Capítulo 3 •

Olhares, muitos olhares.

Foi o que me foi direcionado quando cheguei ao meu quadrante em um carro um tanto luxuoso, mesmo eu tendo pedido para vir no mais simples possível. Parece que não era tão simples assim. Chegar também com um segurança grande e com terno todo preto, foi a cereja do bolo para os olhares curiosos.

Nossa comunidade é pacífica e bem organizada, assim como os quadrantes, que foi o nome dado para dividir as lotações, que são de A a E. Segundo alguns moradores, é mais chique esse termo usado.

— Espera aqui que eu já volto.

— O senhor Jhonson mandou que ...

— Eu sei, eu sei, Grandão. Esse vai ser nosso segredinho, ok? — Abro um sorriso, mas recebo uma carranca de volta, mostrando que ele não vai desobedecer o chefe — Se em dez minutos eu não sair. Você pode entrar igual fazem nos filmes. Só quero me despedir dos meus amigos e pegar algumas coisas, com privacidade.

— Dez minutos.

— Você é top, Grandão. — Abro a porta e entro. Suspirando fundo após recostar.

— CASS!!! — Escuto um grito e me assusto, vejo Samantha correndo em minha direção — Você está bem. Ufa, achamos que tinha sido pega e surtamos sem notícias.

Eu deveria estar com raiva deles por terem me colocado nessa enrascada, mas é aquilo, ninguém colocou uma arma em minha cabeça e me obrigou a ir. Então, em parte também sou culpada.

— Tecnicamente eu fui. — Ela me encara sem entender e logo Chace, Downie e alguns outros que moram aqui aparecem.

O galpão é grande e abriga algumas crianças e adolescentes, que não tem onde ficar. Eu na verdade sou a única que tenho uma casa, mas após minha mãe partir, não consegui ficar mais lá e por isso, peguei minhas coisas, tranquei a casa e tem quase um ano que não meto o pé lá. Sinto que não pertence a mim, mesmo que ela tenha me adotado legalmente e tudo mais, me parece errado. Não preciso estar aqui com eles, mas são o mais próximo de uma família que tive, depois dela.

Todos aqui já fizeram de tudo para conseguir dinheiro, mas o povo lá de fora parece ter certo preconceito. Ou seja, alguns de nós às vezes cometem algumas coisas ilícitas. Por isso o nome que dão, síndrome de Robin Hood, basicamente tirar dos ricos e dá aos pobres. Geralmente fico de fora dessas, costumo apenas ficar de olho e mesmo assim já levei umas prensas da polícia.

— O que isso quer dizer?

— Os seguranças dele me capturaram na floresta e bom, Isaac me propôs um acordo. — Fico meio envergonhada por isso. Por ter sido pega, é tão frustrante. Faz parecer que eu sou péssima nisso, mas sou muito boa nessas práticas corporais. Seja lutar ou fugir de lugares e situações difíceis.

— E o que faz aqui? Ele não deveria ter chamado a polícia?

— Foi o que pensei de início, Downie, mas como disse, rolou um acordo. E meu tempo está acabando, preciso pegar umas coisas. — Falo passando entre eles e indo até o quarto que divido com Sam e mais umas meninas.

— Você precisa explicar melhor isso. — Chace pede com certa urgência enquanto me segue, junto com os outros.

— Bom, nesse contratempo que tive lá, eu conheci o filho mais novo dele e ele me amou, assim, de primeira. — Entro no quarto e pego minha mochila — Fazendo com que seu abominável pai, achasse ter... direitos... sobre... mim — Falo cada palavra final com raiva enquanto soco com força as roupas para dentro da mochila.

— Calma. — Chace me segura pelo braço e vira para ele — Como assim? — Respiro fundo e encaro os olhos escuros como a noite do homem à minha frente. Ele tem vinte e seis anos e é o mais velho entre os dez que moram aqui, por isso, é o cabeça por trás de tudo. Ele é moreno e tem o cabelo encaracolado castanho, assim como os olhos também dessa cor.

Nós chegamos a namorar por um tempo, ficamos juntos quase um ano e depois terminamos, eu não conseguia gostar dele da mesma forma que gostava de mim. Já terminamos a dois anos e ainda percebo seu interesse. É algo que atrapalha um pouco nossa convivência, mesmo ela sendo maioria das vezes pacífica. É meio sufocante às vezes, mas tentamos conviver. Através dele que conheci todos aqui e isso até que me foi benéfico.

— Ele quer que eu seja babá do filho dele por um tempo, pois o menino está passando por uma fase ruim e fui a única que ele gostou nesse processo. — Explico cautelosamente para não escancarar o dilema que estão vivendo com a criança e vejo a cara de interrogação deles — Quando tentei fugir, alguém entrou na casa e tive de me esconder, quando entrei em uma das portas era o quarto das crianças. Daí o menino me conheceu.

— Mas você quer fazer isso?

— Óbvio que não. — Me afasto com raiva enquanto vou até meus tênis — Mas... — Paro de falar.

Só não estou fazendo escândalo ao aceitar esse acordo/chantagem, pois realmente prefiro tudo isso a ter que encontrar a polícia novamente, os que fazem a ronda por aqui especificamente. Os policiais daqui não são nada bonzinhos e geralmente gostam de abusar do poder que tem, ainda mais quando as pessoas em questão são 'delinquentes' como nós. E tenho uma experiência bem traumatizante com isso, acho que todos nós aqui na verdade. Por isso, prefiro evitar ao máximo.

— Mas... o que? Você não quer e aparentemente ele te obrigou. Ele está errado.

— Invadir a casa casa de alguém também é muito errado, Chace. — Olho ele que não rebate e respira fundo, bem irritado — Ainda não sei como me convenceu. — Aponto para Samantha.

— Desculpa. — Diz abaixando a cabeça — Mas você está bem? Ele te machucou? — Sua pergunta me faz rir.

— Era mais provável que eu machucasse ele. Ele parece inofensivo, mas sabe chantagear que é uma beleza. Ajudarei o filho dele nesse período e quando o menino apresentar melhoras. Estarei livre, com as filmagens que podem me incriminar em mãos e muito dinheiro.

— Ele vai te pagar? — Downie pergunta surpreso e assinto — Então não é um cativeiro. Você vai trabalhar para ele e receber em troca. Você está até saindo no lucro.

— Mas eu terei de ficar com um segurança durante o dia todo, além de não poder sair lá. Isso é invasão de privacidade, cárcere privado e ... Oi, Grandão! — Paro de falar e cumprimento o segurança. Todos viram para ele, no lado de fora do quarto.

— Dez minutos. — É a única coisa que fala.

— Estou quase acabando. Só um minuto. — Fecho as mochilas e a sacola com os sapatos. Exigirei produtos de higiene novos, não levarei meus ruins para lá — Eu vou sentir falta de vocês, mas acho que em um mês estarei de volta.

— Somos todos nós contra o segurança. — Chace sussurra em meu ouvido — Você pode fugir.

— Cogitei essa hipótese, porém eu realmente não quero meu rosto estampado entre procurados da polícia e bom, tem o menininho. Ele é tão fofinho. Vocês deveriam ver.

— Você e seu coração enorme. — Samantha se j**a em mim, me abraçando com força — Sentirei sua falta, amiga. — Retribuo o abraço e logo ela se afasta — Desculpa ter insistido para você ir. Isso é tudo culpa minha.

— Para de agir como se ela fosse para algo extremamente ruim. — Downie chama nossa atenção bem indignado com a cena toda — Cass, ele te deu uma chance que provavelmente nenhum de nós iríamos ganhar. Você deveria estar feliz, pois vai ficar um tempo em uma mansão e não na cela de uma prisão.

— Sim, eu sei. Mesmo ainda relutante, sei que foi a melhor opção. — Abro um sorriso triste — Sentirei falta de vocês, mas voltarei em breve para continuar aporrinhando todo mundo. — Digo sorrindo e tentando não chorar. Definitivamente odeio despedidas.

Recebo um abraço coletivo, além de palavras fofas e só não choro, pois sou estranha, mas confesso que fiquei emocionada e com os olhos marejados. Se fosse Samantha em meu lugar, ela ficaria desidratada de tanto chorar.

— Precisamos ir, senhorita.

— Tchau. — Pego minhas coisas e saio lentamente, como se estivesse indo para a pior experiência da minha vida — Qual seu nome, grandão? — Pergunto enquanto descemos a escada.

— Bob. — Faço careta.

— Só Bob? Nossa, prefiro Grandão. — Ele deixa escapar um sorriso — Combina mais com você. — Encaro o homem bem forte, que deve ter quase dois metros de altura e tem a cabeça toda raspada.

Quando entramos no carro, todos estão na calçada me olhando e dando tchau, Samantha está chorando bastante, agarrada a Downie, que tem uma carranca ao invés de expressão triste. Pelo que conheço dele, ele está achando totalmente desnecessária essa choradeira toda.

— Não se preocupe, vai ficar tudo bem. Você vai ver. Mesmo que não fique tanto tempo, sua vida vai melhorar bastante. — Encaro ele e suspiro fundo.

— Eu ainda estou com raiva dele. O jeito dele de falar consegue me tirar do sério. — Cruzo os braços fechando o semblante e ele ri.

— Me desculpa o que irei falar, mas a senhorita me parece ser um pouco difícil de lidar.

— Me chama de você e sim, minha mãe dizia que eu era carne de pescoço. Um jeito de falar que ela ouviu a muito tempo atrás. Para dizer o quanto era difícil de lidar comigo. — Comento dando de ombros.

— Então, ele também é bem difícil. Ou seja, duas pessoas com o mesmo gênio, é certo que dê ruim.

— Se ele for tudo que especulam nos jornais e revistas. Ser difícil é só uma de suas muitas "qualidades" — Abro e fecho aspas.

— Ele não é esse monstro que muitos dizem, mas eu prefiro que tire suas próprias conclusões. Posso estar enganado e por trabalhar com ele desde sempre achar um exagero tudo que falam. — É um bom ponto a se pensar, mas acho no momento que ele é sim aquilo tudo que falam.

— Tem isso. Vamos combinar assim, daqui um mês nos juntaremos e te direi o que penso dele. Se eu achar ainda igual aos jornais, você me dá mil e se eu achar que ele não é isso tudo, te dou mil em dinheiro, vivíssimo.

— Fechado. Vai ser o dinheiro mais fácil que irei ganhar. — Diz já certo da vitória.

— Veremos. — Encosto no banco e encaro a estrada iluminada pela lua cheia.

Quando vejo a estrada cercada por florestas e que leva a mansão, meu coração começa a acelerar e isso me deixa nervosa. Eu sinceramente não imaginei, nem em sonhos, eu pensei que em um dia, minha vida pudesse dar essa guinada, esse giro de 360°. E confesso que estou com medo. Muito medo, mesmo parecendo que vai ser uma experiência boa para mim.

(...)

Acordo de um sono maravilhoso e fico encarando o teto branco. Não faço ideia de que horas são e nem ideia de onde meu celular da época dos dinossauros está. É tão ruim e antigo que sempre esqueço dele, uso mais para ver a hora mesmo, pois nem ligação recebo.

Concluo que ainda é cedo, pelo silêncio formado no local e as linhas de um dia começando a amanhecer do lado de fora da janela.

Quando cheguei ontem a noite, me trouxeram para esse quarto, que é no fim do corredor do segundo andar. Silvia me explicou umas regras, que sequer prestei atenção e disse que no banheiro tinham algumas coisas que eu poderia usar. Quando ela saiu, fui ver e nas gavetas tinham diversas coisas de higiene pessoal, não só uma, tinha três, quatro ou mais, tudo fechado. Achei chique e meio desnecessário também.

Levanto e sigo para o banheiro. Mesmo que eu odeie acordar cedo, estou até com bom humor no momento. Termino de me ajeitar, ficando apresentável no meu jeans surrado, regata branca e fiel all star amarelo.

Decido sair do quarto e logo abro a porta, coloco o rosto para fora e observo o corredor mergulhado em escuridão, silêncio e principalmente paz. Grandão não está por aqui. Esses ricos são um pouco descuidados, real. Ainda não sei como vai ser esse lance de segurança vinte e quatro horas por dia. Até pensei que o homem abominável mandaria eu dividir o quarto, fiquei aliviada quando vi que não rolaria isso.

Desço a escada ainda tentando não fazer barulho, quando por fim chego ao primeiro andar. Vejo Grandão sentado em uma poltrona virada para a escada e dormindo. Tadinho, será que ele ficou aqui a madrugada toda? Que maldade.

Sigo até a cozinha e ela também está vazia. Segundo Sílvia, os funcionários chegam sempre cedo e vão embora às oito da noite, após preparem tudo do jantar. Alguns intercalam os horários com outros e tem folgas também. Ela é a única que vai embora só depois que as crianças dormem, por opção dela. Acho exaustivo isso de ir tarde e voltar bem cedo, mesmo eu achando antes que essa seria uma opção boa. Definitivamente não é.

Vejo a lista sobre o que as crianças podem e não podem comer presa a geladeira com um ímã, pego e leio enquanto abro os armários em busca de algo para fazer café. Posso não ser a melhor cozinheira do mundo e essas coisas, mas um café gostoso eu sei fazer.

Essa cozinha é enorme, tem muitas portas e gavetas nos armários. Até cansa a procura. Vejo pela portinha de vidro a máquina de café e dou um sorriso bem aberto. Prefiro café no coador, mas assim serve. Coloco na bancada e começo o preparo. Não demora muito e duas xícaras de café super quente estão fumegando em minha frente. Despejo o leite na minha e adoço de minha preferência, na do Grandão, coloco duas colheres pequenas rasas de açúcar e se ele quiser que coloque mais.

Seguro na aba da bandeja e sigo para onde ele está, ele ainda está desacordado, isso me faz balançar a cabeça. Ele deveria estar me vigiando, creio eu. Se eu quisesse fugir, talvez até conseguiria, visto que aparentemente eles estão trocando os seguranças.

Cutuco o braço do homem que resmunga bastante antes de acordar, quando abre os olhos, já estou com a xícara estendida em sua direção.

— Café? — Pergunto e ele passa a mão no rosto, ainda com a cara lavada de sono — Não tem veneno, pode ficar tranquilo. Simpatizei com você. — Complemento e ele ri, acordando agora. Puxo uma cadeira e sento ao seu lado.

— Ótimo jeito de fazer alguém aceitar bebida.

— Como não me conhece bem, posso provar antes se você quiser, caso não tenha nojo dessas coisas. É que você estava dormindo, pois ficou acordado um bom tempo por minha causa e aí eu quis fazer um agrado. Não gosto que sofram por minha causa , já causei muito transtorno para as pessoas nessa vida e ... — Ele pega o café da minha mão e dá um gole, bem longo.

— Huuuum, que café maravilhoso e sem veneno.

— Você é doido! Poderia estar envenenado e mesmo assim está muito quente.

— Você não parava de falar, criança. Foi o melhor que pude pensar em poucos segundos. Agora é só esperar para ver se tem veneno mesmo. — Diz me zoando e reviro os olhos.

— Não me chame de criança, Grandão. Você deve ter apenas vinte anos a mais que eu. — Digo bebericando meu café com leite e ele faz uma careta.

— Um pouco mais. — Diz sorrindo.

— Pelo menos terei um amigo aqui. Você deu sorte, pois sou péssima em arrumar amizades. Demoro bastante até me soltar com a pessoa.

— Não parece. Está aqui forçando uma comigo, praticamente me obrigando a te aceitar.

— Que coisa feia, Grandão. Estou sendo gentil, já que iremos ficar um tempo juntos. Isso é o mínimo que posso fazer, não te dá tanto trabalho. — Finjo uma carranca, mas logo abri um sorriso.

— Obrigado pelo café, criança. Está muito bom! — E afaga meu cabelo, bagunçando tudo. Talvez eu realmente seja péssima em arrumar amizades. Isso não vai prestar. — Espero que sobreviva a estádia.

— Eu também!

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