Eva
Existem dias bons, dias ruins, dias péssimos e dias como hoje.
Olho pela quarta vez como o senhor de idade, os cabelos alvos como os lençóis que cobrem a cama em que está deitado, está retirando o soro do braço. Estreito meus olhos, a minha paciência tendo uma luta boa com o dever, à medida que me aproximo.
— Senhor Francis, esse já é o quarto que o senhor tira. — Repreendo, meu tom suave em nada equivalendo com a irritação que me domina.
Ele me olha com uma expressão desgostosa, como se eu fosse a culpada de ele estar em seu terceiro ataque cardíaco.
— Maria, eu já lhe avisei que eu estou bem. — Ele me diz, claro, mais uma vez não me reconhecendo.
Eu já trabalhei na emergência, na pediatria e até na oncologia, mas para mim, não há nada mais desgastante do que trabalhar na geriatria.
É cruel ver a mente das pessoas que já foram ativas se deteriorando pouco a pouco.
Odeio isso.
— Meu nome é Eva, senhor Francis. — Digo firme, vendo a confusão se espalhar em seu rosto — Vamos trocar isso, ta bom?
Francis fica me olhando trabalhar, os olhos se desfocando por alguns instantes, nos momentos em que sua mente se perde em um lugar que só ele conhece.
— Maria morreu. — Ele anuncia, olhando para o quarto como se fosse a primeira vez que estivesse ali.
Contenho a dor que se espalha por meu peito, pois não importa quantas vezes eu veja isso, sempre me parte o coração.
Digo algumas palavras que sei que ele não ouve e tento deixa-lo o mais confortável possível antes de sair.
Ele se deita na cama, os olhos se fechando com a medicação do soro, o calmante finalmente lhe dando o merecido descanso.
Fecho a porta do quarto, sentindo o peso do plantão pesar em meus ombros, junto ao meu desânimo.
Eu realmente odeio isso, mas foi tão difícil conseguir essa vaga...
Esfregando o rosto, eu me encaminho para o refeitório, pronta para finalmente comer o meu jantar. Olho a hora, vendo que já passa das duas.
Esse asilo é um dos mais bem pagos do Rio de Janeiro e mesmo odiando ter que lidar com as dores constantes desse lugar, ainda paga boa parte das minhas contas.
Mancando um pouco, por causa do esforço que tive que fazer ao levantar uma senhora especialmente pesada, eu esfrego um pouco a coxa, quase sentindo a minha cicatriz ali, longa e disforme queimar.
Balanço a cabeça, não querendo levar meus pensamentos por esses caminhos.
Vejo Jonas e Letícia comendo algo na mesa perto das janelas e me aproximo, sabendo que Jonas estará com minha bolsa. Jonas e eu nos conhecemos a cerca de três anos atrás, quando eu ainda estava me habituando a profissão. De início pensei que ele estaria interessado em mim, mas ao ver o modo como ele mirava os médicos, percebi que ele estava mais do que satisfeito em só corrigir as minhas besteiras. E no começo eu cometia muitas.
Jonas e eu fomos nos aproximando e eu cometi o meu primeiro deslize depois que cheguei ao Brasil: eu fiz um amigo.
Eu não queria, mas quando percebi, já estava apegada.
Foi ele aliás, quem me indicou esse hospital e me ajudou a conseguir a vaga.
— E aí, meu doce? — Jonas pergunta, me passando a minha bolsa, onde trago geralmente alguma salada bem recheada com frango.
Não é tão saudável quanto seria se eu comesse só as folhas, mas é o máximo que consigo chegar perto de ser saudável.
— Francis estava rebelde novamente, desse jeito teremos que conversar com o médico sobre trocar a medicação dele, não acho que esteja adiantando. — Digo, abrindo o meu pote, sentindo o cheiro da minha mistura, quase saudável.
— E eles nos ouvem? — Letícia resmunga, uma baguete pingando molho em uma mão.
Vejo a forma como ela coloriu os cabelos de roxo nesse final de semana, o rosto fino e alongado lhe dando um aspecto quase caricato.
— Não, eles não fazem. — Concordo, realmente irritada com os médicos que não consideram o que dizemos por sermos enfermeiros, não são todos que agem com essa prepotência, mas existem alguns que são uma dor de cabeça.
— Se eles passassem metade do tempo que passamos com aqueles idosos, duvido que eles olhariam para nós como se a gente fosse a merda agarrada ao seu tênis. — Jonas estala, pegando a maça da minha bolsa, sem cerimônia e mastigando.
Nem me preocupo em corrigi-lo mais, pois todos os dias eu trago a maça, só para deixa-lo comer. Vejo-o mastigar a fruta com gosto, sua pele negra formando um pacote perfeito de quase um metro e oitenta de corpo esguio e olhos escuros de pura perdição.
Jonas é lindo e sabe disso. Eu gostaria de voltar a ter metade da confiança que ele tem.
— Tem alguns que são até legais vá... — tento apaziguar, mesmo eu sabendo que são pouquíssimos, os não babacas.
— Claro que tem querida, mas deixe-nos reclamar dos idiotas mais um pouco. — Jonas retruca e eu sorrio.
— Faça como quiser. — Digo a ele, bebendo um pouco do suco de laranja que trouxe.
— Ficou sabendo, Eva? — Letícia me catuca com o cotovelo, uma mania que eu passei a detestar.
— Do que? — Pergunto, um pouco desinteressada.
— Jonas recebeu um paciente novo hoje... de última hora. — Ela me diz, mas os olhos dela se fixam na expressão emburrada de Jonas.
— Sério? — pergunto, meu tom ficando triste por ele.
— Isso aí, adicionaram mais três horas no meu turno já estourado. — Ele sorri, parecendo uma carranca cheia de dentes — É um idoso catatônico, mal fala, mas agora eu estou preso com ele, até o Felix me render.
— Que merda. — Digo e logo me lembro de o motivo do seu rosto parecer tão abatido — Hoje não era o aniversário de namoro seu e do Fe?
Jonas assente, a expressão mais miserável ainda.
Penso em meu apartamento apertado e vazio, no calor abafado que faz em um verão carioca de matar e no fato do meu ar condicionado, estar pifado de novo.
— Te ajudo com esse problema, se você me prometer não me enfiar em mais uma daquelas saídas na Lapa. — Barganho, sabendo que ele não vai recusar.
Jonas olha com ternura para mim e deposita um estalado beijo em minha testa.
— Você já não ia mesmo, sua chata. — Ele responde, mas sorri — Obrigada meu doce.
— De nada, só me diga o quarto e se ele tem alguma particularidade que eu deva saber antes. — Peço, guardando minhas coisas.
— Como eu disse, ele está catatônico e chegou aqui tem menos de um dia. Parece gringo. — Jonas confidencia, os olhos pensativos.
— Argentino? — pergunto.
— Não, mas o nome que vi no prontuário parecia russo. Boris Valk, alguma coisa, sei lá. — Jonas da de ombros, se levantando e jogando os restos da sua maça no lixo.
— Cliente vip, então. — Leticia murmura e eu concordo, estranhando um pouco.
Não é incomum termos estrangeiros por aqui, mas algo no som do nome me enviou um mal pressentimento.
Estou sendo paranoica, de novo.
Jonas e eu nos despedimos de Letícia e começamos a caminhar pelos corredores, enquanto ele me fala tudo que preciso saber sobre o senhor acamado.
Volto a cuidar dos meus pacientes e quando percebo que o horário de Jonas já começou eu me encaminho para a ala dele.
Subo as escadas para o terceiro andar, pois o elevador está em manutenção.
Ofegando um pouco, eu percebo que meus dias em frente a televisão com potes de sorvete e sanduiches estão cobrando um preço agora.
Em pensar que teve um tempo em que invejavam a minha disposição física...
Quando chego ao centro da recepção do andar eu paro, estranhando o silêncio e o vazio da cadeira.
Será que a plantonista foi ao banheiro?
Pego o prontuário do senhor Boris e vejo em qual quarto ele está. Caminho para lá, com uma sensação estranha me dominando.
Normalmente a essa hora aqui é um lugar calmo, mas há uma sinistra tensão no ar, conforme eu caminho e começo a pensar que posso estar finalmente cedendo a insanidade.
Abro a porta do quarto vendo três coisas, que sei serem decisivas. Sentado em frente a cama está um homem com os olhos mais gelados que eu já vi, olhando fixamente e sem hesitar para o homem que o ameaça com uma pistola nove milímetros, uma que eu aprendi a detestar anos atrás. O paciente, que eu deveria estar monitorando está deitado na cama, sem mover um único músculo.
Tudo se passa por minha visão como um borrão e eu paraliso por breves segundos, com a decisão a ser feita.
Posso ignorar por completo isso e deixar a vida do homem de olhos azuis a cargo da sorte ou eu posso ajuda-lo e arriscar trazer coisas do meu passado que eu preferiria deixar bem, onde estão.
Que diabos eu faço?
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