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Quanto tempo tenho de vida? (II)

O lugar onde eu morava ficava no centro de Noriah Norte, próximo de quase tudo. Embora o aluguel fosse alto, diminuía despesas com transporte. Eu divida aluguel com dois amigos: Benício, que chamávamos de Ben, e Salma.

Salma era minha amiga desde sempre. Viemos juntas da cidade onde morávamos para dividir o aluguel e estudarmos. Eu fui para a faculdade e ela foi ser dançarina numa boate. Nunca passou nem na frente da faculdade.

Ben eu conheci na faculdade. E desde que o vi a primeira vez já sabia que seríamos melhores amigos. Um mês depois ele foi morar conosco, porque era mais perto da faculdade.

O incrível é que não fazíamos o mesmo curso e por coincidência, na primeira matéria que cursamos, que era básica e envolvia quase todos os cursos, nos encontramos e foi amor à primeira vista.

Subi as escadas contando os passos, já imaginando se aquilo faria bem para minha endometriose. Bem, não deixava de ser um exercício físico. Pobre era assim: fazia da correria diária exercício físico. Eu sonhava um dia poder viver uma vida diferente, sem precisar contar os centavos para pagar as contas ao final do mês. Assim como ser menos azarada com tudo que acontecia na minha vida.

Porque sinceramente, às vezes eu achava que Deus me colocou na terra e disse: “Vamos ver o quanto esta Bárbara Novaes aguenta. Hum... Acho que vou testar a força das mulheres nela”. Então eu olhei para ele e mostrei o dedo do meio e disse:

- É só isso que você tem para mim? Manda mais que eu suporto.

E assim Ele ficou puto comigo e continuou mandando coisas ruins... Até agora. Inclusive pensou: “Onde ela morar vou acabar com o sossego dela.” “Elevador, pare de funcionar”. Daí alguém vinha e arrumava. “Elevador, pare de novo”. Deus não se dava por vencido quando o assunto era eu.

Meu negócio com Deus é que fui obrigada a minha inteira a frequentar a missa aos domingos, junto da minha avó. Ela sempre falou que era preciso termos fé para conseguir as coisas. E mesmo estando na casa de Deus todo este tempo, Ele não foi nada justo comigo. Então um dia eu decidi que não acreditaria mais Nele. E não exerceria mais a minha fé. Buscaria sozinha o que eu precisava.

O certo é que cada vez que a vida tentasse me derrubar, ela ia ganhar em troca um dedo do meio.

Abri a porta e vi Ben e Salma sentados no sofá, comendo pipoca e assistindo filme clichê, daqueles que já assistimos 435 vezes e ainda assim chorávamos no final. Sim, tínhamos uma seleção de filmes por lista: “para chorar”, “para gritar”, “para rir”, “para fingir que está vendo”.

- Babi, vem olhar um filme com a gente. – Chamou Ben, me dando espaço ao lado dele.

Sentei e já vi a cena de “Um amor para recordar”.

- Vocês não precisam deste filme para chorar. – falei, pegando um punhado de pipoca. – Chorem ouvindo o que descobri hoje no ginecologista.

Os dois me olharam.

- Fala, Babi. – Salma me olhou, curiosa.

- Tenho uma doença chamada endometriose.

- Babi, isso não é tão sério. E tem remédio. Minha mãe tem. – Ben voltou a olhar para a TV.

- Ben, não faz isso comigo. Me fale tudo sobre isso, por favor.

- Depois que acabar o filme, amorzinho. – me puxou para junto do corpo dele.

Ben era aquele tipo de pessoa que ter como amigo era um privilégio: carinhoso, inteligente e fiel. Era magro, tinha os cabelos compridos, que geralmente usava para penteados criativos e originais. Os olhos eram claros e a pele tipo porcelana, que ele barbeava diariamente e usava tantos cremes quanto conseguia passar ao longo do dia.

Ele era formado em moda e trabalhava numa revista. Ben era uma mulher que nasceu por acidente no corpo de um homem. Foi aquele que Deus quando foi colocar no corpo acabou se confundindo e botando no errado. E meu amigo que lutasse.

Embora eu convivesse com Salma praticamente a vida inteira, Ben tinha meu coração e era muito mais sábio em conselhos.

Assim que o filme acabou, Ben me tranquilizou com relação a doença. Ouvi-lo falar de forma tão tranquila e simples me fez bem.

- Conseguiu emprego? – Salma perguntou, enquanto buscava água na geladeira, vestindo somente uma calcinha larga e camiseta branca rasgada, daquelas que parece que vieram da guerra.

- Nada... Nadinha. – resmunguei, chateada.

- Só faz uma semana, Babi. – Ben disse. – Logo vai encontrar algo.

- Estou cansada de empregos temporários. Além de pagarem mal não tenho nenhum benefício. Um ano que pulo de galho em galho. – reclamei.

- Não precisa ficar sem emprego. Sempre tem vaga de dançarina na Babilônia.

Arqueei a sobrancelha e ri:

- Ainda não desistiu de mim, Salma?

- Claro que não. Você daria uma ótima dançarina. Corpo perfeito, linda... Seria contratada na hora, Babi.

- Sem desmerecer seu trabalho, amiga, mas não estudei pra isso. Além do mais, você me imagina dançando numa caixa de vidro enquanto todo mundo me olha? – comecei a gargalhar. – Eu pago para não ser notada.

- Sem contar o fato que se algum homem se engraçasse com ela, Babi seria capaz de arrancar o coração dele com as próprias mãos. – Ben completou.

- Eu já disse que não sou garota de programa, gente. – Salma se justificou enquanto bebia a água na própria garrafa.

- Eu não quis dizer isso, Salma. – Ben se justificou.

- Quero saber quando vocês vão lá, para ver o que eu realmente faço.

- Quando tivermos grana, bem. – Ben revirou os olhos. – A entrada é quase metade do meu salário de comentarista de moda de celebridades, iniciante numa revista decadente.

Começamos a rir.

- No meu caso, nem salário tenho. Mas sinceramente, acho que pagam muito bem vocês, Salma. Mas claro que a entrada é altíssima também. Mas sim, quero conhecer aquele lugar um dia. E ver se realmente as dançarinas não se envolvem com os frequentadores.

- Eu juro que não, Babi.

- Mesmo que fosse... Eu não tenho nada a ver com sua vida e suas escolhas, amiga.

- A opinião de vocês importa. – disse Salma. – Assim como você deveria ter levado em conta a nossa e não ter perdido oito anos da sua vida.

- Querem mesmo falar de Jardel?

- Sim. – os dois afirmaram ao mesmo tempo.

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