Era uma vez

Quando foi que tudo começou? Dois ou três anos atrás? Meu Deus, o tempo passa rápido, a dois anos (ou três) foi quando meu mundo desabou, ou começou, chame como quiser. Foi quando eu cheguei naquele lugar terrível.

Sentada em meu novo apartamento acabado dos pés á cabeça eu percebo o quanto a minha vida mudou de uma hora para a outra, em um momento eu era apenas a filha de alguém, alguém que tinha uma família carinhosa (ou não tinha, não me lembro deles, tenho poucas memórias algumas carinhosas, outras não) em outro eu estava lá, vivendo em um lugar com pessoas estranhas. E agora aqui estou, olhando pela janela as pessoas vivendo suas vidas tristes e inúteis, elas não deveriam estar vivas, eu penso enquanto bebo mais café, e é claro, tem alguém me observando, o mesmo homem vestido com o terno preto de sempre, eu normalmente gosto de me dar a satisfação de mostrar o dedo do meio quando ele está olhando com a sua cara de desprezo.

Mas hoje não, hoje é um dia difícil, visto uma roupa preta, pronta para sair sabendo que o homem irá me acompanhar, então que ele vá comigo até o cemitério, onde eu vou recomeçar todas as lembranças de quando tudo começou, e foi mais ou menos assim:

Eu não me lembro muito bem sobre como foi o começo de tudo, se é que posso chamar de começo, me lembro da minha mãe, deitada na cama segurando a minha mão.

"Seja forte Emma, aguente tudo de cabeça erguida... e por favor, aproveite a sua vida da melhor maneira"

E era isso, minhas últimas memórias... eram só essas, e o depois? E o antes? E a parte em que choro em cima de seu corpo? Eu não me lembro do depois, não me lembro do antes, a única coisa que vem depois dessa única memória velha e desbotada é a de estar em frente a uma mulher loira e bonita vestida com um jaleco branco.

"Bem-vinda a Green Lake Emma"

E é assim... que toda a minha história começa.

•| ⊱✿⊰ |•

— Emma Tales, você morreu.

"Você morreu" aquilo bateu em minha cabeça como um martelo. Aquelas palavras que ouvi assim que meus olhos se abriram:

"Você morreu"

Como eu posso estar morta se estou aqui nessa sala insuportavelmente branca em frente a essa mulher? Mas as palavras amaldiçoadas foram repetidas para meu terror:

"Você morreu"

Entretanto, estou aqui. Isso é um sonho? Um pesadelo? Minha cabeça gira em círculos. Fecho os olhos em uma tentativa fracassada de voltar a dormir.

— Emma... você está aí?

— Eu... o quê?

As primeiras palavras que surgem em minha cabeça escapam da minha boca:

— Isso é meio estranho de se perguntar, mas estou sonhando? — Coço a cabeça.

A mulher sorri para mim gentilmente.

— Sei que pode ser difícil de escutar isso querida, mas é a verdade, você é Emma Tales, tem quinze anos e morreu, mas está aqui agora — Diz com a maior naturalidade do mundo.

Eu paro, meu corpo treme, a palavra circulando minha mente de novo e de novo: Você morreu.

— Isso... é o céu?

Não parece.

Ela ri.

— Não, nós te trouxemos de volta — Responde.

— De volta...

— Você acordou Emma, acordou de sua morte. A muitos anos uma doença veio ao mundo e matou todos os seres humanos que viviam, porém alguns cientistas conseguiram se esconder e passaram a vida para encontrar uma cura. Não encontraram — Solta um suspiro — Porém, conseguiram descobrir uma forma de povoar o mundo novamente, trazendo os seres humanos de volta da morte, e agora... vivemos aqui, aqueles merecedores moram em uma cidade e vivem pacificamente, aproveitando a vida pós morte. Se considere sortuda. Pode não ser o céu, mas o objetivo é parecido, parabéns por ter sido selecionada!

Que merda é essa?

Como aquilo era possível? Por que eu não me lembro de morrer? A imagem da minha mãe deitada na cama passa como um raio em minha mente, mas minha mãe era quem estava acamada e doente, não eu. Como posso estar morta?

— Sei que tem muitas perguntas — Ela se levanta, indo em direção a porta com passos leves — Só que não temos muito tempo, você precisa ir.

Olho para ela como se fosse maluca. Mas dada as circunstâncias acho que a maluca aqui sou eu.

— Ir para onde?

A mulher sorri como se fosse óbvio.

— Para seu novo lar.

•| ⊱✿⊰ |•

A luz do sol me cega assim que saio da vã branca. Eu mal consigo olhar para onde estou. Vejo uma cidade, ou o que acho que dá para chamar de cidade, várias lojas pequenas estão reunidas em volta de uma grande mansão, vejo poucas pessoas circulando pelos locais, quase ninguém. E antes que eu perceba a vã se foi, por um momento fico ali parada, as mãos balançando junto do enorme roupão branco que me deram, um negócio horroroso como se eu tivesse acabado de sair do hospital, mas... não é como se eu não tivesse, não é? Eu morri, acho.

Pelo menos foi o que me disseram.

Por um longo tempo fico desejando que ninguém apareça, que nada aconteça, completamente paralisada. Mas vejo de longe uma garota vindo em minha direção, não, por favor não venha, imploro mentalmente, só que era tarde demais, a garota vem correndo com o vestido circulando ao vento.

— Oi, sou Claire Clarke — Sorri ao me ver.

Ela estende a mão para mim, toco gentilmente.

— Eu sou...

— Emma Tales eu sei, a nova moradora, estávamos esperando por você — Ela me dá algo que se parece com um abraço, fico tão surpresa que nem consigo retribuir — É minha companheira de quarto.

Esperando por mim?

— Eu... desculpe perguntar, mas...

Os olhos dela brilham, o cabelo loiro no sol quase me deixava cega.

— Que lugar é esse?

Ela ri como se fosse engraçado.

— Onde mais bobinha? Green Lake, sua nova casa.

— Aqui não é minha casa — Explico.

Eu não sabia onde era exatamente minha casa, mas com certeza não ficava naquela cidade, se é que dava para chamar de cidade, uma floresta vasta circulava todo o lugar, tudo era tão pequeno e tão...

— Ah querida... — Sua pena faz meu sangue ferver — Eles não te contaram?

— Contaram o quê?

— Você morreu.

Ela dizia como se fosse normal, com um sorrisinho no rosto. Aquilo de novo? Por que ficavam repetindo, como se eu pudesse acreditar...

— Se eu morri você é o quê? — A olho de cima a baixo — Um fantasma?

— Quase... eu morri também, todos aqui morreram.

Quero dizer para ela que está louca, que aquilo não fazia o menor sentido, mas se tudo aquilo era na verdade um sonho ou uma fantasia criada pela minha cabeça a louca não seria bem ela, então não digo nada. A irritação estampada no rosto.

— Mas agora temos uma nova chance, uma nova vida, um lar para viver... — Explica.

— Por que eu estou aqui?

— Porque é sua nova casa, e nós vivemos nessa pequena cidade até que alguém de nossa família venha nos reivindicar, alguns vem até aqui por escolha própria, mas aqui... somos todos felizes.

Acho que não preciso dizer que não acreditei nela nem por um segundo, né?

— Venha conhecer a cidade — Diz segurando a minha mão.

— Espere eu...

Aquilo ainda não havia se encaixado em minha cabeça, não fazia sentido. Ficava esperando acordar a qualquer momento, mas parecia que nunca ia acontecer.

— Eu não me lembro de ter morrido.

— Nenhum de nós se lembra — Fala sorrindo, deixando tudo infinitamente pior — Quer dizer... deve ser horrível ver a própria morte. Por isso os doutores apagam e também borram uma parte de nossa vida, para não... sentirmos dor ao pensar nela.

Claire falava como se fosse a coisa mais normal do mundo, ser apagada, esquecida. Minha vida, ou o que quer que ela tenha sido... havia sido deletada, eu não me lembrava de nada, não me lembrava de mim mesma, como ela podia agir como se todos os problemas daquele lugar não gritassem? Como se tudo estivesse normal...

— Orange, Blue! Venham cumprimentar a nova moradora.

Vejo duas crianças sujas de lama vindo até mim, observo as duas que sorriem.

— Prazer eu... sou Emma.

— Nós sabemos — Elas dizem quando se aproximam, ainda rindo uma para a outra com os dentes sujos de doce — Todo mundo sabe quem você é.

Engraçado porque eu não sabia quem eu mesma era, assim que as crianças saem me viro para Claire e pergunto:

— Orange... Blue.... que tipo de nomes são esses?

— Bem é que o nome foi perdido. Eram crianças pobres então chamamos eles assim por causa do cabelo da Orange e porque Blue está sempre usando azul.

Ela solta um longo suspiro.

— Não tocamos muito no passado aqui sabe, pode ser doloroso, mesmo que ninguém se lembre de muita coisa é difícil ainda.

Eles não sabiam o nome das crianças, sinto uma pontada daquilo atingir diretamente meu coração, embora não tenha certeza se ainda tenho um.

— Bem... — Claire muda de assunto — Tem muito para conhecer ainda, venha Emma, vou te apresentar sua nova casa.

Estou prestes a dizer para ela que não é minha casa quando me viro e vejo uma garota perto das árvores, ela me olhava fixamente, como se me conhecesse, parecia machucada, o olhar tão penetrante que as palavras que eu iria dizer simplesmente morrem em minha boca, deixando aquilo no ar.

— Aquela garota está bem? Ela parece meio...

Claire se vira para mim.

— Que garota?

Olho de novo, mas ela já se foi.

— Estava logo ali, como que... — Explico balançando a cabeça — Uma de cabelo castanho e olho verde.

O rosto de Claire empalidece na hora.

— Emma não tem ninguém assim na cidade.

— Ah qual é — Solto uma risada fraca — Já entendi tudo, cadê as câmeras?

Mas ela não acha graça, apenas me olha confusa, fico esperando as câmeras saindo de trás das árvores, só que não acontece nada. Então ficamos eu e ela em um silêncio constrangedor que parece ser eterno.

— Eu... — Suspiro, ok aquilo não era uma pegadinha então — Desculpe, acho que estou levando esse negócio de fantasma muito ao pé da letra, esqueça o que eu disse antes.

Claire solta um sorriso amarelo, embora seu rosto permaneça meio sombrio, como se eu tivesse falado algo que não deveria, nós continuamos como se nada tivesse acontecido. Tento ignorar aquela sensação de arrepio, seguindo pela cidade, só que aquela sensação horrível não queria sair de mim, não queria ser ignorada, aquela sensação... De que havia algo muito, muito errado naquela cidade.

Por mais que eu tivesse dito a Claire que não era nada eu ainda podia jurar que havia visto uma garota...

E aquele olhar... até parecia...

Como se dissesse que eu precisava sair daqui o mais rápido o possível.

Antes que seja tarde demais.

•| ⊱✿⊰ |•

zǝʌ ɐɯn ɐɹƎ

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