Isabella Cavalieri
Mais um dia, mais uma aula, e aqui estou eu, em minha posição habitual, observando a sala antes que minhas pequenas alunas cheguem. O chão de madeira polida reflete suavemente a luz suave dos espelhos que cobrem a parede inteira. O cheiro característico de resina e tecido das sapatilhas de ponta preenche o ambiente, misturado com um leve toque de lavanda do aromatizador que sempre deixo ali. A porta se abre, e meu olhar se volta para a recepção. Como sempre, Analice entra com sua presença impecável. Seu vestido preto abraça sua silhueta com perfeição, e seus saltos agulha ressoam no piso de mármore. Ela não anda, ela desfila. Seu porte de supermodelo mundialmente famosa faz com que todos ao redor parem por um instante, como se ela estivesse prestes a entrar em uma passarela. Mas, apesar de toda essa imponência, há uma doçura nela que poucos enxergam. E essa doçura se reflete completamente em sua filha. Kira não poderia ser mais diferente da mãe. Seu cabelo castanho está levemente bagunçado pelo vento, e ela segura a bolsinha rosa do balé com a animação de quem carrega um tesouro. Seus olhos brilham ao me ver, e antes que eu possa dizer qualquer coisa, ela já está correndo em minha direção. — Titia Isa! — Sua vozinha ecoa pelo estúdio enquanto ela se atira nos meus braços. Eu rio e a aperto contra mim, sentindo seu cheirinho de talco misturado ao doce aroma de infância. Kira tem aquele tipo de abraço que aquece a alma. — Oi, minha bailarina preferida! — digo, apertando levemente seu nariz, fazendo-a rir. — Animada para a aula? Ela me olha com aqueles olhinhos brilhantes e acena freneticamente com a cabeça. — Sim! Hoje vou conseguir girar sem ficar tonta! Sorrio, sabendo que cada pequeno progresso para ela é uma grande vitória. — Então, vá entrando, pequena. Coloque sua mochila no armário e escolha seu lugar na barra. A titia vai esperar as outras meninas chegarem e já entro, combinado? — Combinado! — ela responde com um sorrisão, correndo para se preparar. Observo-a se afastar e ajeitar as fitas da sapatilha com toda a concentração do mundo. Ela não sabe, mas essa mesma paixão que vejo nela é o que me mantém firme na dança, mesmo nos dias mais difíceis. Kira me dá um sorriso radiante, o tipo de sorriso que ilumina o ambiente e aquece o coração, e se despede de sua mãe com um beijo rápido na bochecha. Com passos leves e rápidos, ela corre em direção ao seu lugar habitual, na frente da barra, onde as meninas disputam cada pedaço de espaço como se fosse um campo de batalha para a melhor posição. É curioso como, mesmo tão pequenas, elas já sabem exatamente o que querem — o melhor lugar para ver e ser vista, para absorver cada movimento, cada detalhe da aula. Enquanto observo Kira se acomodar, ajeitando a mochila e tirando os tênis, percebo o olhar de sua mãe que se aproxima com uma leve tensão no rosto. Ela tem aquele tipo de expressão que é impossível esconder, uma mistura de cansaço e preocupação, como se estivesse sempre carregando o peso de várias responsabilidades ao mesmo tempo. Ela respira fundo, soltando um suspiro quase imperceptível, e então, com uma voz suave, mas carregada de ansiedade, diz: — Isabella, queria pedir um grande favor. Eu a encaro, pronta para ouvir, disposta a ajudar sempre que posso. Minha mão automaticamente vai até a barra, como se isso me desse algum tipo de estabilidade para lidar com qualquer situação. — Claro, pode falar. O que você precisa? Ela parece hesitar por um momento, como se ponderasse o peso da solicitação, e então, finalmente, fala: — Eu vou precisar viajar para Milão na próxima semana para um evento importante. Kira vai ficar com meu irmão enquanto estou fora, mas, entre nós, ele não tem muito jeito com ela. Ele é… bem, digamos, mais focado nas festas do que em cuidar de uma garotinha. Ela vai chegar um pouco mais cedo, e, se não for um incômodo para você, você poderia me ajudar com a roupa dela e com o coque de balé? Sei que é um pedido grande, mas ela ficaria arrasada se não tivesse tudo pronto para a aula. Ao ouvir suas palavras, percebo a ansiedade em seus olhos, o peso que ela carrega na tentativa de equilibrar a vida profissional com a maternidade. Tento suavizar a situação com um sorriso reconfortante, consciente de como ela deve estar se sentindo. — Sem problemas, Analice. Eu sempre chego mais cedo, então posso ajudar com isso, com certeza. Kira é uma garota incrível, e vai adorar contar com você para esses detalhes. Ela solta um suspiro de alívio, os ombros relaxando um pouco, mas não consigo deixar de notar a preocupação que ainda permanece em seu olhar. Ela claramente queria que tudo fosse perfeito, que Kira não perdesse nenhum momento importante, especialmente com a apresentação se aproximando. — Muito obrigada, Isabella. Eu sei que Kira não poderia estar em mãos melhores, mas… é só que, você sabe, não tenho muita escolha. Ele é a única opção, e eu… bem, eu queria garantir que tudo correrá bem para ela, especialmente com a apresentação. Você sabe como ela se dedica a isso, como ela vive para o balé. Seria terrível se ela ficasse fora de alguma parte importante da aula. Ouço o peso das palavras dela e, de alguma forma, me sinto ainda mais responsável por garantir que Kira tenha a melhor experiência possível. Não é apenas uma questão de cumprir um favor, mas de fazer a diferença na vida de uma criança que, como muitas, só quer fazer o que ama e ser vista em seu melhor momento. — Pode contar comigo, Analice. Eu vou garantir que tudo esteja pronto para a Kira, e que ela esteja focada, como sempre. Vai ser uma semana intensa para ela, mas sei que ela vai dar o seu melhor. E quanto ao seu irmão… bem, vamos dar um jeito nele. Não se preocupe, eu estarei lá para garantir que tudo ocorra como planejado. Ela me olha com gratidão, finalmente relaxando um pouco, como se uma enorme carga tivesse sido tirada de seus ombros. Mas, antes de se afastar, ela me dá um último olhar cheio de apreensão. — Eu realmente agradeço, Isabella. Você não sabe o quanto isso significa para mim. Eu sorrio, tentando transmitir toda a confiança que ela precisa ouvir: — Não se preocupe, estou aqui para ajudar. Vai dar tudo certo, você vai ver. E com isso, ela se despede rapidamente de Kira e segue seu caminho, mas sei que, por dentro, ela continua com aquele olhar preocupado, o peso das responsabilidades e dos compromissos que a vida impõe. Eu, por outro lado, volto o olhar para Kira, que está agora empolgada com as outras meninas, ansiosa para começar a aula. Tudo vai dar certo. Enquanto vejo Analice se afastando pela porta, volto minha atenção para Kira. Ela está ali, no chão, com as perninhas esticadas e uma expressão concentrada enquanto faz borboletinhas, sua fita rosa cuidadosamente marcando seu lugar na barra. É um hábito que ela tem, sempre tão atenta e cuidadosa com cada detalhe. O olhar de pura dedicação que ela tem pela dança é algo raro e incrivelmente tocante. Mesmo tão nova, ela já compreende a disciplina que o balé exige e se entrega a ele com todo o coração. Ela me vê pelo espelho e, com um sorriso radiante, acena para mim. O brilho nos seus olhos me faz sorrir de volta com um aceno discreto. Aquela menina tem algo especial — uma paixão genuína que irradia de dentro para fora. Sinto um imenso carinho por ela, e, de certa forma, vejo um pouco de mim mesma quando era mais jovem em sua determinação. — Vamos começar com um pequeno alongamento, depois vamos nos aquecer na barra. — Minha voz, apesar de suave, carrega uma firmeza que as meninas sabem bem o que significa. Elas imediatamente se posicionam, prontas para seguir minhas instruções. O alongamento não é fácil. Algumas tentam se esticar mais do que podem, outras fazem caretas de dor, e há aquelas que quase desistem, mas sabem que devem continuar. A maioria das bailarinas, especialmente as mais jovens, não entendem o quanto o processo é importante para seu crescimento físico e artístico. Eu me lembro de quando passei por isso, das lágrimas e do cansaço. Às vezes, a dor parece insuportável, mas, como minha mãe sempre dizia: “Isso vai passar, é só uma fase.” E, com o tempo, a flexibilidade chega, e com ela, a confiança em seus próprios corpos. É difícil para algumas, eu sei, mas é essencial. E essas meninas precisam entender que o caminho para o sucesso no balé não é fácil, mas é recompensador. Algumas se queixam, outras até param, mas todas sabem que, no fundo, precisam passar por isso para poderem evoluir. Eu tento ser paciente, encorajando-as a ir um pouco mais longe a cada dia, a dar o seu melhor mesmo quando o corpo pede para parar. E então há Kira. Ela é diferente. Sempre chega cedo, nunca se queixa e está sempre disposta a dar seu melhor. Com ela, o processo de aprendizado parece mais leve. Sua entrega é profunda e, ao mesmo tempo, delicada, como se ela fosse movida por uma força interna que a impulsiona a ser cada vez melhor. Sua calma e dedicação são como um bálsamo para minha alma, especialmente quando comparadas à energia frenética de outras turmas. Se fosse uma turma mais agitada, eu não saberia lidar da mesma forma. Lidar com meninas que não têm a mesma paciência ou interesse seria um grande desafio. Mas a turma de Kira, com seu foco e sua disciplina, me dá prazer em ensinar. Elas estão se desenvolvendo tão bem, e o simples fato de ver Kira praticando com tanto amor e empenho me dá a certeza de que estou fazendo o meu trabalho da melhor forma possível. Enquanto as meninas seguem com o alongamento, me perco por um momento observando Kira, sua postura impecável e sua concentração. Ela realmente entende o que significa ser uma bailarina, mesmo com tão pouca idade. Isso me dá uma paz de espírito. No fundo, sei que, com essa dedicação, ela chegará longe. E, enquanto isso, vou estar aqui para guiá-la, assim como faço com todas as outras, mas sempre com um carinho especial por essa aluna que, com seu brilho silencioso, me lembra da magia que o balé pode trazer.Antoni ArmandA chamada telefônica me puxa de volta à realidade, interrompendo o turbilhão de pensamentos que me consome. Com o celular na mão, respiro fundo antes de atender, sabendo que o peso da conversa será inevitável.— Pai, eu vou dar um jeito nessa situação, ok? — tento controlar minha voz, tentando parecer mais calmo do que realmente me sinto, já antecipando o tom pesado que virá do outro lado da linha.— Antoni, eu confiei a empresa nas suas mãos. Você me prometeu que ia cuidar de tudo. — A voz dele é grave, saturada de frustração e preocupação. Sinto o peso das palavras, como se cada uma delas fosse um açoite. — Sua irresponsabilidade está colocando tudo o que construímos em risco. Estamos perdendo contratos importantes e, o pior, estamos minando a credibilidade de clientes fiéis que confiaram na gente por anos.Ouço o suspiro pesado do meu pai, como se cada palavra tivesse sido um esforço físico. A tensão que ele carrega na voz é palpável, e consigo sentir a dor de cada de
Isabella Cavalieri Os dias se arrastam como um balé exaustivo, e o cansaço tornou-se minha sombra mais fiel. Acordo antes do sol para ensinar pliés e piruetas, corrigir posturas e incentivar pequenos passos que, um dia, se tornarão grandes voos. À tarde, a rotina continua, e minha energia se dissolve a cada movimento repetido. À noite, as meninas mais velhas se juntam a mim para o ensaio extra de O Lago dos Cisnes—e, mesmo apaixonada pelo que faço, meu corpo suplica por descanso. Meus pés estão sempre doloridos, latejando sob o peso de tantas horas na ponta. Quando as luzes da academia finalmente se apagam e posso ir para casa, meu maior desejo é simples: uma ducha quente que lave o cansaço e me devolva ao mundo dos vivos. Só então, envolta no aconchego dos lençóis, me permito uma última indulgência—um romance clichê onde, em apenas 90 minutos, tudo encontra seu final feliz. Saio da sala de balé, tranco a porta com cuidado e caminho até a recepção para entregar a chave à Milena. Ma
Antoni Armand Fico parado diante da porta, atordoado. Meu olhar ainda está fixo no espaço vazio por onde aquela… tempestade passou. Uma bailarina em miniatura, mal maior que um tremor, berrando na minha cara como se fosse minha mãe. E eu? Eu, Antoni Armand, CEO da Armand’s Company, acostumado a enfrentar acionistas hostis, repórteres sensacionalistas e concorrentes de sangue frio… fiquei sentado, sem conseguir abrir a boca.O eco das palavras dela ainda reverbera na minha mente, junto com a imagem de seus olhos faiscando de fúria. Quem diabos era aquela mulher? Melhor ainda… quem ela pensa que é para entrar no meu escritório, me desafiar e sair como se tivesse vencido?Me recosto na cadeira, esfregando a mão no rosto, tentando absorver o que acabou de acontecer. Mas antes que eu possa colocar meus pensamentos em ordem, um par de passinhos ecoa pelo chão de mármore.Kira surge na minha frente, completamente alheia à guerra que aconteceu aqui dentro. Seu sorriso doce contrasta absurdam
Isabella Cavalieri Acordo com um sono péssimo. Ontem, ao chegar em casa mais tarde do que de costume, acabei me atrasando para tudo. Meu corpo, acostumado à rotina, parece que não sabe funcionar sem ela, e, como resultado, acordo completamente perdida. Me levanto, passo um pouco de água fria no rosto para tentar espantar o cansaço e me recompor. Coloco a roupa de balé, jogo tudo na mochila e desço para tomar café. Na mesa, encaro minha mãe com uma expressão de quem não está nada bem. Não sei se já mencionei isso antes, mas mamãe é… controladora, para dizer o mínimo. Ela está me observando com atenção, como se estivesse esperando algo de mim. O olhar de minha mãe é afiado como uma lâmina quando me sento à mesa. Sei exatamente o que está por vir antes mesmo de ela abrir a boca. — Onde esteve ontem, que chegou mais tarde que o usual? — A pergunta vem seca, sem rodeios, carregada de julgamento. Eu seguro um suspiro, mantendo a expressão neutra. Não adianta demonstrar irritação, iss
Isabella Cavalieri Estava no final do meu alongamento quando uma voz doce me tirou dos pensamentos. — Titia, cheguei! — Kira anunciou com sua mochila rosa balançando nas costas enquanto corria até mim. Sorrio, encantada com a energia que ela sempre trazia ao estúdio. — Oi, pequena! Vem cá, a titia vai te arrumar para a aula. — Estendi os braços, chamando-a, e ela veio correndo, um sorriso enorme no rosto. Kira é uma criança encantadora, com cabelos longos e escuros que sempre me lembram a mãe dela. Seus olhos levemente puxados lhe dão uma doçura especial, e seu entusiasmo pela dança ilumina qualquer ambiente. Ajudei-a a trocar de roupa, colocando seu collant preto e, por cima, uma sainha leve que balançava conforme ela se mexia. Como estava calor, optamos por não usar meia-calça. Nem eu estava usando naquele dia, já que o sol parecia derreter o asfalto lá fora. — Pronto, agora vamos para a parte mais importante — digo, pegando a escova de cabelo e me sentando no chão. Puxe
Isabella Cavalieri Era sexta-feira, e o cansaço me dominava como um manto pesado. Depois de uma semana exaustiva de ensaios, enfim havia um raro momento de respiro. Da beira da sala, observava as meninas na barra — seus movimentos precisos, a sincronia quase hipnótica, as expressões concentradas que denunciavam a disciplina de cada uma.Mas foi impossível não notar Kira.A pequena bailarina tinha algo diferente no olhar — um brilho sempre presente, mas hoje misturado ao opaco das lágrimas silenciosas que deslizavam por seu rosto. Ainda assim, ela seguia, impecável, executando seus pliés com uma delicadeza que partia o coração.Engoli em seco. Era impossível não lembrar de mim mesma, na mesma idade. Quantas vezes dancei sufocando dores físicas e emocionais, repetindo os passos como minha mãe exigia, porque, segundo ela, a excelência não dava espaço ao conforto.Aproximei-me de Kira e me abaixei ao seu lado, suavizando o tom da voz.— Ei, está tudo bem, querida?Ela balançou a cabeça d
Antoni Armand O médico apareceu pouco antes da meia-noite e confirmou que Kira estava com uma infecção estomacal. Ela precisava passar a noite em observação. Assim que ele terminou de falar, Kira desabou em lágrimas. Ela tinha um pavor visceral de hospitais e só se acalmou quando Isabella subiu na cama estreita e a envolveu em um abraço apertado. Eu nunca tinha visto minha sobrinha confiar tão rápido em alguém. Bella era um porto seguro para Kira, e algo nela a fazia sentir-se protegida. Talvez fosse o jeito carinhoso, a paciência infinita, ou até mesmo aquela doçura que parecia contagiar qualquer um que cruzasse seu caminho. Passei a noite sentado na poltrona do quarto, observando as duas dormirem juntas. Bella mantinha os braços firmes em volta da pequena, como se dissesse que nada no mundo a machucaria enquanto ela estivesse ali. Suas palavras mais cedo continuavam ecoando na minha mente: “Você está criando uma criança, Antoni.” E ela estava certa. Olha onde estávamos. Quand
Isabella Cavalieri Hoje quando cheguei do hospital eu e minha mãe tivemos uma briga feia, ela simplesmente não se importou por eu ter ajudado Kira, ela simplesmente achou o cúmulo eu não cumpri a minha carga horária de trabalho e não ter dormido bem, o que na verdade foi mentira por que eu dormi a noite toda. Isso me deixa incomodada, parece que pra ela só serve se eu tiver fazendo algo ligado ao balé, e eu tô cansada, eu queria ter amigas, sair, beber, poder sei lá fazer uma faculdade, ter um namorado, mas eu não vejo como me livrar de tudo isso, eu amo minha mãe e não quero magoá-la. Chego do restaurante depois do almoço e minha mãe me encara com a cara fechada. — você saiu quando eu mandei você ficar no estúdio ensaiando até a hora que eu mandasse parar – ela diz — mãe eu fiz isso, mas precisava parar pra almoçar, eu tinha sido convidado pelos Armands pra comer e eu fui – me explica — eu quero que se afaste dessa menina, você está saindo da sua rotina por conta dela,