O lugar onde eu morava ficava no centro de Noriah Norte, próximo de quase tudo. Embora o aluguel fosse alto, diminuía despesas com transporte. Eu divida aluguel com dois amigos: Benício, que chamávamos de Ben, e Salma.
Salma era minha amiga desde sempre. Viemos juntas da cidade onde morávamos para dividir o aluguel e estudarmos. Eu fui para a faculdade e ela foi ser dançarina numa boate. Nunca passou nem na frente da faculdade.
Ben eu conheci na faculdade. E desde que o vi a primeira vez já sabia que seríamos melhores amigos. Um mês depois ele foi morar conosco, porque era mais perto da faculdade.
O incrível é que não fazíamos o mesmo curso e por coincidência, na primeira matéria que cursamos, que era básica e envolvia quase todos os cursos, nos encontramos e foi amor à primeira vista.
Subi as escadas contando os passos, já imaginando se aquilo faria bem para minha endometriose. Bem, não deixava de ser um exercício físico. Pobre era assim: fazia da correria diária exercício físico. Eu sonhava um dia poder viver uma vida diferente, sem precisar contar os centavos para pagar as contas ao final do mês. Assim como ser menos azarada com tudo que acontecia na minha vida.
Porque sinceramente, às vezes eu achava que Deus me colocou na terra e disse: “Vamos ver o quanto esta Bárbara Novaes aguenta. Hum... Acho que vou testar a força das mulheres nela”. Então eu olhei para ele e mostrei o dedo do meio e disse:
- É só isso que você tem para mim? Manda mais que eu suporto.
E assim Ele ficou puto comigo e continuou mandando coisas ruins... Até agora. Inclusive pensou: “Onde ela morar vou acabar com o sossego dela.” “Elevador, pare de funcionar”. Daí alguém vinha e arrumava. “Elevador, pare de novo”. Deus não se dava por vencido quando o assunto era eu.
Meu negócio com Deus é que fui obrigada a minha inteira a frequentar a missa aos domingos, junto da minha avó. Ela sempre falou que era preciso termos fé para conseguir as coisas. E mesmo estando na casa de Deus todo este tempo, Ele não foi nada justo comigo. Então um dia eu decidi que não acreditaria mais Nele. E não exerceria mais a minha fé. Buscaria sozinha o que eu precisava.
O certo é que cada vez que a vida tentasse me derrubar, ela ia ganhar em troca um dedo do meio.
Abri a porta e vi Ben e Salma sentados no sofá, comendo pipoca e assistindo filme clichê, daqueles que já assistimos 435 vezes e ainda assim chorávamos no final. Sim, tínhamos uma seleção de filmes por lista: “para chorar”, “para gritar”, “para rir”, “para fingir que está vendo”.
- Babi, vem olhar um filme com a gente. – Chamou Ben, me dando espaço ao lado dele.
Sentei e já vi a cena de “Um amor para recordar”.
- Vocês não precisam deste filme para chorar. – falei, pegando um punhado de pipoca. – Chorem ouvindo o que descobri hoje no ginecologista.
Os dois me olharam.
- Fala, Babi. – Salma me olhou, curiosa.
- Tenho uma doença chamada endometriose.
- Babi, isso não é tão sério. E tem remédio. Minha mãe tem. – Ben voltou a olhar para a TV.
- Ben, não faz isso comigo. Me fale tudo sobre isso, por favor.
- Depois que acabar o filme, amorzinho. – me puxou para junto do corpo dele.
Ben era aquele tipo de pessoa que ter como amigo era um privilégio: carinhoso, inteligente e fiel. Era magro, tinha os cabelos compridos, que geralmente usava para penteados criativos e originais. Os olhos eram claros e a pele tipo porcelana, que ele barbeava diariamente e usava tantos cremes quanto conseguia passar ao longo do dia.
Ele era formado em moda e trabalhava numa revista. Ben era uma mulher que nasceu por acidente no corpo de um homem. Foi aquele que Deus quando foi colocar no corpo acabou se confundindo e botando no errado. E meu amigo que lutasse.
Embora eu convivesse com Salma praticamente a vida inteira, Ben tinha meu coração e era muito mais sábio em conselhos.
Assim que o filme acabou, Ben me tranquilizou com relação a doença. Ouvi-lo falar de forma tão tranquila e simples me fez bem.
- Conseguiu emprego? – Salma perguntou, enquanto buscava água na geladeira, vestindo somente uma calcinha larga e camiseta branca rasgada, daquelas que parece que vieram da guerra.
- Nada... Nadinha. – resmunguei, chateada.
- Só faz uma semana, Babi. – Ben disse. – Logo vai encontrar algo.
- Estou cansada de empregos temporários. Além de pagarem mal não tenho nenhum benefício. Um ano que pulo de galho em galho. – reclamei.
- Não precisa ficar sem emprego. Sempre tem vaga de dançarina na Babilônia.
Arqueei a sobrancelha e ri:
- Ainda não desistiu de mim, Salma?
- Claro que não. Você daria uma ótima dançarina. Corpo perfeito, linda... Seria contratada na hora, Babi.
- Sem desmerecer seu trabalho, amiga, mas não estudei pra isso. Além do mais, você me imagina dançando numa caixa de vidro enquanto todo mundo me olha? – comecei a gargalhar. – Eu pago para não ser notada.
- Sem contar o fato que se algum homem se engraçasse com ela, Babi seria capaz de arrancar o coração dele com as próprias mãos. – Ben completou.
- Eu já disse que não sou garota de programa, gente. – Salma se justificou enquanto bebia a água na própria garrafa.
- Eu não quis dizer isso, Salma. – Ben se justificou.
- Quero saber quando vocês vão lá, para ver o que eu realmente faço.
- Quando tivermos grana, bem. – Ben revirou os olhos. – A entrada é quase metade do meu salário de comentarista de moda de celebridades, iniciante numa revista decadente.
Começamos a rir.
- No meu caso, nem salário tenho. Mas sinceramente, acho que pagam muito bem vocês, Salma. Mas claro que a entrada é altíssima também. Mas sim, quero conhecer aquele lugar um dia. E ver se realmente as dançarinas não se envolvem com os frequentadores.
- Eu juro que não, Babi.
- Mesmo que fosse... Eu não tenho nada a ver com sua vida e suas escolhas, amiga.
- A opinião de vocês importa. – disse Salma. – Assim como você deveria ter levado em conta a nossa e não ter perdido oito anos da sua vida.
- Querem mesmo falar de Jardel?
- Sim. – os dois afirmaram ao mesmo tempo.
- Eu levei em conta a opinião de vocês, sim. – Contestei.- Jura, querida? – Ben me encarou.- Se tivesse nos ouvido, não tinha perdido oito anos da sua vida envolvida com aquele traste. E ainda me julga. – Salma sentou no outro sofá, com as pernas para cima, empolgada em começar a discutir a parte mais ridícula da minha vida.- Eu estou livre dele e isso que importa. Agora eu só tenho um foco: Bon Jovi.Os dois começaram a rir.- Enquanto estava com Jardel o Bon Jovi era o amante? Ou o contrário? – Ben estreitou os olhos, se segurando para não rir.- Qualquer coisa. – dei de ombros. – Ele sempre foi o verdadeiro amor da minha vida.- E o meu Axel Rose, dona Alice no País das Maravilhas. – Ben me abraçou. – Não comece a inventar esta história de “vou amar alguém impossível e ser mais feliz se for assim”.- Ben tem razão, Babi. Já se passaram dois anos. Você tem que seguir em frente.Sim, fazia dois anos que eu havia me livrado de Jardel, meu ex namorado. E não foi nada fácil. Só conse
Eu não sei se meu pai foi este homem, ou outro... Ou quem sabe um terceiro ou quarto. Mamãe nunca quis falar sobre ele. Só dizia que foi enganada e que ele sabia da minha existência, mas nunca veio atrás de nós.Infelizmente minha vó não sabia de nada. E nem sei direito porque as duas eram tão afastadas e não se falavam, mesmo depois da morte de meu avô.Mandy Novaes era financeiramente melhor que minha mãe. Mesmo com minhas crises de rebeldia tardias, pagou toda minha faculdade. E ajudou no meu primeiro emprego, já no Centro de Noriah Norte. Fui demitida porque Jardel entrou drogado no meu ambiente de trabalho e fez uma cena lamentável.Enfim, a vida não era fácil para ninguém. Eu não acreditava que pudessem existir pessoas sem problemas.Mal eu sabia que sim, existia... E logo eu conheceria. E que “eu” seria o único problema de alguém. Afinal, a gente não tem como prever o futuro. Porque se fosse assim, quando vi Jardel a primeira vez, teria sumido na mesma hora.Seguir em frente eu
O sonho de qualquer pessoa em Noriah Norte talvez fosse entrar na Babilônia sem passar pela fila, apresentando um cartão VIP. Isso era quase como ter um passe de celebridade. Mas não era o nosso caso, visto que entraríamos pela porta de serviço.A Boate Babilônia era simplesmente gigantesca, ocupando toda uma quadra. O estacionamento era no andar inferior, subsolo. Mas só tinha direito a estacionar lá quem tinha o tal certificado VIP.Com frequentadores elitizados, já que o ingresso era quase o preço de um rim no mercado negro, o local contava com mulheres de todos os tipos “à caça” de conforto com a conta bancária de um ricaço. E, em contrapartida, homens que procuravam mulheres bonitas, gostosas e famosas.Morávamos perto dali e nossa melhor amiga trabalhava naquele lugar e nunca tínhamos pisado os pés lá dentro.Salma trabalhava ali há muitos anos. Mas minha amiga era muito correta e jamais cogitou nos dar passes gratuitos, sequer pela entrada onde hoje ela havia decidido ir contra
Não podia beber mais, ou acabaria com o cartão de minha amiga Salma. Certamente seria descontado do salário dela depois. Se bem que acho que ela não se importaria se eu provasse um chopp de... Menta.- Vai ficar bêbada deste jeito. – o barman me entregou o terceiro copo, rindo.- Acho que não... Parece ser pouco alcoólico. – gritei para ser ouvida, não percebendo que a mesma pessoa me entregou os copos.Todos os barman’s e bargirl’s vestiam calças pretas, com colete da mesma cor, social e camisas brancas por baixo. A roupa era bordada com o nome do lugar.- Te dou meia hora e estará dançando sem roupa na pista. – ele garantiu.Comecei a rir:- Obrigada pela dica. Vou levar em conta.- Quando estiver nua na pista? – riu.Assenti com a cabeça, virando o último copo, que já me tonteou um pouco.Fui encontrar meu amigo, que seguia dançando sozinho entre a multidão. E não foi difícil encontrar um rapaz magro, não muito alto, com blazer vermelho com xadrez, calça azul brilhante e botinas m
- Você me chamou de “desclassificado babaca”? Quem pensa que é? – ele veio na minha direção, furioso e eu fui andando para trás, amedrontada.Quando ele chegou próximo, coloquei os braços na frente do rosto, temendo que ele fosse me bater.Um longo silêncio pairou entre nós. Fui retirando meus braços, vagarosamente, sentindo os olhos dele sobre mim.- Eu... Não vou bater em você. – ele falou aturdido.- Eu... Não achei que fosse... – menti.- Chame os seguranças e mande retirá-la daqui imediatamente. E exija que a joguem para o lado de fora da boate. Certamente uma paparazzi disfarçada. – falou a mulher.- Papa... Papa... – a palavra não saía. A bebedeira me impedia de raciocinar muito bem. – Sou só uma frequentadora desta porra... Foi um acidente... Entrei no lugar errado.- E quem me garante que você não vai espalhar aos quatro cantos do mundo o que viu aqui? – ele disse com os olhos frios.Ele usava uma camisa branca, aberta uns dois botões. Tinha marca de batom na gola e no peito
- Alegria.- Que diferente. De onde sua mãe tirou?- De um filme.- Achei que fosse de origem viking. Ou um tipo de deus... Algo assim.Ele não falou nada. Descemos uma escadaria e ele abriu uma porta corta-fogo, onde tive a visão da rua, do lado de fora da boate.Suspirei:- Foi tão difícil entrar aqui... E tão rápido para sair. Eu sou uma desastrada azarada, esta é a verdade. Fui cair justo no lugar onde Heitor Casanova e sua esposa estavam.- Adeus, senhora Bongiove. – ele disse, fechando a porta.- É Novaes... – falei para mim mesma, já que ele não estava mais ali.Sentei no cordão da calçada. Precisava colocar meus pensamentos em ordem. Salma estava trabalhando e eu não queria estragar a foda de Ben, sabendo que ele não fazia sexo há um tempinho também.Peguei meu telefone e mandei uma mensagem no grupo que tínhamos em comum:“Amores, eu fiquei um pouco bêbada e vou chamar um motorista de aplicativo e dormir na casa da minha avó. Tenham uma noite maravilhosa.”Chamei o motorista
- Olá, Ana... Quanto tempo!Senti o abraço apertado dela e retribuí. Eu gostava tanto de Ana. E senti sua falta ao longo destes dois anos.- Entre... Por favor.Ela se afastou e entrei, ficando de pé.- Sempre sinta-se em casa aqui, Bárbara. Sabe o quanto eu a estimo.- Obrigada. – falei sentando.- Vou fazer um café para nós.- Não precisa... Eu já vou. Estou só de passagem. Tenho um compromisso logo em seguida. – Menti.- Por favor... Me deixei lhe oferecer um café.Assenti, sabendo que aquilo poderia ser importante para ela.Ana foi para a cozinha. Certamente os meninos não estavam em casa, pois tinha muito silêncio naquela casa enorme.Olhei as fotos penduradas na parede e porta-retratos na estante. Tudo tinha a imagem de Jardel... E algumas de nós dois juntos. Eu ainda estava dentro da casa dela, como recordação.Vi meu sorriso estampado e nossos beijos em diferentes ângulos para fotos e fiquei me perguntando se eu fui feliz naqueles momentos, ao lado dele. Porque eu lembrava do
- Bárbara, eu quero que você seja muito feliz.- Eu vou ser. – falei esperançosa e positivamente.- Por que eu acho que nunca mais nos veremos novamente? – ela indagou.Sim, não nos veríamos novamente. Porque eu não a procuraria. Aquilo era mesmo uma despedida... De tudo que me fazia lembrar Jardel.- Fique bem, Ana. Amo você.- Manterei você para sempre nas minhas orações, Bárbara. E mais uma vez, obrigada.Acenei e saí, fechando o portão, que certamente eu nunca mais reabriria novamente. Era o fim de um ciclo de quase dez anos.Respirei fundo, até sentir meus pulmões cheios e a respiração voltando ao normal. Eu não queria mais rever Jardel... Nem em fotos. As minhas eu já havia queimado tudo e apagado do celular o que restou.E foi assim que coloquei uma pedra em cima do meu relacionamento de oito anos com Jardel, meu primeiro e único amor e ao mesmo tempo o homem que acabou comigo, que me partiu em mil pedaços e que eu imaginava que jamais seria capaz de juntá-los novamente, porque