Cecílie
MAS QUE MERDA… Penso ao chegar no endereço que Camila tinha me passado. O bairro tinha algumas casas velhas e outras já estavam caindo aos pedaços. O lugar parecia uma cidade fantasma, era assustador. Como elas tiveram coragem de vir até aqui? Agora não dava mais para voltar atrás, eu seria rápida. Será que Camila tinha me passado o endereço errado? No momento em que me faço essa pergunta, avisto luzes coloridas piscando no fim da rua. Algumas árvores atrapalhavam minha visão e escondia a casa muito bem, se não tivessem essas luzes eu nunca teria encontrado. Mas porque alguém faria uma festa aqui? Continuo andando com o carro e estaciono há alguns metros de distância da casa. A última coisa que eu queria era chamar atenção, foi uma ideia idiota vir até aqui, mas eu não deixaria minhas amigas nesse lugar. Olho com atenção para casa e parecia muito com cenário de filme de terror, só que com pessoas bêbadas e drogadas. Eu olhava ao redor e só conseguia ver pessoas inconscientes jogadas no chão ou vomitando no gramado. O som estava tão alto que me fez compreender porque eles faziam as festas aqui, não havia ninguém para denunciar, eu mesma não conseguia ouvir minha própria respiração. Mal cheguei e já queria ir embora. Respiro fundo tomando coragem para mexer meu pés nesse salto ridiculamente fino que coloquei querendo ficar linda para Raphael, ao que o mesmo não se deu o trabalho de elogiar meu esforço patético. Olhando para minha situação, começo a me arrepender dessa decisão. Ando até a porta da frente alerta a tudo que acontece à minha volta. Subo os três degraus da escada, e no instante em que atravesso a porta uma lufada de ar quente me atinge, me deixando zonza. A casa estava lotada, mas as pessoas não pareciam notar o quanto era desconfortável ficar num ambiente com várias outras pessoas suadas se esfregando em você, dançando e gritando, a essa altura do campeonato era impossível você falar e ser ouvida aqui. Comecei a procurar pelas meninas olhando por cima do mar de cabeças, mas era uma missão quase impossível devido a minha falta de tamanho, mas eu estava empenhada. Empurro algumas pessoas da minha frente com brutalidade, sem me importar com os xingamentos que recebo em seguida. Olho ao redor procurando pela cabeleira de Camila, quando uma sensação forte me atinge a espinha fazendo um arrepio brotar no final da minha coluna e subir por ela, se instalando atrás da nuca. Olho desesperadamente para os lados como se a resposta dessa sensação estivesse por perto, me observando, se espreitando pelos cantos dessa casa. Só que não fazia sentido algum, de duas, uma: ou eu estava enlouquecendo, ou a fumaça da maconha estava afetando minha mente deixando-me verdadeiramente perturbada. De relance, vejo uma figura parada nas escadas do segundo andar me encarando. Assim que meus olhos cruzam com os dele, arrepios correm por todo meu corpo, me deixando paralisada e sem fôlego. Arfo instintivamente. Eu tentava desviar o olhar a qualquer custo, mas tinha alguma coisa mais forte que eu, que não deixava eu concluir o ato. Eu sentia meu rosto ficando vermelho vivo pela atenção desnecessária, mas só consegui olhar para o chão por breves segundos e suspender rapidamente para encará-lo novamente. Um homem para em sua frente para cumprimentá-lo, pela intimidade, concluo que é algum amigo. Aproveito a oportunidade de não estar sendo observada também e presto atenção em suas roupas. Ele vestia uma camisa branca que adornava seus músculos abdominais, jaqueta de couro preta e calça jeans de lavagem escura. A corrente dourada, o relógio de ouro no pulso esquerdo e as tatuagens no pescoço e nas mãos completavam seu visual de bad boy. Mas o que me chamou atenção mesmo foi seu rosto marcado por uma cicatriz no olho esquerdo, que ia do supercílio e atravessava sua pálpebra. Era uma cicatriz bem grande, e eu tinha a impressão que, o que a causou foi doloroso. Ele parecia carregar muitos segredos com essa cicatriz, mas ela era estranhamente linda e combinava perfeitamente com seu belo rosto. Sinto uma queimação na boca do estômago, e uma sensação boa no vão entre minhas pernas, meu corpo não me obedecia e eu estava assustava por que sabia exatamente o que ele queria me dizer. Era a minha deixa para ir embora desse lugar. Dou meia volta e saio correndo da casa. O ar gelado da noite me atinge, deixando-me aliviada por ter saído do inferno atrás de mim. Eu só tinha um problema agora, como encontraria minhas amigas? Elas podem estar em qualquer lugar. Tento ligar um, duas, três vezes e ninguém atende. Estava quase desistindo quando um cara que eu nunca tinha visto na minha vida para na minha frente, falando coisas desconexas, faço menção de passar por ele quando o mesmo segura meu braço com força, me fazendo soltar um Ai. — Calma bebê, aonde vai com tanta pressa? — Quem é você? — puxo meu braço, mas não surte efeito algum, ao invés disso ele aperta com mais força. — Me solta! — Sou um cara legal. — ele sorri torto, seu bafo de álcool faz eu torcer o nariz com desgosto — Você vai gostar de me conhecer. — ele me puxa para mais perto do seu corpo. Os próximos segundos foram os mais assustadores da minha vida. Aconteceu tudo muito rápido. Num segundo o cara que vi dentro da casa me encarando estava em cima do outro socando seu rosto com brutalidade, eu só conseguia enxergar o sangue saindo do rapaz e sujando sua camisa branca. Ele não parava de bater, vai matar o outro se eu não fizer nada. — Pare! — seguro seu punho suspenso no ar, pronto para golpear o pobre de novo. — Ele já teve o que merecia. Ele me encara, seus olhos observam cada centímetro do meu rosto preocupado, procurando alguma coisa, e então olha no fundo dos meus olhos. Sua mão desce devagar e descansa em seu joelho, a outra solta o rapaz que cai cuspindo sangue. O estranho se levanta e ainda me encarando, pergunta: — Você está bem? Ele sussurra rouco e baixo para somente eu escutar. Prendo a respiração involuntariamente. Que loucura é essa? Eu podia estar muito enganada, mas sua voz era a coisa mais bonita que eu já tinha escutado. Eu me recuso a me sentir atraída por um estranho. Era errado de todas as formas possíveis. Um grupo de pessoas tinha feito uma roda ao nosso redor para ver o espetáculo, o que me deixou extremamente desconfortável, ao perceber, ele segura minha mão com a sua que não estava suja de sangue e gentilmente me puxa para longe das pessoas. — Está melhor? Eu incrivelmente tinha perdido o dom da fala. Se ele continuasse falando assim eu nunca conseguiria agradecê-lo. Vai, se esforça Cecílie. — Sim. Obrigada. Ele sorri. E eu quase caio pra trás. — Você mora perto daqui? — Cecílie! — ouço a voz de Camila. — Cecílie, aqui! Vejo as meninas caminhando. Graças a Deus. Elas vinham em minha direção. Quando vou agradecer mais uma vez, ele não estava mais lá, fico um pouco decepcionada, afinal eu queria saber seu nome. Talvez eu nunca mais o veja novamente. — Onde vocês estavam? Procurei por toda a parte. — Desculpa por não ter avisado, estávamos no fundo da casa, perto da piscina. Decido não brigar, eu já estava muito cansada pra isso, só queria ir para casa dormir. — Vocês estão bem? — Sim, e você? — Sim. — penso no estranho que me salvou. — Estão, vamos. Já está bem tarde. […] No caminho de casa, Soo dormia no ombro de Camila, que apoiava a cabeça na de Soo. Eu dirigia em silêncio, às vezes o pensamento voltava pro estranho da festa. Ele era perturbadoramente lindo, quando nos encaramos dentro da casa seu rosto tinha uma expressão grosseira, mas assim que falou comigo a ideia de ser uma pessoa ruim tinha sumido. Ele era gentil e tinha me salvado de um destino trágico. Qual será seu nome? Estaciono o carro na frente de casa e acordo as meninas, que resmungam um pouco, mas entram e vão direto pro meu quarto. Preparo um cama para as duas e vou dormir também. Fecho os olhos e minha mente vaga para horas atrás na festa, quando o lindo estranho olha no fundo dos meus olhos. Cinza. Era a cor dos seus.Filadélfia, 2012. Doze anos atrás. Kellan ESTOU CAINDO INERTE E NÃO tinha onde me segurar. Estava em um letífero conflito entre mim e meus pensamentos, que agora se encontravam completamente bagunçados. Minha visão começava a ficar turva, porém eu conseguia enxergar claramente quem estava caído à minha frente, com sangue escorrendo por sua blusa e manchando o piso de madeira desgastado da nossa antiga casa velha. Eu não queria acreditar. Olhando para o corpo pálido do meu padrasto no chão da sala eu começava a entrar em um desespero silencioso. Não posso entrar em pânico agora, não quero acordar minha irmãzinha que dorme no quarto ao lado, mas mamãe não colaborava. Mamãe se encontrava jogada em cima dele, aos prantos. Uma certa raiva crescia dentro de mim ao vê-la chorar por esse imbecil. Ah, minha querida mãe, eu não queria dizer que a entendia, pois não conseguia de forma alguma. Alguém que sofreu abusos na mão de outra pessoa deveria odiá-la profundamente, mas o que mamãe dizi
França, 2024. Dias atuais. Cecílie EU ESTAVA COMPLETAMENTE fora de mim. Lufadas de ar saiam dos meus pulmões como brasa, rápidas e precisas, eu sabia a hora exata de inspirar e respirar. Existia apenas eu, flutuando com minhas sapatilhas pelo palco do teatro ao som de black swan instrumental. Consigo sentir a atmosfera quente, no ato IV, giro sete vezes e me jogo em direção ao chão, com movimentos dolorosamente lentos. Fechou meus olhos embriagada com a sensação. O mundo tem cerca de oito bilhões de pessoas e cada pessoa tem seu vício em particular, o meu era o poder que eu exercia em cima do palco. Eu era intocável. Tudo que me faz sentir mal, desaparece quando estou dançando. O balé se tornou minha válvula de escape. E está tudo bem, cada um se mata à sua maneira. A música estava chegando no clímax. Eu completava meus últimos movimentos, bem mais suaves dessa vez, completamente satisfeita comigo mesma por ter dado um show, e muito orgulhosa. Raphael me pega em seu colo e me j*
Naquele mesmo dia. 06:00a.m. Kellan A MULHER QUE AGORA NÃO me recordo o nome estava nua, dormindo ao meu lado. Ela era extremamente deliciosa, isso eu tinha que admitir. Observo seu belo corpo com uma cintura acentuada, peitos fartos e uma bela bunda redonda. Dou mais uma tragada no cigarro e jogo pela janela, sentindo meu corpo relaxar quase que de imediato, torno a expulsar a fumaça tóxica dos meus pulmões, sentindo-me grogue e visivelmente mais calmo. Meu outro vício que, acredite ou não, eu odiava profundamente, mas é a segunda coisa no mundo que me acalma quando não estou correndo como um louco em cima de uma moto. Observo como a garota dorme tranquilamente e solto o ar pesadamente, com uma inveja palpável. Decido que está na hora de vazar daqui. Posso ser um grande filho da puta por sair dessa maneira, disso eu não tinha dúvidas, mas não consigo me importar menos. Eu já estava familiarizado com o gosto ruim que ficava na boca quando tudo terminava, quando a luxúria dava lu
Cecílie DESÇO AS ESCADAS COM certa pressa, com a bolsa no ombro esquerdo e o celular na mão. Meu dia começou bem, eu estava atrasada e me sentia muito cansada ainda. Na cozinha, pego uma torrada e coloco na boca, mastigando e engolindo mais rápido do que eu gostaria. Eu não gostava de chegar atrasada nos meus compromissos, mas hoje eu passei um pouco do horário; não sei o que deu em mim, talvez tenha sido ontem, a peça exigiu muito de mim. — Querida, coma devagar, você pode se engasgar. Está atrasada? — indaga mamãe, passando geleia na torrada. Ela estava bem calma para quem está atrasada também. — Um pouco — digo de boca cheia. — O que aconteceu? Você nunca se atrasa. E não coma de boca cheia, é mal educado. — não sei se está me repreendendo ou preocupada. — Desculpa — digo ainda com a boca cheia e ela revira os olhos. — A senhora também está atrasada. — afirmo. — Os chefes nunca estão atrasados, querida. — papai entra na sala vestindo um terno preto, com o cabelo molhado e co
Cecílie — Não, não, isso está horrible! O que eu fiz para merecer isso, mon Dieu — Lucien coloca a mão na testa parecendo desesperado. — Sylvie, mon cher, eu quero mais emoção nisso, seja lá o que você estiver fazendo. Cecílie, s'il te plaît — Lucien pede que eu tome o lugar de Sylvie. — Pode começar. Eu estava nervosa, mas sabia tudo de côr. Essa era uma das minhas peças favoritas, que conta o mito de Orfeu e Eurídice, que morre picada por um cobra e seu amado resolve buscá-la no Hades. O deus Hades permite que Orfeu leve Eurídice, com a condição que não olhasse para trás, mas a sua devoção a Eurídice era tamanha que ele não resiste e olha para ver se sua amada o seguia, assim ele acaba perdendo Eurídice para sempre. Era uma história de tragédia e perda, mas não deixava de ser linda. No final, sua alma encontra com Eurídice no campo dos Abençoados. Começo com os primeiros passos e dou tudo de mim nesse ensaio, eu queria mostrar para Lucien que eu era completamente capaz de fazer