Junho de 2014 — Turquia
Eu não queria sair da minha cama. Nunca mais.
Eu só queria ver minha mãe.
Me encolhi debaixo do edredom e engoli o choro pela centésima vez. O que eu fiz de errado? Por que minha mãe foi embora?
Eu estava seca de chorar. Eu não aguentava mais.
Minha barriga roncava de fome e a bandeja que a Zaila tinha trazido estava intacta em cima da mesa ao lado da minha cama.
Meu estômago revirava, não só pela fome, mas também de raiva pela humilhação que eu tinha passado na escola.
O dia anterior tinha sido o dia das mães e a escola promoveu uma festa ridícula para homenagear as mães. Armaram um palco no pátio da escola e cada criança subia e recebia uma lembrança das mãos da mãe. Eu estava escondida atrás de uma pilastra e rezava em silêncio para que não me chamassem, mas a idiota da diretora pegou o microfone e olhou em volta.
— Sulamita Ramazan!
Aquela mulher odiosa sabia que eu não tinha mãe e me humilhou sem pena na frente dos meus colegas. Não que eles fossem diferentes, mas ser exposta na frente de toda a escola foi o estopim pra mim.
Sai do meu esconderijo e subi no palco me aproximando cega da diretora da escola.
Antes de pensar no que eu estava fazendo avancei pra cima dela e a empurrei no chão chutando as pernas dela aos gritos.
— EU NÃO TENHO MÃE! EU ODEIO TODOS VOCÊS!
Alguém tinha me segurado com força pelos braços e me arrastado até a sala da diretoria. Fiquei lá pelo menos umas duas horas esperando meu irmão chegar.
Ele me fuzilou com o olhar e assinou o papel da suspensão de três dias pelo ocorrido. Não era a primeira vez. Eu já tinha sido suspensa umas dez vezes nos últimos dois anos e por azar eles acabavam me aceitando de volta. Eu sabia que meu avô comprava os professores ali, tanto para me aceitar, como para alterar minhas notas. Eu praticamente perdia em todas as provas.
Leonardo brigou comigo e me colocou de castigo nas primeiras vezes que me envolvi em confusão na escola, mas depois de um tempo ele passou a conversar mais calmamente comigo e eu entendi que ele me considerava louca. Me levou a vários médicos e me enchia de remédios para depressão.
Ele não entendia que eu não era doente. Eu só queria viver em paz.
Fazia anos que minha mãe tinha sumido e me deixado sozinha naquela casa. O que aconteceu com ela? Onde estava?
Eu não queria mais viver. Como uma menina de onze anos poderia viver sem mãe? Eu só podia contar com meu irmão. Eu não gosto do meu pai. Ele me olha com ódio, não me abraça, não me dá atenção e eu tenho medo do meu avô.
Me sinto muito mal de pensar assim, mas eu me escondo quando ouço a voz dele e finjo estar dormindo quando me chamam pra fazer as refeições na sala. Eu sou tão estranha! Eu não gosto da minha família. Eu só gosto da Zaila. Ela é minha fada. Ela me protege e cuida de mim.
Levantei a coberta e olhei a bandeja ao meu lado. Ela tinha feito sanduíche de atum e suco de laranja. Ela sabia que eu estava triste e fez minha comida preferida.
Me estiquei devagar e coloqueis os pés para fora da cama. O mundo rodou e minha visão escureceu um pouco. Respirei fundo e fechei os olhos respirando profundamente.
Já era quase noite e eu não tinha comido nada desde a manhã. Me forcei a pegar o sanduíche e mordi sem vontade. Engoli como se fosse uma pedra, mas me senti melhor e virei o copo de suco até a metade. Respirando devagar, comi o sanduíche e tomei o restante do suco.
Leo deveria estar chegando. Ele sempre chegava quando anoitecia. Eu não sabia o que meu irmão tanto fazia fora de casa o dia inteiro e muitas vezes ele passava dias viajando. Nesses dias eu não tinha vontade de fazer nada e ficava trancada no quarto.
Ouvi batidas na porta. Era ele. Eu conhecia quando ele batia na minha porta.
Corri para abrir e ele me pegou no colo me levantando no ar e rindo.
— Oi, minha princesa, o que está fazendo?
Eu ri me segurando no ombro dele para não cair.
— Me solta, Léo, eu vou cair.
Ele rodava comigo suspensa no ar.
— Cair o que garota? Você é leve feito uma pena.
Ele me colocou no chão e sentou na cama.
— E ia? Como foi o dia?
Me joguei na cama ao lado dele e torci os lábios.
— Nada demais. Nem sai do quarto!
— Sula...
Ele ia começar aquele sermão de novo.
— Para Léo, eu não quero falar sobre isso.
Ele respirou fundo. Eu sabia que ele estava preocupado comigo.
— Escute, eu fui ver outra escola pra você. Vamos lá amanhã.
Virei de costas para ele.
— Eu não quero ir. É a terceira escola que estudo desde os oito anos e sei que não vai dar certo de novo.
Leonardo me olhou duramente.
— Chega Sula! Você vai sim, precisa estudar.
Levantei o queixo teimosa.
— Eu não preciso de escola, eu preciso da minha mãe.
Eu sabia que ele também sentia a falta dela, mas disfarçava na minha frente, naquele dia porém ele parecia irritado e levantou apontando o dedo pra mim e gritando.
— Você acha que eu também não quero? Só você gostava dela, eu não?
— Léo...
— Chega Sulamita! Você vai fazer o que eu mandar! Nossa mãe foi embora e eu vou cuidar de você, então amanhã às sete horas esteja pronta que nós iremos ver sua escola nova! Entendido?
Me encolhi na cama abraçando os joelhos e chorando.
— Eu odeio você!
Ele andava nervoso pelo quarto e de repente parou em minha frente. Parecia arrependido de ter gritado comigo.
Sentou em minha frente e pegou em minha mão.
— Escute minha irmã, faça o que eu falar, eu só quero seu bem.
Limpei os olhos soluçando.
— Eu sou um peso para você, eu sei...
Ele me sacudiu devagar.
— Pare com isso, não diga besteira, eu sou irmão e eu te amo. Você não é nenhum peso pra mim.
Apertei a mão dele com força.
— Desculpa Léo, eu vou ver a escola.
Ele levantou mais calmo.
— Vai, se arruma, eu vou te levar pra conhecer um apartamento que eu comprei.
Arregalei os olhos.
— Nós vamos nos mudar daqui?! — perguntei alegre
Ele negou.
— Não. Ainda não. Comprei pra gente poder respirar um pouco fora dessa casa, mas não posso te levar ainda.
Meu coração acelerou.
— Você vai embora e vai me deixar aqui?
-Não! eu não vou morar lá, é só par ir de vez em quando.
Sorri maliciosa pra ele.
— Já sei, é pra levar suas namoradas não é?
Ele colocou as mãos na cintura.
— Isso não é da sua conta mocinha.
— É sim, você é meu irmão.
— Você só tem onze anos, não pode ficar falando essas coisas.
Soltei uma risada enquanto vestia uma calça e um moletom e calçava o tênis.
— Você é tão bobo! Eu vou arrumar um namorado quando eu fizer quinze anos, você vai ver.
— Nunca! Nem por cima do meu cadáver.
Dancei na frente dele fazendo pirraça.
— Você não vai nem saberrr...
Ele me empurrou em direção à porta.
— Cala a boca sua pirralha, não quero ouvir essa conversa de namoro de novo.
Fiz um sinal lacrando a boca e sai pulando de um pé só atrás dele pelo corredor.
Janeiro de 2015 — TurquiaOlhei para o Leonardo fixamente pensando no que responder diante daquela pergunta.— Você pode repetir o que falou?Ele cruzou as pernas e me olhou sério.— Estou te convidando para vim morar aqui na Turquia e trabalhar comigo.Tive que soltar uma gargalhada. Aquele homem era mesmo uma figura.— Você está me propondo trabalhar transportando drogas e coisas do tipo?Ele arqueou uma sobrancelha rindo.— Estou. Algum problema?— Todos não é Leonardo, eu sou um policial, esqueceu?Ele tinha levantado e começado a andar pela sala lentamente.— Pense comigo. Você ganha uma merreca como policial e gasta tudo andando de lá para cá tentando fazer justiça contra um homem muito poderoso. Junte-se a mim e venha para perto dele.Franzi a testa confuso.— Como assim?— Você não vai conseguir pegar Hilal estando longe dele Rafael, precisamos achar um jeito de você frequentar aquela casa.Ele tinha razão. Fazia três anos que estava naquela busca insana por vingança e nem se
Rio de Janeiro — Dezembro de 2015Agora que eu tinha decidido me mudar me definitivamente para a Turquia, estar ali no Brasil parecia algo estranho. Era como se eu tivesse traindo minha história de vida. Como se estivesse deixando uma parte da minha vida para trás.Damon estava sentado do outro lado da mesa e parecia meio ausente dali. Eu estava preocupado com ele. Ele não tinha parado de beber desde que chegamos ao bar cerca de uma hora atrás. Leonardo, como sempre estava calado e introspectivo.— Que merda vocês têm, hein? Se estavam nessa depressão, o que vieram fazer em um bar?Damon virou mais um copo de cerveja e pigarreou.— Eu só quero ficar bêbado e esquecer que a Juliete se casou com aquele bosta do Joan.O caso era sério.— Porra Dam, isso já faz dois anos e você ainda não se acostumou? Ele colocou as mãos atrás da cabeça e fechou os olhos. Parecia realmente esgotado.— Nem que passe mil anos.Respirei fundo e olhei para Leonardo. Ele encolheu os ombros e encheu o copo del
Turquia — Janeiro de 2016Era arriscado, mas eu tentaria.Eu precisava levar a Sulamita para o Brasil escondida do meu avô. Minha mãe tinha saído da clínica e estava um pouco melhor. Estava na hora de levar a Sula para conhecer a mãe. Conhecer no sentido de reconhecer, por que quando Angélica foi expulsa da Turquia ela estava com apenas dois anos de idade e agora aos quatorze anos, eu duvidava que a Sula ainda se lembrasse dela. Eu me sentia egoísta por poder ter contato com minha mãe, enquanto ela vivia prisioneira naquela casa, mas o desgraçado tinha a guarda dela e eu não podia fazer nada.Naquela noite, porém, eu pretendia tirá-la dali pelo menos por uns dois dias.Consegui que um amigo me desse uma licença falsa para viajar com ela e eu tinha conseguido pegar o passaporte no escritório do meu avô.O voo sairia às 22:00h e agora eu tinha duas horas para fugir com ela dali.Sai do banheiro e conferi minha mochila. Eu tinha colocado algumas roupas da Sula ali e sairia com ela como s
Era chegada a hora.Seis anos depois daquela tragédia eu iria conhecer Hilal Ramazan. Hoje eu estaria cara a cara com o assassino da minha mãe e finalmente minha vingança se aproximava.Estava parado em frente à mansão e esperava Leonardo autorizar minha entrada.Meu coração estava acelerado e minhas mãos suadas. Eu estava prestes a entrar na casa do homem que eu pretendia matar. Não era minha intenção demorar muito ali. Eu só precisava achar um jeito de ficar sozinho com ele.Estava tudo planejado em minha mente. Eu atiraria nele e me entregaria para a polícia. Seria o fim daquele tortura. Nada me faria desistir daquela vingança. Eu não ficaria nem um minuto a mais do que o necessário dentro daquela casa.O portão abriu e o segurança fez sinal para que eu entrasse.A alameda até a porta de entrada era longa e iluminada com luzes coloridas ao redor. Era uma casa enorme no centro de um jardim repleto de flores. Seria um lugar bonito, se fosse sustentado com dinheiro sujo do tráfico de
Teoricamente aquele era meu primeiro dia de trabalho como segurança particular de Sulamita Ramazan e minha primeira tarefa do dia seria levá-la para a escola, trazer de volta para casa e depois do almoço levá-la para a seção de análise que ela fazia com um psicólogo.Como me comportar com uma garota que não falava? Não por que fosse muda, ela tinha parado de falar, segundo Leonardo. O que era muito estranho. Ninguém deixava de falar de uma hora para outra.Cheguei antes das sete horas e aguardei dentro do carro, do lado de fora do portão. Leonardo tinha me dado o número do telefone dela e me instruiu que deveria mandar uma mensagem quando chegasse. Aquele idiota tinha que inventar uma viagem bem no primeiro dia que eu estava naquela casa?Vi que ela visualizou a mensagem mas não respondeu. Alguns minutos depois ela surgiu na porta da frente. Não estava muito diferente da noite anterior. Vestia um jeans e um moletom enorme. Os cabelos estavam soltos e ela carregava uma mochila que pare
Tinha alguma coisa errada.A garota não foi para a consulta com a psicóloga e não respondeu minhas mensagens. Nem sequer visualizou.Já eram seis horas da tarde e nada.E agora? O que fazer?O desgraçado do segurança apenas tinha dito que ela não poderia ir e mais nada.Deveria ligar para Leonardo? Não. Ele estava no Brasil. Não podia resolver nada.Eu precisa entrar naquela casa e descobrir o que estava acontecendo com ela.Ainda não tinha passe livre ali e eu teria que arrumar um jeito de me infiltrar lá dentro.Me aproximei do portão e o segurança me olhou desconfiado.— Diga, rapaz— Diga ao Sr. Hilal, que preciso falar com ele. É importante.Alguns minutos depois ele abriu o portão e eu entrei devagar.Fui escoltado até o escritório de Hilal Ramazan e eu ainda não sabia o que inventar para falar com ele.O homem me aguardava atrás da imensa mesa de madeira e outro cara, que eu conhecia da fábrica como Zaruk Madal estava ao lado dele.— O que deseja rapaz?Pigarreei e sentei em fr
Leonardo me olhava surpreso.— Você fez o que?Sustentei o olhar dele.— Comprei um telefone para ela. Aquele traste do seu avô tomou o celular da menina.Estávamos sentados em uma mesa no fundo do bar que costumávamos frequentar. Pela primeira vez eu não estava me sentindo bem ali, principalmente por que a garota que trabalhava ali como garçonete e que ficava comigo de vez em quando não parava de me olhar. Eu não estava com cabeça para mulheres naquela hora. — Como ela passou esses dias?Encolhi os ombros.— Do mesmo jeito. Acho que estava sentindo sua falta.Ele parecia preocupado.— Não consigo entender por que ela parou de falar. Meu Deus! Isso não faz sentido.— Porra cara! Não estava nos nossos planos que eu fosse escoltar sua irmã, meu objetivo naquela casa é outro e você sabe qual é.Ele me olhou sério.— Vai me deixar sozinho agora? Eu não sei como cuidar dela.Eu estava agoniado, por que agora eu também estava preocupado com ela.— Vou segurar a onda um pouco, mas não pense
Pensei mil vezes se passaria a noite de natal ali, ou se deveria ir ao Brasil, mas de repente uma ideia me passou pela cabeça.Leonardo me avisou que haveria uma festa na mansão e talvez aquela fosse a minha chance de matar Hilal Ramazan sem levantar suspeitas. Aos poucos abandonei a ideia de enfrentá-lo cara a cara e atirar nele. Aquela casa vivia cheia de seguranças e eu seria morto no primeiro suspiro se atirasse no homem a queima roupa. Com a casa cheia de gente, talvez fosse mais fácil executar meu plano. Minha arma tinha silenciador, então bastava achar o melhor ângulo e disparar. Todos ali seriam suspeitos e se eu fizesse tudo bem planejado, ninguém nunca descobriria.Por mim, eu já teria acabado com a raça daquele infeliz e ido para a cadeia, mas no fundo eu acabei me segurando para não fazer aquilo na presença da Sulamita. A menina parecia confiar em mim a cada dia que passava e eu não queria destruir a imagem que ela tinha de mim.Me recusei a pensar que já se passara seis m