frio.
Debruçada sobre a mesa, estava Clematis. Ela tinha, entre as mãos pálidas na mesa, uma flor de papel amarelado, presente de Roudinie no último aniversário da mãe. Os cabelos negríssimos de Clematis estavam presos em um coque mal-feito que soltava mechas em sua nuca. Sempre fora uma mulher linda e Emull sentia-se desmerecedor de tal esposa, porém, naquele momento, ela era pura tristeza. Os olhos escuros mal se abriam, ocupados em chorar, e o corpo forte – do trabalho nas duras plantações que pouco rendiam – curvava-se sobre si próprio. Emull se aproximou a passos arrastados e sentou-se ao lado dela, tomando uma de suas mãos. O rosto arredondado de Clematis se voltou a ele, repleto de dor.
— Não consegui cavar tudo hoje, vou ter que terminar amanhã. — Emull informou.
Clematis tirou sua mão da dele de modo rude e repentino. Tremendo, subiu as escadas arrastando a barra de seu vestido preto de luto e, segundos depois, Emull a ouviu bater a porta de seu quarto. Cansado, ele suspirou e permaneceu sentado perto do fogão à lenha para esquentar-se antes de dormir.
Dormir parecia um luxo sem tamanho naquele momento. Emull não poderia – não conseguiria – dormir enquanto sua filha esperava no quarto ao lado para ser sepultada. Mil imagens da curta vida dela pipocaram em sua mente; a alegria em ter mais um cobertor só para si, mesmo que sempre acabasse dividindo-os com Cayden para que se esquentassem melhor, os sons dela brincando ou fazendo qualquer outra coisa ecoando pela casa e a primeira vez em que Roudinie teve consciência da Noite Eterna.
Roudinie estava perto de seu quarto ano de vida quando notou a agitação em Vilarejo. Todos corriam entre as casas, carregando lenha e punhados de cenouras finas da plantação, falavam alto e com medo. Roudinie olhava pela porta da frente, sem entender o que se passava. Clematis a puxou para dentro e trancou todas as portas, tratando de cobrir todas as janelas com tapumes roídos. A garotinha pequena que parecia um bichinho de neve coberto de longos cabelos de piche o olhava indagativa. Emull sentou-se em frente à lareira enquanto Clematis cuidava de trancar a casa e puxou Roudinie para seu colo, tirando os sapatinhos rudemente confeccionados para que ela esquentasse os dedinhos no calor do fogo.
— Por que está todo mundo tão apressado? — Ela o perguntou em baixo tom.
A voz infantil de Roudinie soava como um sino delicado, como o pio de um passarinho pequeno.
— Está chegando a Noite, meu anjo.
— A Noite?
— A Noite Eterna. É quando ficamos muitos dias no escuro por causa das Mariposas. — A garota arregalou os olhos com o medo de ouvir falar das criaturas. — Elas encobrem o mundo com seu véu de agonia para que possam procriar.
— O que é procriar? — Ela perguntou.
— Um dia você saberá. — Emull desconversou, encabulado.
— De onde elas vêm? — Sussurrou Roudinie.
— Vieram do céu há muito tempo. Não sabíamos o que eram aqueles incontáveis pedaços de seda flutuando do céu até nós e, quando nos demos conta, as Mariposas já estavam nos matando.
— Ninguém ajudou?
Roudinie parecia entretida na história que Emull contava. Cayden ouvia sentado no topo da escada; fora proibido de ouvir desde que ridicularizou a Noite Eterna, ameaçando sair da casa durante ela para provar que nada o mataria, que as Mariposas eram só uma mentira para que tivessem medo e andassem na linha. Um garoto tão jovem e tão cético, tão cego...
— Não era possível. Nada as detinha, só a luz do sol e quando fizeram a primeira Noite Eterna não estávamos preparados, não sabíamos que isso aconteceria.
Emull falava como se tivesse vivido na época da invasão, como um modo de fazer a narrativa parecer mais assustadora, ele achava, embora ele tenha nascido um século depois da invasão.
— Demoramos para aprender a sobreviver, outros desastres aconteceram depois que elas apareceram e cá estamos nós, nos escondendo delas. E é isso o que acontece uma vez ao ano, por isso todos se trancam em suas casas. É importante que se lembre disso e jamais pense em sair ou abrir uma janela que seja durante a Noite, está bem?
Roudinie assentiu energicamente. O medo estampava seus olhos enormes de criança e a calava.
Todos os anos, desde então, ela se empenhava em ajudá-los com os preparativos para a Noite Eterna. Roudinie não demonstrou nada quando Cayden foi banido, mas Emull sabia que, por dentro, ela se retorcia de medo por Cayden e por ficar sozinha. Ele sempre tinha sido sua companhia constante desde que Roudinie nasceu e sua ausência deixava um buraco quase do tamanho de seu ser.
Durante dias procuraram por Roudinie após seu sumiço. Alguns diziam ser inútil, as Mariposas certamente a haviam matado. Outros tentavam, mesmo que desacreditados, manter as esperanças de que Roudinie estava perdida ou com o irmão, tomada pela saudade.
Quando completaria uma semana desaparecida, acharam seu corpo.
Roudinie não estava escurecida como todos ficam quando congelam na neve: sua pele mantinha-se branca, imaculada. Uma fina camada de neve a cobria e algum animal pequeno andava se alimentando do conteúdo de sua cabeça aberta. Quando Emull a virou, apegando-se a um último suspiro de esperança de que não fosse sua filha, olhos brancos arregalados o encararam, acusadores. O rosto angelical de menina que entrava na adolescência estava lívido e congelado, os lábios antes avermelhados tinham cor de mirtillo e Emull temia o que poderia ter acontecido antes que Roudinie fosse morta, afinal ela estava completamente nua. Ele tirou sua capa e a cobriu, aninhando o corpo duro em seu peito. Mal percebeu quando alguém a colocou em cima de uma prancha de madeira – que usavam para transportar feridos – e a levou embora.
Faria três dias que Roudinie havia sido encontrada e entregue à mãe para que ela cuidasse de limpá-la e vesti-la para seu funeral.
Emull deixou o calor da cozinha e subiu para o quarto de seus filhos, abrindo a porta com delicadeza para que não rangesse, fechando-a atrás de si. O quarto estava mergulhado no breu e Emull repreendeu-se por não ter levado uma vela. Sabia que tinha uma em cima do criado-mudo ao lado da cama – onde Roudinie estava – e tateou o ar à sua volta até achar a vela e o isqueiro velho. Acendeu-a e, sentindo o gosto amargo do medo e da tristeza tomar sua boca, encarou o corpo que descansava na cama.
Roudinie usava um lindo vestido preto de rosas bordadas no corpete, todo feito de seda negra. O decote mostrava bastante do colo pálido e bonito. Os cabelos foram escovados e postos de lado sobre um dos ombros e a cabeça estava coberta com renda preta, conferindo um ar macabro ao rosto petrificado e branco-azulado de morte. Os olhos dela permaneciam abertos, pois não conseguiram fechá-los, e os braços continuavam esticados ao longo do corpo. Clematis calçou nela luvas delicadas de mesmo tecido que o vestido, mas não seria sepultada com sapatos, pois Clematis precisava deles. Doía-lhes o coração enterrar Roudinie descalça, porém não tinham opções.
O corpo disposto na cama mal parecia ser sua filha, era mais como uma casca de lábios roxos. Emull ajoelhou-se na cama, estendendo as mãos para tocar a mão gelada e morta dela. Aquele era o vestido que Clematis estava guardando para o casamento de Roudinie, quando acontecesse.
Jamais a veriam se casando. Jamais a veriam ter filhos. Jamais a veriam de novo.
...
A cova estava rasa: pouco menos de um metro de profundidade. Teria de bastar, afinal o solo congelado não possibilitava muita coisa. Roudinie fora posta em um caixão rudimentar e pesado e Emull havia precisado de ajuda de Reinhart, que mal olhava para ele. Todos foram ao sepultamento dela, mas não se demoraram; não queriam envolvimento demais com aquela família.
A última pessoa a prestar condolências com uma mirrada flor silvestre foi Anemony, filha mais jovem do Ancião. A garota de cabelos loiros e sujos deixou a florzinha fincada na terra recém revolvida, tristonha. Era amiga de Roudinie faria dois anos, pois a garota nutria uma paixonite por Cayden e mantinha a amizade com ela para que se aproximasse do garoto. Mal se falavam desde o banimento dele e Emull não sabia se os pêsames dela eram reais ou apenas fingimento, afinal de contas Anemony era filha do líder de Vilarejo, deveria portar-se com educação.
A capa escorregou dos ombros mirrados dela, que a puxou de volta. Emull encarou o tecido de lã rosa-coral que usava por baixo da capa, sentindo o coração pular ao reconhecer o xale de Roudinie.
Ou seria outro, apenas semelhante?
Anemony passou por Emull e o presenteou com um cartão que ela mesma fizera, um cartão de pêsames feito com papel grosso e flores de camomila gentilmente costuradas na frente. Ela o encarava profundamente, transbordando pelos poros um quê de alguma coisa que Emull tentava captar...
...e se foi. Anemony se juntou ao irmão e caminharam colina acima até a casa onde moravam, um pouco mais acima do meio dela. A família do Ancião era demasiado estranha.
Clematis encarava o monte de terra escura, amargurada, de feições retorcidas em expressões de pura dor.
— Talvez devêssemos ir. — Ela murmurou.
— Sim, vamos para casa. — Emull acariciava os braços dela, amoroso.
— Não.
— Não?
Emull franzia o cenho sem entender o que Clematis queria exatamente.
— Eu quis dizer ir embora de Vilarejo.
O desespero e ódio dela passavam para Emull, atravessando o tecido grosso de lã escura do xale. Clematis sabia algo, ele podia sentir.
— Não viu a garota usando as roupas da nossa Roudinie? — Clematis rosnou.
— Eu... Tem certeza?
Clematis assentiu devagar, rangendo os dentes.
...
O negrume da noite o intimidava menos; sua alma estava fragmentada após ter seu filho banido e sua filha morta. Nada mais parecia medonho, nenhuma dor era o bastante. Seu interior estava vazio e Emull podia ver que estava sendo bem pior para Clematis.
Teria ele de ser forte por ambos.
...
Emull podia ouvir a esposa mexendo em coisas no andar de baixo e sabia que ela estava enfiando o que fosse essencial em uma bolsa de lona grande. Alguma coisa estava terrivelmente errada e Clematis estava certa quando culpava o Ancião e sua família pela morte de Roudinie.
Emull olhava a noite muito escura pela janela, morto por dentro, fitando a Mariposa em pé no telhado da casa em frente, do outro lado da Rua Primeira. Nem mesmo a criatura fantasmagórica que retribuía seu olhar, enrolada nas próprias asas e tremulando com o vento forte o amedrontava. Perder seus filhos o transformara em algo pior do que uma laranja bichada e podre. Trincava os dentes tentando conter o ódio que se apoderava dele enquanto sustentava o olhar impassível da Mariposa.
Se havia algo pior do que Mariposas, esse algo certamente se tratava dos habitantes de Vilarejo.
O saco onde levavam os poucos itens que puderam carregar pesava nas costas de Emull. O vento passava uivando por seus ouvidos e o homem se curvava cada vez mais, protegendo o rosto do gume afiado da ventania. Clematis cobria o rosto com um trapo amarelo em uma falha tentativa de se proteger do frio. Ela se preocupava com seu marido, afinal de contas ele era um homem de idade avançada e carregar peso em uma viagem de algumas horas no frio e neve era extremamente nocivo para Emull. Afundavam até os tornozelos na neve que ainda não havia se compactado, forçando as panturrilhas magras e fracas a trabalhar. Os músculos queimavam com o esforço e os estômagos vazios roncavam alto de fome.— Temos que parar, Emull. — Clematis pediu, tentando falar acima do som do vento.— Não. Precisamos ir mais longe, só mais um pouco.— Estou com cansada e com sede! Por favor...Emull olhou para trás sem parar de andar. Respirou fundo e, diminuindo os passos
Dois meses haviam se passado após mudarem-se de Vilarejo. Não se distanciavam demais do lugar por segurança, por saberem o que tinha ao redor da vila, mas não ao longe dela. Os dias fora de lá eram mais exaustivos: não possuíam o conforto de uma casa, outras pessoas para conversar, mais opções de comida... Emull e Clematis tinham construído uma cabana de galhos e peles de ursos em um local onde os pinheiros estavam mais próximos uns dos outros. A cabana tinha formato piramidal e acolhia a ambos com conforto, a neve não se acumulava no topo por conta do formato e o vento contornava a cabana.O vento era constante, porém os pinheiros quebravam um pouco da velocidade dele perto da cabana. Próximo dali havia um lago onde Clematis abriu um buraco no gelo para pegar água, um ou outro peixe ou lavar alguma coisa. A água era gélida, mas seria exaustivo além da conta carregar água o suficiente e esquentá-la para fazer o que poderia facilmente ser feito no lago.Clemat
A respiração falhava de tempos em tempos, piorando com a má postura que, após tantas décadas, o fez corcunda. O Ancião retorcia o rosto em uma expressão horrenda de ódio e apreensão, sentado na poltrona centenária da saleta no final do corredor de sua casa - maior que as demais, afinal ele era O Ancião. Emitia uma espécie de rosnado ao soltar o ar por entre os lábios rachados. Batia as gengivas desprovidas de dentes umas nas outras e murmurava consigo mesmo. A saleta estava fria feito gelo, sem lenha para a lareira, pois Leonid não aparecera ainda com ela.O Ancião acendeu – com extrema dificuldade por conta do mal de Parkinson – uma vela grossa e torta em cima da mesa, aproximando as mãos da chama bruxuleante para aquecê-las um pouquinho que fosse, evitando que as articulações doessem mais do que já o faziam. Uma corrente de ar forte entrava por alguma fresta que ele não conseguia achar, acometendo o corpo idoso e fraco com uma febre que aumentava com o passar dos minutos. Se
Leonid, sentado à beira da cama de seu avô, fitava o rosto pálido adormecido dele. A luz bruxuleante da vela conferia nuances quentes sobre o rosto do Ancião e uma gotinha de sangue ainda sujava uma de suas narinas. O clima rançoso do quarto parecia grudar em seu corpo, deixando-o com uma sensação gosmenta na pele. As tábuas de madeira riscada pelos anos de sapatos pisando e móveis arrastando estalavam vez ou outra, mas Leonid já estava acostumado com os rangidos e estalos. Havia até decorado onde fazia o quê.A porta se abriu sem cerimônia e Oxalis entrou com uma pilha de cobertores nos braços. O vestido cinza estava molhado na altura do abdômen e os cabelos loiros estavam bagunçados, cheios de mechas fora do coque mal feito. Leonid olhava para sua mãe com uma expressão vazia, como se vê-la não fosse nada. O rosto dela era tão parecido com o do Ancião que, vez ou outra, dava pena; o velho era horrível, de fato. Porém, o que o velho tinha de ruindade e ignorância, Oxalis
— Por que não podemos ir para alguma cidade e ficar lá, morando em alguma casa?Anemony ofegava com o esforço de andar pela neve carregando o fardo de utensílios em suas costas esqueléticas. Ela mantinha os cabelos prendidos feito um rabo de cavalo no topo da cabeça, como Clematis a ensinou no dia anterior; prender os cabelos era deveras prático na hora dos afazeres. A garota não levava tanta coisa quando Clematis, entretanto, seu mirrado estado a fazia sofrer com o menor dos pesos.— Porque nas cidades há muitas Mariposas. Com tantos lugares fechados e escuros, elas podem nos ferir até mesmo durante o dia se acabarmos entrando em alguma casa.— Ah, que droga. — Anemony resmungou.— Sei onde tem várias cabanas abandonadas por aqui, podemos morar em uma se não houver ninguém nelas. As pessoas acham mais seguro morar em vilarejos, você sabe.— E se não der certo?Clematis se surpreendia com a inocência e falta de saberes de A
Muscari andava de um lado ao outro na frente da porta do quarto, enrolando os dedos no tecido do avental puído. Ninguém tivera coragem de entrar no quarto para ver o que tinha acontecido, para ver se o Ancião ainda estava lá. Leonid saíra cedo para recolher mais lenha e Oxalis não havia acordado ainda; todos a deixavam dormir o quanto quisesse, vez ou outra, por conta do sofrimento a respeito de Anemony.Cansada de nutrir ansiedade, Muscari fechou a mão esquelética na maçaneta redonda e abriu a porta, apenas uma fresta, deparando-se com uma fatia do quarto vazio e ainda escuro, iluminado precariamente pela luz baça da manhã. A parte da cama que Muscari conseguia ver estava revirada, respingos de sangue e fluídos – que Muscari não sabia do que se tratavam – manchavam os lençóis.Abriu a porta mais ainda e se deteve: uma delas ainda estava lá dentro, no canto ao da janela, virada para a parede. Muscari paralisou, presa entre trancar a porta e nunca mais abrir a
A tenda tremulava com o vento quente que soprava do oeste. O véu achado nas ruínas das casas de uma cidade próxima ao deserto cobria a cabeça loura e a parte inferior do rosto para que o sol fizesse o menor estrago possível. Anemony carregava, pendurada por uma alça de couro em seu ombro direito, uma bolsa feita com estômago de camelo, algo que os povos do deserto usavam para guardar água e mantê-la fresca. Ela ouvia a água balançar dentro do reservatório esquisito a cada passo que dava pela areia fofa e traiçoeira – as dunas mudavam dia após dia, impossibilitando a localização por meio delas. Tinham apenas o sol e as estrelas como relógio, embora esse tipo de localização fosse mais difícil para Anemony. Ela entrou na tenda e tirou o véu negro da cabeça, aliviada por sair do sol e calor seco. Clematis varria com uma vassoura de palha os tapetes que cobriam o chão da tenda; embora fosse um tanto difícil manter os tapetes livres da areia. Ao menos o grosso dela conseguiam tirar.
Aquele dia havia sido difícil; a temperatura caíra drasticamente durante a noite – não bastasse o inverno rigoroso – e uma tempestade de neve ameaçava cair a qualquer instante. Cayden enfiava as mãos geladas dentro de luvas de lã vermelhas e sem dedos, repassando os planos de caça daquele dia: sair, caçar algum animal e voltar sem congelar um dedo que seja. As camadas de roupas velhas e cheias de furos não eram suficientes para o frio que o pegara de surpresa, mas teriam de bastar. Cobriu o rosto com a touca comum onde fez furos para os olhos, transformando em uma balaclava improvisada e calçou as botas grossas de pelo do lobo, um que caçou durante a primavera passada. Fitou seu reflexo no pedaço de metal lustroso que fazia as vezes de espelho e suspirou, de olhos cravados naquele par de íris verde-musgo tão tristes e conformados.O garoto magro de feições suaves e machucadas pelo frio esgueirou-se pela casa decrépita, descendo os degraus de madeira cinza cheios de fenda