França, 2024.
Dias atuais. MAVIE EU ESTAVA COMPLETAMENTE fora de mim. Lufadas de ar saiam dos meus pulmões em brasa, rápidas e precisas, eu sabia a hora exata de inspirar e respirar. Existia apenas eu, flutuando com minhas sapatilhas pelo palco do teatro ao som de black swan instrumental. Consigo sentir a atmosfera quente, no ato IV, giro sete vezes e me jogo no chão, com movimentos dolorosamente lentos. Embriagada com a sensação, fecho meus olhos. Cada pessoa no mundo tem seu vício em particular, o meu era o poder que exercia em cima do palco. Eu era intocável. Tudo que eu sinto, tudo que de alguma forma me faz sentir mal, desaparece quando estou dançando. O balé se tornou minha válvula de escape. E está tudo bem. Cada um se mata à sua maneira. A música estava chegando no clímax. Eu completava meus últimos movimentos, mas suaves dessa vez, quando na primeira fileira da plateia, olhos cinzas me observavam atentamente. Como eu enxergava? Eles brilhavam no escuro. Eu não sabia quem era o dono daquele par de olhos, mas eu sabia ler as pessoas, principalmente os olhos, mas aqueles eu não soube decifrar o que diziam. O canto dos seus lábios se repuxaram em um sorriso sútil, seus olhos ainda me seguiam incessantemente pelo palco. Eu girava, e girava, e girava, mas vi perfeitamente quando cruzou os braços na camisa apertada e deixou a mostra sua pele marcada por tatuagem. Ele era ridiculamente lindo. Não parece alguém que gosta de balé, muito menos alguém que frequenta esses lugares. Uma mulher agarra seu braço e relutante, olho para ela. Era muito bonita, devia ser sua namorada. Era estranho o jeito que eu estava prestando atenção em seus detalhes. Eu me sentia culpada, já que meu namorado estava dançando o solo comigo nesse momento. Eu lhe devia meu total respeito, porque em momento algum me deu motivos para não o merecer. Paro de dançar e estou no chão novamente com Raphael em cima de mim. Meu coração estava acelerado, dava para ouvir as batidas à quilômetros de distância, duvidava que o estranho não estivesse escutando agora mesmo. Coloco a mão na testa com a palma virada para cima e respiro fundo, fechando os olhos, fazendo o drama na cena final. Suas íris cinzas me vieram à mente. Eu estava ficando louca. Levanto e saio do palco graciosamente. — Você estava perfeita! — Camila vem até mim e me abraça. — Você parecia flutuar no palco. — Soo b**e palminhas. Camila e Soo-Jin eram minhas melhores amigas. Conheço elas um pouco mais de um ano, quando nos matrículamos no mesmo dia na Ballet Academy School. O que nos uniu ainda mais foi o amor pelo balé, somos apaixonadas pela arte da dança. E balé é uma arte. Camila é negra, brasileira, e ostenta um cabelo preto cacheado maravilhoso, mas alisa ele sempre que pode. Uma beleza surreal, eu costumo dizer. Soo-Jin é coreana, tinha a pele branca, cabelos lisos e negros até metade das costas, e olhos puxados. As diferenças nunca foram um problema para nós, nos amávamos além das fronteiras que separavam nossos países. — Obrigado — sorrio afetada. — Mas não foi nada demais. — Nossa, como ela é modesta — atrás de mim escuto Sylvie debochar. — Qualquer um pode fazer o que você fez, não se ache tanto. — Se você conseguisse fazer o que Mavie consegue, Lucien colocava você para dançar o solo, não ela. — rebate Camila. Ela era assim. Agia como uma leoa protegendo seus filhotes. — Deixe isso para lá Cam, não vale a pena gastar sua saliva com ela. — seguro seu braço. — Você tem razão. — ela se recompõe. Sylvie dá as costas e vai embora irritada por não conseguir arrumar briga com a gente naquele momento, o que para ela já estava se tornando rotina. Camila quase sempre caia por que tem um temperamento quente e não gosta de levar desaforo para casa. Acho até que Sylvie se sente um pouco ameaçada por mim, por que suas brigas eram sempre comigo, algumas vezes por coisas fúteis. Mas eu não me importava desde que ela não encostasse em mim. — Esqueçam a Sylvie, estão te chamando no palco. Vai lá! — Soo me empurra e eu vou correndo para trás das enormes cortinas vermelhas. Quando elas se abrem, sorrio e me curvo diante do público, agradecendo os aplausos e as rosas. Eu estava tão feliz. Ergo o corpo e, inevitavelmente, meus olhos procuram os dele na plateia, mas caem na mulher ao seu lado, que aplaudia muito minha apresentação. Direciono meu olhar para ele que não aplaudia, mas me encarava profundamente. Saio do palco, atordoada. [...] Eu dirigia de volta para casa no meu Maserati que ganhei dos meus pais no meu aniversário de dezoito anos. Eles não eram péssimos pais, mas são bem protetores e conservadores. Eu ainda morava com eles por que não conseguia me sustentar sozinha com um salário de estagiária, e sim, eu trabalhava para os meus pais em uma das suas grandes empresas espalhadas pelo mundo, e apesar de ser filha dos donos eu não tenho privilégios, tenho que ralar como qualquer outro funcionário. Mas fora da empresa, ser filha de Sébastien e Genevieve Bellerose tinha seus prós. Apesar de conservadores, eles não me proibem de nada, apenas pedem que eu me cuide. Chego em frente a minha casa e entro com o carro na garagem, que tinha mais dois carros estacionados. Pego minhas coisas no banco do carona e saio do carro, trancando as portas. Tinha uma porta do lado direito da garagem que dava acesso a cozinha da casa. Subo as escadas e na cozinha encontro minha mãe na frente do fogão. — É isso mesmo que estou vendo? A grandíssima Genevieve está cozinhando? — Ou tentando. Sou péssima nisso. — choraminga. Olho o que ela estava fazendo e parece ser bolo. Tinha cara de bolo, cheiro de bolo, mas será que tem gosto de bolo? Eu queria experimentar e dar minha opinião, mas tenho medo de parar na emergência por intoxicação alimentar. — Não parece ruim. — Quer provar? — Não. — saio da cozinha correndo. — Como se saiu hoje, querida? — grita. — Fui ótima, mãe! — grito de volta e subo as escadas ainda mais rápido para fugir das suas perguntas. A casa parecia pequena por fora, mas era bem grande e luxuosa por dentro para uma família de três pessoas. Meu quarto fica no segundo andar no final do corredor, que tinha desnecessariamente mais uns quatro quartos, eu não entendia pra quê se meus pais quase não recebiam visitas, mas preferia não questiona-los. Finalmente, me jogo na cama muito cansada para pensar em qualquer coisa senão dormir, mas eu sabia que antes precisava organizar as coisas para amanhã se não chegaria atrasada no trabalho. Bufo e me levanto. Preparo a água na banheira com saís e espuma, queria um banho bem relaxante. Tiro a roupa e entro na banheira me encostando na borda, apreciando a água morna. Era disso que eu precisava. Fecho os olhos e relaxo. Alguns minutos se passam quando aqueles olhos decidem invadir meus pensamentos outra vez, me perseguindo até no banho. O que eu estou pensando?! Trato de me recompor e pensar na pessoa que realmente importava para mim. Meu namorado. Meia hora depois termino meu banho e faço meu ritual de skin care. Coloco um pijama, arrumo a bolsa de trabalho, a roupa que vou usar durante o dia e alguns produtos de higiene também. Me deito e pego meu celular, mando mensagem para minhas amigas avisando que passo para pegá-las exatamente às 13:00 da tarde. Elas respondem e logo bloqueio o celular para dormir. Fecho as cortinas automáticas e relaxo entre os travesseiros até pegar no sono.Um dia antes. KELLAN A MULHER QUE AGORA NÃO me recordo o nome estava nua, dormindo ao meu lado. Ela era extremamente deliciosa, isso eu tinha que admitir. Observo seu belo corpo, com uma cintura acentuada, peitos fartos e uma bela bunda redonda. Dou uma última tragada no cigarro sentindo meu corpo relaxar quase que de imediato, em seguida torno a expulsar a fumaça tóxica dos meus pulmões, me sentindo meio grogue e visivelmente mais calmo. Meu outro vício que, acredite ou não, eu odiava profundamente, mas é a segunda coisa no mundo que me acalma quando não estou correndo como um louco em cima de uma moto. Observo como ela dorme tranquilamente e solto o ar pesadamente, com uma inveja palpável. Decido que está na hora de vazar daqui. Sou um grande filho da puta por sair dessa maneira, disso eu não tinha dúvidas, mas não consigo me importar menos, eu já estava familiarizado com o gosto ruim que ficava na boca quando tudo terminava, quando a luxúria dava lugar a outro sentimento. Só r
MAVIEDESÇO AS ESCADAS CORRENDO, com a bolsa no ombro esquerdo e o celular na mão. Eu estava bem atrasada. Na cozinha, pego duas torradas, uma com nutela e outra com geleia, coloco uma na boca, mastigando e engolindo mais rápido do que eu gostaria, faço a mesma coisa com a outra. Eu não gostava de chegar atrasada nos meus compromissos, mas hoje eu passei um pouco do horário, não sei o que deu em mim.— Filha, come devagar, você pode se engasgar. Está atrasada? — pergunta mamãe.— Só um pouco — digo de boca cheia.— O que houve? Você nunca se atrasa.— Eu sei! — digo sem acreditar. — A senhora também está atrasada, não?— Os chefes nunca estão atrasados, querida. — papai entra na sala vestindo um terno, com o cabelo molhado e penteado perfeitamente para trás.Ele vem e me dá um beijo na testa, depois um selinho na mamãe. Eles se moviam graciosamente pela cozinha, como um só. Mamãe estendia a mão para pegar a manteiga e papai já estava com ela na mão para entregá-la, era uma sintonia pe
Filadélfia, 2012.Doze anos atrás.KELLANESTOU CAINDO INERTE E NÃO tinha onde me segurar. Estava em um letífero conflito entre mim e meus pensamentos, que agora se encontravam completamente bagunçados. Minha visão começava a ficar turva, porém eu conseguia enxergar claramente quem estava caído à minha frente, com sangue escorrendo por sua blusa e manchando o piso de madeira desgastado da nossa antiga casa velha.Eu não queria acreditar. Olhando para o corpo pálido do meu padrasto no chão da sala eu começava a entrar em um desespero silencioso. Não posso entrar em pânico agora, não quero acordar minha irmãzinha que dorme no quarto ao lado, mas mamãe não colaborava. Mamãe se encontrava jogada em cima dele, aos prantos. Uma certa raiva crescia dentro de mim ao vê-la chorar por esse imbecil. Ah, minha querida mãe, eu não queria dizer que a entendia, pois não conseguia de forma alguma. Alguém que sofreu abusos na mão de outra pessoa deveria odiá-la, mas o que mamãe dizia sentir era um pr