Sentada na cadeira da grande sala de estar, eu balançava as pernas que de forma alguma tocariam o chão. Eu tinha um cubo mágico que insistia em tentar resolver, era uma coisa curiosa e, obviamente, colorida que chamava minha atenção.
Havia sido um presente de meu pai, aparentemente um brinquedo que exercitava o raciocínio lógico e criatividade de estratégia de reunir as cores novamente. Eu nunca conseguia, sequer uma delas. Minha mãe estava em seu quarto, estava cansada e eu insisti em ficar acordada esperando meu pai.Ela não insistiu em me levar de volta para meu quarto, sabia que eu choraria e faria birra até que me deixassem em paz.
“Não fará nenhum mal se ela apenas permanecer sentada, senhora”, foi o argumento de Giorgia, nossa governanta. Mamãe, por fim, decidiu permitir contanto que eu tomasse banho e colocasse meu pijama. Obedeci e em poucos minutos estava de volta na cadeira, vestida com um macacão cor de rosa com bolinhas brancas e um casaco pesado que Giorgia insistiu que eu usasse devido ao frio.
Não sei quanto tempo fiquei sentada sob a cadeira de madeira em espera, mas me lembro que quando Enrico Provenzano atravessou a porta da sala, minhas pernas já estavam cansadas de balançar e o cubo havia me cansado há um tempo. Quando ouvi seus passos, desci da cadeira e caminhei para fora da sala de jantar, meu pai estava de pé e fechava a porta. Me lembro que ele mancava e quando virou e me viu lá, de pé e com o cubo em minhas mãos, seu rosto que antes parecia raivoso e sombrio se suavizou um pouco.- Paola… – ele suspirou e caminhou a passos vacilantes até mim. Devagar, se ajoelhou na minha frente, suas roupas e mãos cheias de sangue, o rosto tinha algumas gotas salpicadas. Seus olhos azuis encaravam os meus, com a percepção infantil de uma criança, procurei por algo familiar em seus olhos, mas encontrei algo que eu não soube definir naquele momento, mas que ainda sim me deixou desconfortável e cautelosa. Meu pai olhou para o brinquedo e sorriu. – Ainda está tentando resolver isso? – ele estendeu a mão e, hesitante, coloquei o objeto em sua mão, que era enorme comparada às minhas. Examinando o brinquedo, manejou-o rapidamente com poucos movimentos fez surgir uma cor completa, me mostrando a superfície toda vermelha. Fiquei maravilhada com sua facilidade e quando foi me entregar, parou no meio do ato. – Ora, veja só… Acabei manchando seu brinquedo. Me perdoe, bambina. Vou limpar isso e devolvo para você, tudo bem? – olhei para as pequenas manchas de sangue seco e assenti.
Ele me pediu para esperar, e sumiu no corredor que dava para o banheiro do térreo da casa. Quando voltou, as mãos estavam limpas e ainda segurava o meu brinquedo.
Me pegando no colo, começou a subir às escadas em direção aos quartos, entramos em meu quarto e fui colocada sob a cama. Me ajudou a retirar os sapatos e me cobriu com a coberta. Ele sorriu, mas este, diferente dos outros sorrisos que eu recebia de meu pai, não iluminou seus olhos, eles continuaram vazios.
- Durma, querida. Amanhã tenho uma surpresa para você! – Embora tenha ficado curiosa e a pergunta na ponta da língua, não perguntei. Algo em seu tom de voz deixou claro que não seria uma surpresa tão boa assim.
Quando acordei no outro dia, o brinquedo estava sob o criado-mudo ao meu lado com todas as cores completas.
Eu não soube naquele momento, mas era um gesto de despedida.
Anos Depois...Da varanda, eu conseguia observar os animais andando no pasto. O calor assolava todo o campo e eu sentia que poderia derreter a qualquer momento. Vestida em um shorts jeans e uma regata branca e sandálias eu me abanava com meu próprio chapéu de cor beje, sua costura continha pequenos furos que permitia que minha cabeça não esquentasse tanto ao sol, presente de meu pai, enviado pelo correio e me foi entregue por um de seus soldados.
Escondida. Era meu status permanente desde que saí de casa naquele dia, depois de acordar com o todas as cores completas no cubo, fui trazida para esta fazenda na cidade de Perúgia, que era isolada e permitido que poucas pessoas vivessem aqui, apenas as que foram autorizadas por Enrico.
- Quer cavalgar hoje, querida? - perguntou minha avó, Simona. Ela aparece na porta, vestida em um de seus habituais vestidos de renda que desciam até seus joelhos.
Ela era uma senhora elegante e muito bonita, a idade não tinha tirado toda a beleza que devia ter sigo magnífica em sua juventude. Sorri e aceitei seu abraço lateral, apoiei o rosto no seu, mesmo com o calor o carinho dela sempre era bem vindo. Os longos dedos enrrugados passearam por meus fios dourados até as pontas, mas logo nos afastamos, a temperatura insuportável…
- Hoje não, vovó. Tenho medo de tentar ficar sob o sol e ser derretida.
- Tudo que sobraria seriam seus lindos miolos de ouro, Pôla. – meu avô, Vittorio, subia os degraus da varanda, o chapéu preto em mãos, uma calça jeans e uma camisa xadrez aberta com uma regata branca por baixo. Ele ainda mantinha a boa forma, as costas largas e a altura herdadas de meu pai, justificadas quando olhávamos para o antigo Capo da Cosa Nostra. Sua imponência ainda sim não era questionada.
- Vittorio! Isso não é algo que se diz para uma moça como Paola! – ela desferiu um pequeno tapa em seu antebraço. Observei, sorrindo, a amizade e amor que sempre vi entre meus avôs, mesmo sabendo quem meu avô havia sido em seu passado e o que exigiu de meu pai para que hoje ele pudesse ocupar o seu lugar, eu não o via como alguém perigoso para mim ou minha avó, mesmo sabendo que ele era e mesmo depois de anos sem estar no comando, continuava sendo temido por seus inimigos.
- Ora, Simona. Paola não se escandaliza com comentários toscos como esse! – ele sorriu e piscou para mim. – Temos bastante coisas para fazer hoje, o que acha de me ajudar com os cavalos? – cansada e suando, assenti.
No caminho para os estábulos, decidi questionar uma dúvida frequente que havia me impedido de fazer, uma pergunta que eu trazia à tona todos os anos.
- É quase Natal… – ao meu lado, meu avô respirou fundo antes de responder.
- Sim… – seu tom de voz deixou claro que já sabia onde a conversa nos levaria.
- Eles não conseguem vir sequer desta vez? – ele me entregou a escova e tirou uma das éguas para fora, parando ao meu lado, me encarou.
- Dessa vez veio tarde, sua avó estava com esperanças de que esse ano não fosse perguntar. – suspirei, irritada.
- Então não conte à ela. – comecei a escovar os pêlos do animal em tom de caramelo à minha frente e ele começou a balançar o rabo, distraidamente.
- Nós já conversamos milhares de vezes sobre isso, Pôla. Sabe porquê eles não podem vir.
- É perigoso, eu sei… – alguma rixa entre inimigos na Máfia. Revirei os olhos, não parando os movimentos, mas fui obrigada quando sua mão segurou a minha com firmeza, mas indolor.
- Não, não sabe. Ou pararia de sempre esperar que seus pais venham visitá-la. – ele me soltou e foi para o outro lado da égua, onde eu conseguia ver um pouco dele considerando minha altura e a do animal à minha frente. – Eles só estão esperando uma visita, um único vacilo e saberão onde está. Depois disso, seríamos obrigados a nos mudar, e eu particularmente gosto muito daqui.
Considerei o fato de que eu não era a única a estar presa aqui, eles também estavam, tudo para garantir minha segurança, pois não havia ninguém que meu pai confiasse mais que seu próprio sangue para me proteger, ainda mais seu antigo Capo, a quem manteve sua lealdade até que assumisse seu lugar.
Não respondi, continuei divagando e escovando os pêlos da égua. Meu avô deixou que eu lidasse com meus próprios pensamentos e passados alguns minutos, depois de terminarmos nosso serviço, ele veio até mim e colocou uma de suas mãos em meu ombro, esse era o máximo de aproximação que tínhamos como neta e avô, ele nunca fora do tipo muito paternal ou carinhoso.
- Aguente mais um pouco, querida. Logo, logo venceremos essa guerra e você vai poder viver uma vida com um pouco mais de liberdade – já que não havia de fato liberdade para mulheres na máfia. – Seu pai dará um jeito nisso.
Quando ele saiu, fiquei sozinha no estábulo, eu e a égua me encarando. De repente me senti mais compadecida dela, pois ambas viviam presas às regras que foram estabelecidas à nós por outros que não tinham esse direito.
Depois de sair dos estábulos, fui para o meu quarto onde felizmente estava mais fresco, embora o ar estivesse quente. A casa era arejada e garantia mais conforto, relaxei sob a cama deitada de costas para encarar o teto branco. Eu havia decorado o cômodo ao longo dos anos de acordo com o meu gosto. Havia um lado bom de ter que viver presa e escondida, meus pais me davam qualquer coisa que eu quisesse, por sorte nunca fui muito materialista. Quando criança, isso era legal, se tratando dos brinquedos, hoje nem tanto, tornou-se indiferente e entediante, principalmente quando a única coisa que eu gostaria de ter seria a presença de ambos, uma participação um pouco mais ativa em minha vida. Eu sabia exatamente o motivo, havíamos assassinado alguém importante da Tríade e que por conta disso havia um desentendimento entre eles e a Cosa Nostra, agora eu e meus avós e meus pais éramos alvos, como uma família que defende muito a honra e o valor dela própria, a Tríade não deixaria isso para
- Filha? – a voz de minha mãe soou do outro lado e senti meu peito afundar. Que falta havia sentido de ouvir sua voz, mesmo que em um tempo mais curto do que das últimas vezes. Não consegui evitar que meus olhos se enchessem de lágrimas pela saudade de sentir seu abraço. Ainda me lembrava de como passávamos a tarde juntas sob a lareira enquanto ela lia e eu brincava. - Oi, mãe. – a voz embargada não disfarçava a emoção. - Olá, Paola. – dessa vez havia sido a voz grave de meu pai a se pronunciar. Minha situação só piorou após isso. Mesmo sendo o Capo, Enrico nunca deixava de demonstrar carinho e afeto a mim, mesmo que não fosse o comum entre os homens de nosso mundo. - Hmm… Oi, pai. – menos caloroso, porém não intencional. Embora o amasse tanto quanto amava minha mãe, o meu afastamento havia colocado uma distância entre nós, de alguma forma, eu o culpava por estar presa aqui. A decisão havia sido dele, meu pai havia escolhido me afastar. Para me proteger, claro. Eu sabia, mas… ain
Desligando o despertador, me levantei da cama sentindo o desânimo e para a minha surpresa, tudo que desejei foi que aquele fosse apenas mais um dia normal na fazenda. Passei a mão pelos meus longos fios de cabelo, encarei as pontas e percebi que precisava hidratá-los… Um pensamento fútil e aleatório, gostaria de que essa fosse a minha maior preocupação hoje. Coloquei um vestido de tecido leve e branco com estampa de flores azuis e sandálias, prendi o cabelo em um rabo de cavalo simples e encarei meu reflexo no espelho… Dezenove anos, em breve completaria vinte. Constatei que eu deveria de fato esperar por algo assim, estava começando a ficar velha demais se fosse comparar a idade com as moças que levavam a mesma vida se casavam. Ainda sim, não queria acreditar. Ao erguer os olhos observei brevemente pelo meu quarto, considerando que esta seria a última vez que estaria aqui e mesmo com tantas coisas à minha volta, foquei no objeto de quatro cores, o cubo mágico. Quadrado e compl
Ele se pôs à frente do carro, a porta por onde saiu fechada. Minha avó soluçava em silêncio, o medo que compartilhamos entorpecendo os pensamentos racionais e a incapacidade nos sufocando.- Como eu disse, eu só quero a garota. – Vi o portador da voz de anteriormente, sua voz chegava abafada pelo som até nós e ele tinha uma aparência asiática, sendo membro da maior organização criminosa da China, e usava um terno azul escuro, com uma camisa branca por baixo. Em uma das mãos também tinha uma arma e encarava meu avô como poucos homens que conheci eram capazes de fazer.- E sabe que não vou entregá-la tão facilmente, Lee. Estamos falando da minha neta. – o outro assentiu levemente, aparentando como se de fato compreendesse a dificuldade da situação e estranhamente o respeitasse por isso.- Entendo. Você carrega o fardo de proteger sua família, infelizmente não pude fazer isso pelo meu irmão. Acho que agora compreende o que quero dizer. Mas ninguém precisa morrer aqui... – meu avô riu e o
- Paola... – disse vovó, saindo do carro. – Por favor, volte para o carro! – eu tiinha absoluta certeza de que ela sabia que isso não poderia acabar de outra forma, mas Simona sempre foi uma mulher de fé. Porém, não achava que o Deus dela ou qualquer outro poderia evitar isso! Porque no fim, fomos nós que trouxemos essa consequência sobre nossa família no momento em que nossos antepassados decidiram se envolver no mundo do crime e nós continuamos a seguir seus passos.- Não tem como eu sair daqui sem que seja acompanhada por esses cavalheiros, vovó. – não omiti o desgosto e desdém na voz. – O senhor mesmo disse, não é? Meu avô me deu um breve olhar de esguelha e assentiu quase que imperceptivelmente. – É desnecessário que isso seja às custas de suas vidas. – ele não disse nada, não podia. Mas era orgulhoso demais e também uma questão de honra permitir que sua neta fosse sequestrada sob sua proteção sem reagir e eu sabia que a impotência provavelmente o estava corroendo por dentro.Dei
Observo Paola enquanto mostro à ela seu quarto temporário no navio, mantendo minha expressão inalterada. Ela está acorrentada à realidade de algo que não compreende e tenho minhas dúvidas se já conseguiu processar tudo. Seus olhos mostram medo, mas para mim é apenas um incômodo irrelevante que aprendi a ignorar, felizmente ou não, ela é necessária aqui.- O que acha que está passando pela cabeça da garota, além de estar com medo e provavelmente calculando todas as possibilidades de fugir? – Jun me pergunta em chinês, quando apareço na proa do navio, onde ele está encostado na grade, relaxado e com uma arma em seu coldre, o que é ótimo, considerando que eu queria mesmo falar com ele.- Você atirou no avô dela... – ele me encarou de volta e então olhou para o chão.- Sabe porquê fiz isso. – em seus olhos pude ver que não gostava nenhum pouco do que fora obrigado por meu pai a fazer.- O que ele lhe disse? – Jun respirou fundo com pesar, olhando ao redor antes de voltar para mim novament
Sozinho no corredor passei pela porta onde estava a garota e ao entrar em minha cabine tirei o terno, tirei as calças e me despi da cueca boxer para adentrar no chuveiro instalado ao canto do quarto, onde eu permiti que a água escorresse pelo corpo e relaxasse os músculos e ao fechar os olhos não pude encontrar nenhum pouco de paz, já que a imagem de Enrico Provenzano morrendo não saia da minha cabeça, e sua esposa gritando... Não que eu me comovesse com sua morte ou lamentar se como alguém que conheci, eu não podia dar vazão a qualquer empatia pela avó de Paola ou por ela própria, mas matar ou ver uma morte ao vivo e a cores não é o tipo de merda com que se possa acostumar, ainda que eu mesma tenha executado algumas.Naquele momento, o vapor d'água do chuveiro não era suficiente para dissipar a tensão que se acumulava em minha mente. Enquanto as gotas caíam, minha mente enfim começava a relaxar e por enfim poderia descansar um pouco, a maldita tarefa estava cumprida, eu a encontrei,
O som das ondas ecoa, misturando-se ao murmúrio do vento que acaricia o convés. Permaneço enclausurada na cabine interna, ele pediu que me servissem o jantar aqui mesmo, em meu refúgio diante do homem que me arrancou da minha vida. Lembro-me do rosto do meu avô, sua partida abrupta diante dos olhos, uma ferida dolorida que jamais permitiria que eu perdoasse Lee ou qualquer homem associado a sua maldita máfia.Eu o vi lá fora, limpo e ridiculamente intimidante até em suas roupas ridículas de dormir, sua presença imponente entre as sombras do navio. O ódio ferve em mim, uma chama que consome qualquer resquício de paz que eu poderia encontrar.Preferindo a solidão da cabine, mergulho nas memórias que o oceano sussurra. O passado se desenrola diante dos meus olhos, entrelaçando-se com o presente incerto. Enquanto a embarcação avança, minha mente está ancorada no passado, na imagem de meus pais me fazendo companhia, de minha avó feliz ao observar como seu filho me jogava para o alto antes