França, 2024.
Dias atuais. Cecílie EU ESTAVA COMPLETAMENTE fora de mim. Lufadas de ar saiam dos meus pulmões como brasa, rápidas e precisas, eu sabia a hora exata de inspirar e respirar. Existia apenas eu, flutuando com minhas sapatilhas pelo palco do teatro ao som de black swan instrumental. Consigo sentir a atmosfera quente, no ato IV, giro sete vezes e me jogo em direção ao chão, com movimentos dolorosamente lentos. Fechou meus olhos embriagada com a sensação. O mundo tem cerca de oito bilhões de pessoas e cada pessoa tem seu vício em particular, o meu era o poder que eu exercia em cima do palco. Eu era intocável. Tudo que me faz sentir mal, desaparece quando estou dançando. O balé se tornou minha válvula de escape. E está tudo bem, cada um se mata à sua maneira. A música estava chegando no clímax. Eu completava meus últimos movimentos, bem mais suaves dessa vez, completamente satisfeita comigo mesma por ter dado um show, e muito orgulhosa. Raphael me pega em seu colo e me j**a para cima, me erguendo em seus braços e me girando no ar. Eu me sentia nas nuvens em seus braços, ele sabia exatamente o que fazer, por isso éramos bons parceiros. Me lanço para baixo e ele me segura fortemente sem me deixar cair; começo uma sequência de giros, até estar no chão novamente com Raphael em cima de mim. Meu coração estava acelerado, dava para ouvir as batidas à quilômetros de distância. Coloco a mão com a palma virada para cima na testa e respiro fundo, fechando os olhos. Levanto e saímos do palco graciosamente. — Você estava perfeita! — Camila vem até mim e me abraça. — Você e Raphael formam um belo casal. — Eu concordo com você, na parte em que formamos um belo casal. — rimos juntas. — Vocês pareciam que iam flutuar pelo palco. — Soo b**e palminhas. — Teve um breve momento em que eu cheguei a achar que realmente estava flutuando, Soo. Estou muito feliz. — abraço as duas em um abraço coletivo. Camila e Soo-Jin são minhas melhores amigas. Conheço elas pouco mais de um ano, quando nos matrículamos no mesmo dia na Ballet Academy School. Foi o que nos uniu ainda mais, o amor pelo balé. Desde então somos inseparáveis, posso até dizer que as amo como irmãs. Camila é negra, brasileira e ostenta um cabelo preto cacheado maravilhoso, é quase um pecado quando ela alisava. Uma beleza surreal, eu costumo dizer. Soo-Jin é coreana, tinha a pele branca, cabelos lisos e negros até metade das costas, e olhos puxados. Linda, de uma forma delicada. As diferenças nunca foram um problema para nós, nos amávamos além das fronteiras que separam nossos países, éramos muito mais que um preconceito infundado. — Obrigado, meninas — sorrio afetada. — Mas não foi nada, qualquer uma de vocês faria muito melhor que eu. — Nossa, como ela é modesta — atrás de mim, ouço Sylvie debochar. — Qualquer um pode fazer o que você fez, não se ache tanto, idiota. — Se você conseguisse fazer o terço que Cecílie consegue, Lucien colocava você para dançar o solo e não ela, sua paquita do capeta*. — rebate Camila. Ela é sempre assim. Agia como uma leoa protegendo seus filhotes, e eu quase nunca entendo o que ela quer dizer, mas pelo que parece é nos defendendo, eu espero. — Deixe isso para lá Cam, não vale a pena gastar sua saliva com ela. — seguro seu braço. — Você tem razão — ela se recompõe. Seus olhos estavam saltando da órbita, eu temo pelo dia que Camila irá perder a razão e atacára Sylvie a qualquer momento. — Na melhor hora. Sylvie dá as costas e vai embora irritada por não conseguir arrumar briga com a gente, o que para ela já estava se tornando rotina. Camila quase sempre cai na dela por que tem um temperamento explosivo e não gosta de levar desaforo para casa. Algumas vezes acho até que Sylvie se sente ameaçada por mim, porque suas brigas eram sempre comigo, às vezes por coisas que dariam para serem resolvidas com uma conversa. Mas eu não me importava, desde que ela não mexesse com minhas amigas. — Esqueçam a Sylvie, estão te chamando no palco. Vai lá! — Soo me empurra e eu vou correndo para trás das enormes cortinas vermelhas junto a Raphael. Quando as cortinas se abrem, sorrio e me curvo diante do público, agradecendo os aplausos e as rosas. No meio de todas aquelas flores vermelhas tinha uma que se destacava por ser branca, aquela rosa chamou minha atenção pela sua beleza. Pego do chão a rosa e saio do palco, acompanhada de Raphael. — Quem foi que jogou essa rosa branca? — pergunta. — Não sei, mas é muito bonita — respondo, olhando para a flor. — Não acha? — Sim, tanto faz. Vamos comemorar mais tarde? — Não, não vai dar, amanhã eu trabalho bem cedo, você conhece meus pais. — Tá bom, deixa para próxima então. Ele me dá um selinho rápido e sai para o encontro com seus amigos, me deixando sozinha com minha rosa. [...] Eu dirigia de volta para casa no meu Maserati que ganhei dos meus pais no meu aniversário de dezoito anos. Eles não são péssimos pais, na verdade, eles são ótimos sendo meus pais. Eu ainda morava com eles por que não conseguia me sustentar sozinha com um salário de estagiária, e sim, eu trabalhava para Sébastien e Genevieve em uma das suas empresas de jóias, e apesar de ser filha dos donos eu não tenho privilégio algum, tenho que ralar como qualquer outro funcionário. Chego em frente a minha casa e entro com o carro na garagem, que tinha mais dois carros estacionados. Pego minhas coisas no banco do carona e saio do carro, trancando as portas. Tinha uma porta do lado direito da garagem que dava acesso a cozinha da casa, subo as escadas e dou de cara com mamãe em frente ao fogão. — É isso mesmo que estou vendo? A grandíssima Genevieve está cozinhando? — Ou tentando, porque sou péssima nisso. — choraminga. Olho o que ela estava fazendo e parece ser bolo. Tinha cara de bolo, cheiro de bolo, mas será que tinha gosto de bolo? Eu queria experimentar e dar minha opinião, mas tenho medo de parar na emergência por intoxicação alimentar. — Não parece ruim. — Quer provar? — Não. — saio correndo da cozinha. — Como se saiu hoje, querida? — grita para mim. — Foi bem! — grito e subo as escadas ainda mais rápido para fugir das suas perguntas. A casa parece pequena por fora, mas é bem grande e luxuosa por dentro para uma família de três pessoas. Meu quarto fica no segundo andar no final do corredor, que tinha desnecessariamente mais alguns quartos vazios. Finalmente, me jogo confortavelmente em minha cama, muito cansada para pensar em qualquer coisa, senão dormir agora, só que infelizmente, eu sabia que precisava organizar as coisas para o trabalho amanhã. Bufo e me levanto. Preparo a água na banheira com saís e espuma, queria um banho bem relaxante. Tiro a roupa e entro na banheira me encostando na borda, apreciando a água morna. Era disso que eu precisava. Fecho os olhos e relaxo por pelo menos uns vinte minutos. Depois que termino o banho, faço meu skin care e coloco um pijama. Arrumo a bolsa de trabalho, a roupa que vou usar durante o dia amanhã e alguns produtos de higiene pessoal também. Deito na cama e pego o celular, mando mensagem para minhas amigas avisando que passo para pegá-las exatamente às 01:00p.m da tarde. Elas respondem e logo bloqueio o celular para dormir. Fecho as cortinas automáticas e relaxo entre os travesseiros até pegar no sono. ••• *Paquita do capeta: As paquitas são assistentes da apresentadora Xuxa, misturada com o capeta ou pessoa ruim, ou seja, assistente do capeta, e pode ser entendida como uma pessoa que faz o mal.Naquele mesmo dia. 06:00a.m. Kellan A MULHER QUE AGORA NÃO me recordo o nome estava nua, dormindo ao meu lado. Ela era extremamente deliciosa, isso eu tinha que admitir. Observo seu belo corpo com uma cintura acentuada, peitos fartos e uma bela bunda redonda. Dou mais uma tragada no cigarro e jogo pela janela, sentindo meu corpo relaxar quase que de imediato, torno a expulsar a fumaça tóxica dos meus pulmões, sentindo-me grogue e visivelmente mais calmo. Meu outro vício que, acredite ou não, eu odiava profundamente, mas é a segunda coisa no mundo que me acalma quando não estou correndo como um louco em cima de uma moto. Observo como a garota dorme tranquilamente e solto o ar pesadamente, com uma inveja palpável. Decido que está na hora de vazar daqui. Posso ser um grande filho da puta por sair dessa maneira, disso eu não tinha dúvidas, mas não consigo me importar menos. Eu já estava familiarizado com o gosto ruim que ficava na boca quando tudo terminava, quando a luxúria dava lu
Cecílie DESÇO AS ESCADAS COM certa pressa, com a bolsa no ombro esquerdo e o celular na mão. Meu dia começou bem, eu estava atrasada e me sentia muito cansada ainda. Na cozinha, pego uma torrada e coloco na boca, mastigando e engolindo mais rápido do que eu gostaria. Eu não gostava de chegar atrasada nos meus compromissos, mas hoje eu passei um pouco do horário; não sei o que deu em mim, talvez tenha sido ontem, a peça exigiu muito de mim. — Querida, coma devagar, você pode se engasgar. Está atrasada? — indaga mamãe, passando geleia na torrada. Ela estava bem calma para quem está atrasada também. — Um pouco — digo de boca cheia. — O que aconteceu? Você nunca se atrasa. E não coma de boca cheia, é mal educado. — não sei se está me repreendendo ou preocupada. — Desculpa — digo ainda com a boca cheia e ela revira os olhos. — A senhora também está atrasada. — afirmo. — Os chefes nunca estão atrasados, querida. — papai entra na sala vestindo um terno preto, com o cabelo molhado e co
Cecílie — Não, não, isso está horrible! O que eu fiz para merecer isso, mon Dieu — Lucien coloca a mão na testa parecendo desesperado. — Sylvie, mon cher, Giselle está com o coração partido, eu quero mais emoção nisso, seja lá o que você estiver fazendo. Cecílie, s'il te plaît — Lucien pede que eu tome o lugar de Sylvie. — Pode começar. Eu estava nervosa, mas sabia toda a sequência de Giselle. Começo com os primeiros passos e dou tudo de mim nesse ensaio, eu queria mostrar para Lucien que eu era completamente capaz de fazer o papel de Giselle. Eu não faria ele duvidar de mim. — Sim, que belo — Lucien me elogiava. — Parfait. Obrigado, pode voltar para o seu lugar. Você viu como Cecílie dançou, Sylvie, ela dançou com o coração, é isso que eu espero de todos vocês. Por hoje é só. Eu não conseguia nem descrever o que eu estava sentindo nesse momento, só que eu estava muito feliz em ter a aprovação de Lucien, que era muito difícil de agradar. Nada nesse mundo me faria desistir desse p
Filadélfia, 2012. Doze anos atrás. Kellan ESTOU CAINDO INERTE E NÃO tinha onde me segurar. Estava em um letífero conflito entre mim e meus pensamentos, que agora se encontravam completamente bagunçados. Minha visão começava a ficar turva, porém eu conseguia enxergar claramente quem estava caído à minha frente, com sangue escorrendo por sua blusa e manchando o piso de madeira desgastado da nossa antiga casa velha. Eu não queria acreditar. Olhando para o corpo pálido do meu padrasto no chão da sala eu começava a entrar em um desespero silencioso. Não posso entrar em pânico agora, não quero acordar minha irmãzinha que dorme no quarto ao lado, mas mamãe não colaborava. Mamãe se encontrava jogada em cima dele, aos prantos. Uma certa raiva crescia dentro de mim ao vê-la chorar por esse imbecil. Ah, minha querida mãe, eu não queria dizer que a entendia, pois não conseguia de forma alguma. Alguém que sofreu abusos na mão de outra pessoa deveria odiá-la profundamente, mas o que mamãe dizi