Depois de sair dos estábulos, fui para o meu quarto onde felizmente estava mais fresco, embora o ar estivesse quente. A casa era arejada e garantia mais conforto, relaxei sob a cama deitada de costas para encarar o teto branco.
Eu havia decorado o cômodo ao longo dos anos de acordo com o meu gosto. Havia um lado bom de ter que viver presa e escondida, meus pais me davam qualquer coisa que eu quisesse, por sorte nunca fui muito materialista. Quando criança, isso era legal, se tratando dos brinquedos, hoje nem tanto, tornou-se indiferente e entediante, principalmente quando a única coisa que eu gostaria de ter seria a presença de ambos, uma participação um pouco mais ativa em minha vida.
Eu sabia exatamente o motivo, havíamos assassinado alguém importante da Tríade e que por conta disso havia um desentendimento entre eles e a Cosa Nostra, agora eu e meus avós e meus pais éramos alvos, como uma família que defende muito a honra e o valor dela própria, a Tríade não deixaria isso para lá, nunca. Esse era o principal motivo do exílio que eu e meus avós sofremos. E mesmo diante de tudo isso, não podia negar a saudade e a vontade de falar com minha mãe mais que algumas vezes no telefone a cada três meses.
Um purgatório, é o que é. Li essa palavra em um livro uma vez e fiquei abismada com o quanto havia me identificado com ela. O sentimento egoísta frequente que sinto é o de estar sendo punida por um erro que não cometi.
Minha mãe, Isabella, havia feito questão de garantir que se eu fosse viver a maior parte de minha vida longe deles, então seria com todo conforto possível, dessa forma, em uma de nossas ligações trimestrais (às vezes esse tempo variava, às vezes eram quatro ou cinco, como já havia acontecido também de passar apenas dois. Eles preferiam não manter uma regra, mas quase sempre eram três, eu contava os dias em uma agenda reservada especialmente para isso.) Pedi para mudar meu quarto certa vez, estava entediada e já tinha 15 anos e o meu quarto com a aparência infantil de quando eu tinha 10. Mudamos aos poucos, tudo era revistado.
Essas foram as coisas que meu pai conseguiu ser maleável. Um celular apenas para mim foi uma possibilidade absurda, eu precisava falar com eles por outro telefone, não rastreável e usado apenas para receber ligações deles e de ninguém mais.
Era uma gaiola dourada. Mas uma gaiola segura, onde eu não precisava temer por minha vida, embora não pudesse dizer o mesmo de meus familiares.
Acho que Isabella e Enrico nunca pensaram que sua filha poderia perder noites de sono a fio preocupada se a próxima ligação aconteceria para que pudesse ouvir mais uma vez a voz deles, ou de alguém desconhecido anunciando suas mortes.
Felizmente, esse dia ainda não havia chegado. Me levantei da cama e fui até a escrivaninha que ficava ao lado da janela, peguei minha agenda e olhei a contagem de dias, um mês e alguns dias a mais desde a última ligação, quase dois meses desde que falei com a minha mãe pela última vez… Geralmente eu riscava no fim do dia, mas estava convencida de que eles não ligariam hoje, por isso adiantei e anotei um dia a mais.
Passei o resto do dia em meu quarto, olhando meus cadernos de estudos, os quais eu tinha feito em casa, duas professoras diferentes. Mulheres é claro, já que jamais seria permitido qualquer homem ficar a sós comigo. Elas haviam sido muito bem pagas para não comentarem sobre a minha existência com ninguém e aparentemente mantiveram suas palavras.
Quase não conseguia decidir se ficava feliz ou triste com isso. Se contassem, meus pais seriam obrigados a me manter perto… E elas morreriam, claro, por nos traírem.
Dispensando esses pensamentos, respondi ao chamado de minha avó para o jantar, que estava na porta, dizendo que desceria em seguida.
Guardei todos os cadernos em seus devidos lugares e desci em direção à sala de estar. Me sentei à mesa e após a oração católica de meus avós, começamos a comer.
Embora achasse uma hipocrisia, nunca ousei questionar a fé de meu avô. Mesmo sendo quem era, acreditava em algo e carregava o símbolo disso em uma tatuagem no antebraço e minha avó em seu colar longo que ia até o meio do peito com um pingente de cruz.
Observei a mulher à minha frente, estava inquieta e com uma expressão de preocupada e meu avô, pelo contrário do que costumava ser, estava quieto até demais.
- O que houve? – perguntei, incapaz de aguentar aquele silêncio inquietante por mais tempo.
- Seu avô… – ela limpou a garganta. – Me contou sobre a conversa que tiveram mais cedo e… – olhei na direção dele acusadoramente, ele se dignou a me olhar por não mais que alguns segundos e, depois, simplesmente fingiu que não era com ele.
- Eu deveria saber que você não era confiável! – falei, aquilo não pareceu surtir o efeito que gostaria, já que pensei ter visto um vislumbre de um sorriso de canto surgir.
- Ele não fez e por mal e, de qualquer forma, no fundo eu sabia que perguntaria isso novamente… São seus pais, afinal. – o sorriso compadecido fez meu coração afundar. Era triste e patético ao mesmo tempo.
Abri minha boca para responder, mas fui interrompida por uma das empregadas, Maria, que trazia o telefone em mãos e entregou ao meu avô.
Nem mesmo eles tinham celulares aqui.
Estranhei, mas fiquei empolgada, porque as pessoas do outro lado só poderiam ser meus pais, estava cedo demais para outra ligação, mas ainda que ligassem todos os dias eu não me importaria. Porém, toda a empolgação foi embora quando ao atender, meu avô soou sério, ele aprumou as costas, sem deixar transparecer nada em sua expressão, mas pude sentir que havia algo errado, olhei para minha avó que franziu o cenho, também observando e aguardando, pareceria preocupada.
Quando se vive isolada em uma casa você passa a se preocupar e reparar em coisas irrelevantes, como fazer o controle de quantas vezes seus pais costumam ligar para você.
Pensei no quanto pareceria patético vendo de fora.
Meu avô se levantou, pedindo licença e seguindo seu caminho para fora da cozinha, mas parou e olhou para Simona, que entendeu de imediato e se levantou. Ambos saíram da sala e tudo que ouvi dizer antes de sumir nos corredores foi: "sim, ela já está comigo."
Nada bom. Certamente algo ruim, muito ruim havia acontecido.
Meu apetite para o jantar, que já não era muito, foi de vez para o ralo. O que ingeri deixou um gosto amargo na boca e para aliviar peguei a taça de água para amenizar o efeito externo que representava bem como eu me sentia por dentro.
Passaram-se longos e intermináveis minutos antes que Simona aparecesse de volta, meu avô não a acompanhava…
Ela trazia o telefone nas mãos, sentou-se ao meu lado e percebi que evitava meu olhar.
Ainda sem me encarar, ela depositou o aparelho na mesa entre nós, acionou o viva voz e em seguida disse:
- Ela está aqui, Isabella. Está ouvindo. – pensei ter visto ela se encolher em seus ombros, parecia cansada e… triste?
Continua...
- Filha? – a voz de minha mãe soou do outro lado e senti meu peito afundar. Que falta havia sentido de ouvir sua voz, mesmo que em um tempo mais curto do que das últimas vezes. Não consegui evitar que meus olhos se enchessem de lágrimas pela saudade de sentir seu abraço. Ainda me lembrava de como passávamos a tarde juntas sob a lareira enquanto ela lia e eu brincava. - Oi, mãe. – a voz embargada não disfarçava a emoção. - Olá, Paola. – dessa vez havia sido a voz grave de meu pai a se pronunciar. Minha situação só piorou após isso. Mesmo sendo o Capo, Enrico nunca deixava de demonstrar carinho e afeto a mim, mesmo que não fosse o comum entre os homens de nosso mundo. - Hmm… Oi, pai. – menos caloroso, porém não intencional. Embora o amasse tanto quanto amava minha mãe, o meu afastamento havia colocado uma distância entre nós, de alguma forma, eu o culpava por estar presa aqui. A decisão havia sido dele, meu pai havia escolhido me afastar. Para me proteger, claro. Eu sabia, mas… ain
Desligando o despertador, me levantei da cama sentindo o desânimo e para a minha surpresa, tudo que desejei foi que aquele fosse apenas mais um dia normal na fazenda. Passei a mão pelos meus longos fios de cabelo, encarei as pontas e percebi que precisava hidratá-los… Um pensamento fútil e aleatório, gostaria de que essa fosse a minha maior preocupação hoje. Coloquei um vestido de tecido leve e branco com estampa de flores azuis e sandálias, prendi o cabelo em um rabo de cavalo simples e encarei meu reflexo no espelho… Dezenove anos, em breve completaria vinte. Constatei que eu deveria de fato esperar por algo assim, estava começando a ficar velha demais se fosse comparar a idade com as moças que levavam a mesma vida se casavam. Ainda sim, não queria acreditar. Ao erguer os olhos observei brevemente pelo meu quarto, considerando que esta seria a última vez que estaria aqui e mesmo com tantas coisas à minha volta, foquei no objeto de quatro cores, o cubo mágico. Quadrado e compl
Ele se pôs à frente do carro, a porta por onde saiu fechada. Minha avó soluçava em silêncio, o medo que compartilhamos entorpecendo os pensamentos racionais e a incapacidade nos sufocando.- Como eu disse, eu só quero a garota. – Vi o portador da voz de anteriormente, sua voz chegava abafada pelo som até nós e ele tinha uma aparência asiática, sendo membro da maior organização criminosa da China, e usava um terno azul escuro, com uma camisa branca por baixo. Em uma das mãos também tinha uma arma e encarava meu avô como poucos homens que conheci eram capazes de fazer.- E sabe que não vou entregá-la tão facilmente, Lee. Estamos falando da minha neta. – o outro assentiu levemente, aparentando como se de fato compreendesse a dificuldade da situação e estranhamente o respeitasse por isso.- Entendo. Você carrega o fardo de proteger sua família, infelizmente não pude fazer isso pelo meu irmão. Acho que agora compreende o que quero dizer. Mas ninguém precisa morrer aqui... – meu avô riu e o
- Paola... – disse vovó, saindo do carro. – Por favor, volte para o carro! – eu tiinha absoluta certeza de que ela sabia que isso não poderia acabar de outra forma, mas Simona sempre foi uma mulher de fé. Porém, não achava que o Deus dela ou qualquer outro poderia evitar isso! Porque no fim, fomos nós que trouxemos essa consequência sobre nossa família no momento em que nossos antepassados decidiram se envolver no mundo do crime e nós continuamos a seguir seus passos.- Não tem como eu sair daqui sem que seja acompanhada por esses cavalheiros, vovó. – não omiti o desgosto e desdém na voz. – O senhor mesmo disse, não é? Meu avô me deu um breve olhar de esguelha e assentiu quase que imperceptivelmente. – É desnecessário que isso seja às custas de suas vidas. – ele não disse nada, não podia. Mas era orgulhoso demais e também uma questão de honra permitir que sua neta fosse sequestrada sob sua proteção sem reagir e eu sabia que a impotência provavelmente o estava corroendo por dentro.Dei
Observo Paola enquanto mostro à ela seu quarto temporário no navio, mantendo minha expressão inalterada. Ela está acorrentada à realidade de algo que não compreende e tenho minhas dúvidas se já conseguiu processar tudo. Seus olhos mostram medo, mas para mim é apenas um incômodo irrelevante que aprendi a ignorar, felizmente ou não, ela é necessária aqui.- O que acha que está passando pela cabeça da garota, além de estar com medo e provavelmente calculando todas as possibilidades de fugir? – Jun me pergunta em chinês, quando apareço na proa do navio, onde ele está encostado na grade, relaxado e com uma arma em seu coldre, o que é ótimo, considerando que eu queria mesmo falar com ele.- Você atirou no avô dela... – ele me encarou de volta e então olhou para o chão.- Sabe porquê fiz isso. – em seus olhos pude ver que não gostava nenhum pouco do que fora obrigado por meu pai a fazer.- O que ele lhe disse? – Jun respirou fundo com pesar, olhando ao redor antes de voltar para mim novament
Sozinho no corredor passei pela porta onde estava a garota e ao entrar em minha cabine tirei o terno, tirei as calças e me despi da cueca boxer para adentrar no chuveiro instalado ao canto do quarto, onde eu permiti que a água escorresse pelo corpo e relaxasse os músculos e ao fechar os olhos não pude encontrar nenhum pouco de paz, já que a imagem de Enrico Provenzano morrendo não saia da minha cabeça, e sua esposa gritando... Não que eu me comovesse com sua morte ou lamentar se como alguém que conheci, eu não podia dar vazão a qualquer empatia pela avó de Paola ou por ela própria, mas matar ou ver uma morte ao vivo e a cores não é o tipo de merda com que se possa acostumar, ainda que eu mesma tenha executado algumas.Naquele momento, o vapor d'água do chuveiro não era suficiente para dissipar a tensão que se acumulava em minha mente. Enquanto as gotas caíam, minha mente enfim começava a relaxar e por enfim poderia descansar um pouco, a maldita tarefa estava cumprida, eu a encontrei,
O som das ondas ecoa, misturando-se ao murmúrio do vento que acaricia o convés. Permaneço enclausurada na cabine interna, ele pediu que me servissem o jantar aqui mesmo, em meu refúgio diante do homem que me arrancou da minha vida. Lembro-me do rosto do meu avô, sua partida abrupta diante dos olhos, uma ferida dolorida que jamais permitiria que eu perdoasse Lee ou qualquer homem associado a sua maldita máfia.Eu o vi lá fora, limpo e ridiculamente intimidante até em suas roupas ridículas de dormir, sua presença imponente entre as sombras do navio. O ódio ferve em mim, uma chama que consome qualquer resquício de paz que eu poderia encontrar.Preferindo a solidão da cabine, mergulho nas memórias que o oceano sussurra. O passado se desenrola diante dos meus olhos, entrelaçando-se com o presente incerto. Enquanto a embarcação avança, minha mente está ancorada no passado, na imagem de meus pais me fazendo companhia, de minha avó feliz ao observar como seu filho me jogava para o alto antes
- Tentando fugir? – ouvi a voz masculina de Giang, alto o suficiente para atrair minha atenção. Os olhos dela se encontraram com os meus quando me aproximei. Devia admitir que era admirável, precisaria de muita coragem para cometer uma burrice daquelas.Em poucos passos, cheguei perto o suficiente para ver a tensão no rosto de Paola e o reflexo em seus olhos do medo que sentia.- Aonde pensa que vai, querida? – comentei, meu tom de voz transmitindo uma mistura de sarcasmo e ameaça. Eu podia sentir o olhar de Paola em mim, cheio de desconfiança e desafio.Era um jogo perigoso esse que estávamos jogando, e eu não pretendia deixá-la escapar tão facilmente. Meu pai desejava vingança, e eu estava disposto a alcançar meus próprios objetivos que, infelizmente para ela, a incluíam como peça crucial em tudo isso.Ela aprumou os ombros e ergueu o queixo, pude ver a determinação quando me olhou nos olhos novamente.- Pensei que você seria mais responsável quanto à vida de sua avó. – ela não resp