Cecílie
— Não, não, isso está horrible! O que eu fiz para merecer isso, mon Dieu — Lucien coloca a mão na testa parecendo desesperado. — Sylvie, mon cher, Giselle está com o coração partido, eu quero mais emoção nisso, seja lá o que você estiver fazendo. Cecílie, s'il te plaît — Lucien pede que eu tome o lugar de Sylvie. — Pode começar. Eu estava nervosa, mas sabia toda a sequência de Giselle. Começo com os primeiros passos e dou tudo de mim nesse ensaio, eu queria mostrar para Lucien que eu era completamente capaz de fazer o papel de Giselle. Eu não faria ele duvidar de mim. — Sim, que belo — Lucien me elogiava. — Parfait. Obrigado, pode voltar para o seu lugar. Você viu como Cecílie dançou, Sylvie, ela dançou com o coração, é isso que eu espero de todos vocês. Por hoje é só. Eu não conseguia nem descrever o que eu estava sentindo nesse momento, só que eu estava muito feliz em ter a aprovação de Lucien, que era muito difícil de agradar. Nada nesse mundo me faria desistir desse papel. Sento-me no chão e retiro minhas sapatilhas, arrumando elas junto com o resto das minhas coisas na bolsa. — Esse papel já é seu — Camila vem até mim. — E para comemorar, nós três vamos em um lugar especial hoje. — diz sorridente. Eu tinha medo quando Camila ficava animada assim, era sempre um lugar insalubre, com pessoas de caráter duvidoso e bebidas de procedência ainda mais duvidosa. Eu sempre caia nessa ladainha dela, e sempre sobrava para Soo que não bebia. —Hoje eu não posso, lembra que tenho um jantar para fazer. — levanto do chão. — Não pode deixar esse jantar para outro dia? Descobri um lugar legal para a gente se divertir. Tenho até medo de imaginar qual. — Não, não posso. Semana que vem nós vamos. — Não vou esperar até semana que vem, vamos eu e Soo. Boa sorte com o jantar. Nos vemos amanhã. — Certo. Vocês duas tomem cuidado. Qualquer coisa me liguem se precisarem de mim. [...] O jantar estava pronto. Eu tinha preparado algo simples para nós, mas eu sei que ele gosta assim. Arrumei a mesa em um casebre que a gente tinha no jardim e coloquei alguns lençóis e almofadas no chão para ficar confortável. Acendi as velas, coloquei o vinho no gelo e algumas flores na mesa. Estava tudo perfeito. Eu estava receosa. Queria que a gente desse outro passo importante no nosso relacionamento, mas não sabia se estava preparada, só que eu queria tentar com ele sem me sentir pressionada. Era ridículo como eu estava com medo de algo que hoje em dia é tão normal. Mas é isso, nada me impede de tentar hoje, porque eu queria que fosse com ele, não é? Sim, é claro que sim. Meus pais tinham saído para jantar fora e disseram para não espera-los acordada, era o momento perfeito para passar mais tempo sozinha com Raphael. Subo para meu quarto e tomo um banho rápido. Faço uma maquiagem simples, e coloco uma lingerie branca que eu tinha comprado hoje, antes de vir para casa. Se eu ia fazer isso, tinha que fazer direito. Ponho um vestido vermelho, o mais ousado que eu tinha perdido no armário, e me olho no espelho. Eu estava satisfeita comigo mesma pelo esforço. Ouço a campainha tocar. Eu sabia que era Raphael, ele nunca se atrasa. Ao abrir a porta me deparo com ele totalmente impecável, seu cheiro era extremamente agradável. Eu nunca tinha visto Raphael desarrumado e creio que nunca veria. Ele estava usando uma camisa polo branca por dentro da calça social de lavagem escura, um tênis branco, e o casaco amarrado no pescoço completava seu visual. — Oi amor, como está? — ele beija meu rosto. — Não vai me convidar para entrar? — Claro, desculpa. — dou espaço, ele passa pela porta e se acomoda no sofá. — Preparei um jantar para gente no jardim. — No jardim? Está falando sério? — Não é bem no jardim — dou de ombros. — É no casebre que fica no jardim dos fundos, é bem aconchegante. — explico. — Você poderia ter me avisado, assim eu não teria vindo com essas roupas. — aponta para a roupa no corpo. Eu não via nenhum problema em suas roupas. Talvez ele estivesse só um pouco arrumado demais. — Se você quiser pode trocá-las por algo mais simples do meu pai. Deve ter alguma roupa que ele não usa mais. — Você tá brincando né? Tá que usar as roupas do meu pai não faz parte do plano, mas já que ele não quer sujar a roupa eu dei uma opção. — É, eu estou brincando. — concordo. Tinha algo de errado com ele. Quando foi que Raphael se tornou tão chato com essas coisas? […] As horas foram passando e a ideia de um jantar com Raphael não me agradava mais, pelo menos não com esse Raphael que acabei de conhecer. O assunto girou em torno dele o tempo todo e isso estava me tirando do sério, tinha perdido a fome e só queria a minha cama para deitar. Estava procurando uma desculpa para pôr o fim nessa noite terrível, mas ele não parava de falar. Tudo que eu tinha planejado para hoje tinha ido por água abaixo. O jantar e a noite inesquecível foram um completo fracasso. A comida já estava fria no meu prato e a probabilidade de perder minha virgindade hoje era nula. Acho que isso serviu de lição, não colocar tanta expectativa em algo, porque as coisas nem sempre saem como a gente quer. E dessa vez a culpa não tinha sido minha, e sim do Raphael esnobe e egocêntrico de hoje. Eu tinha uma ideia e esperava que Camila me ajudasse. Mando uma mensagem para ela pedindo que me ligasse fingindo que tinha uma emergência, e que depois eu explicaria tudo. Como esperado, Raphael nem tinha percebido que eu estava mexendo no celular. Meu celular toca e o nome de Camila acende na tela, eu atendo rápido. “Amiga, onde você está? É uma emergência, preciso de você agora.“ O barulho do outro lado da linha indicava que Camila estava numa festa, e sua voz embolada me fez querer rir. Eu não acredito que estava fazendo isso. Começo a achar que teria sido melhor se eu tivesse ido a essa festa com as meninas. “O que aconteceu, Camila?“ Falo com uma certa urgência na voz, Deus há de me perdoar por isso, pela mentira e pela vontade imensa que eu tinha de rir. Chamo atenção de Raphael para mim, finalmente. Ele me olha atentamente, tentando escutar a conversa. “Tive um acidente no fogão e me queimei.“ “Estou indo para aí agora.“ E desligo, sem dar tempo dela dizer mais alguma coisa, e torcendo que ele acreditasse em mim. Mando outra mensagem para ela pedindo o endereço da festa. — Amor, vou ter que sair, Camila teve uma emergência. Desculpa por isso. — Hm, ela está bem? — Sim. Mas acho que se queimou mexendo no fogão. — Da próxima vez avisa a Camila quando ela tiver uma emergência para ligar pra outra pessoa. Nunca senti isso por Raphael antes, mas a minha vontade agora era de socar sua cara bonita, ao invés disso maneio a cabeça em concordância. Eu não me sentia muito bem indo em uma festa, mas depois desse jantar o que eu mais queria era me distrair, então acompanho ele até a porta, dou-lhe um beijo no rosto e entro em meu carro que estava estacionado na frente de casa. Coloco o endereço que Camila me passou no gps. Ao caminho da festa a culpa começa a me corroer lentamente, eu deveria ter ficado com meu namorado, mas se passasse mais um minuto ouvindo ele falar sobre si mesmo eu juro que iria enlouquecer. Tento convencer a mim mesma que estou indo apenas para garantir que as meninas estão bem e voltarei assim que vê-las. Meu coração começava a ficar inquieto. Eu não sabia dizer porque, mas alguma coisa ia mudar hoje. Eu so não fazia ideia que seria a minha vida.Filadélfia, 2012. Doze anos atrás. Kellan ESTOU CAINDO INERTE E NÃO tinha onde me segurar. Estava em um letífero conflito entre mim e meus pensamentos, que agora se encontravam completamente bagunçados. Minha visão começava a ficar turva, porém eu conseguia enxergar claramente quem estava caído à minha frente, com sangue escorrendo por sua blusa e manchando o piso de madeira desgastado da nossa antiga casa velha. Eu não queria acreditar. Olhando para o corpo pálido do meu padrasto no chão da sala eu começava a entrar em um desespero silencioso. Não posso entrar em pânico agora, não quero acordar minha irmãzinha que dorme no quarto ao lado, mas mamãe não colaborava. Mamãe se encontrava jogada em cima dele, aos prantos. Uma certa raiva crescia dentro de mim ao vê-la chorar por esse imbecil. Ah, minha querida mãe, eu não queria dizer que a entendia, pois não conseguia de forma alguma. Alguém que sofreu abusos na mão de outra pessoa deveria odiá-la profundamente, mas o que mamãe dizi
França, 2024. Dias atuais. Cecílie EU ESTAVA COMPLETAMENTE fora de mim. Lufadas de ar saiam dos meus pulmões como brasa, rápidas e precisas, eu sabia a hora exata de inspirar e respirar. Existia apenas eu, flutuando com minhas sapatilhas pelo palco do teatro ao som de black swan instrumental. Consigo sentir a atmosfera quente, no ato IV, giro sete vezes e me jogo em direção ao chão, com movimentos dolorosamente lentos. Fechou meus olhos embriagada com a sensação. O mundo tem cerca de oito bilhões de pessoas e cada pessoa tem seu vício em particular, o meu era o poder que eu exercia em cima do palco. Eu era intocável. Tudo que me faz sentir mal, desaparece quando estou dançando. O balé se tornou minha válvula de escape. E está tudo bem, cada um se mata à sua maneira. A música estava chegando no clímax. Eu completava meus últimos movimentos, bem mais suaves dessa vez, completamente satisfeita comigo mesma por ter dado um show, e muito orgulhosa. Raphael me pega em seu colo e me j*
Naquele mesmo dia. 06:00a.m. Kellan A MULHER QUE AGORA NÃO me recordo o nome estava nua, dormindo ao meu lado. Ela era extremamente deliciosa, isso eu tinha que admitir. Observo seu belo corpo com uma cintura acentuada, peitos fartos e uma bela bunda redonda. Dou mais uma tragada no cigarro e jogo pela janela, sentindo meu corpo relaxar quase que de imediato, torno a expulsar a fumaça tóxica dos meus pulmões, sentindo-me grogue e visivelmente mais calmo. Meu outro vício que, acredite ou não, eu odiava profundamente, mas é a segunda coisa no mundo que me acalma quando não estou correndo como um louco em cima de uma moto. Observo como a garota dorme tranquilamente e solto o ar pesadamente, com uma inveja palpável. Decido que está na hora de vazar daqui. Posso ser um grande filho da puta por sair dessa maneira, disso eu não tinha dúvidas, mas não consigo me importar menos. Eu já estava familiarizado com o gosto ruim que ficava na boca quando tudo terminava, quando a luxúria dava lu
Cecílie DESÇO AS ESCADAS COM certa pressa, com a bolsa no ombro esquerdo e o celular na mão. Meu dia começou bem, eu estava atrasada e me sentia muito cansada ainda. Na cozinha, pego uma torrada e coloco na boca, mastigando e engolindo mais rápido do que eu gostaria. Eu não gostava de chegar atrasada nos meus compromissos, mas hoje eu passei um pouco do horário; não sei o que deu em mim, talvez tenha sido ontem, a peça exigiu muito de mim. — Querida, coma devagar, você pode se engasgar. Está atrasada? — indaga mamãe, passando geleia na torrada. Ela estava bem calma para quem está atrasada também. — Um pouco — digo de boca cheia. — O que aconteceu? Você nunca se atrasa. E não coma de boca cheia, é mal educado. — não sei se está me repreendendo ou preocupada. — Desculpa — digo ainda com a boca cheia e ela revira os olhos. — A senhora também está atrasada. — afirmo. — Os chefes nunca estão atrasados, querida. — papai entra na sala vestindo um terno preto, com o cabelo molhado e co