Desligando o despertador, me levantei da cama sentindo o desânimo e para a minha surpresa, tudo que desejei foi que aquele fosse apenas mais um dia normal na fazenda.
Passei a mão pelos meus longos fios de cabelo, encarei as pontas e percebi que precisava hidratá-los… Um pensamento fútil e aleatório, gostaria de que essa fosse a minha maior preocupação hoje. Coloquei um vestido de tecido leve e branco com estampa de flores azuis e sandálias, prendi o cabelo em um rabo de cavalo simples e encarei meu reflexo no espelho…
Dezenove anos, em breve completaria vinte. Constatei que eu deveria de fato esperar por algo assim, estava começando a ficar velha demais se fosse comparar a idade com as moças que levavam a mesma vida se casavam.
Ainda sim, não queria acreditar.
Ao erguer os olhos observei brevemente pelo meu quarto, considerando que esta seria a última vez que estaria aqui e mesmo com tantas coisas à minha volta, foquei no objeto de quatro cores, o cubo mágico. Quadrado e completo e também inalterado desde quando o recebi de meu pai há vários anos atrás.
Provavelmente meus pais cuidaram para que as minhas coisas fossem recolhidas, então deveria arrumar a mala apenas com o necessário. Em outro momento eu talvez me agarrasse ao brinquedo em busca de algum conforto, mas não era mais uma garotinha e tampouco estava com meu nível afetivo elevado pelo meu pai, então deixei-o onde estava quando comecei a arrumar as malas. Separando apenas minhas melhores roupas e livros preferidos, quando terminei, encarei o quarto por uma última vez em despedida e arrastei a mala para fora, fechando a porta atrás de mim e deixando aquele maldito cubo para trás.
Antes de descer as escadas deixei as malas no topo, onde alguém as buscaria e levaria para baixo. Desci os degraus um por um, apreciando cada detalhe da casa e o fiz sem pressa. Puxando o ar em meus pulmões, inalo o cheiro familiar de folhagens e a brisa fresca que entrava pela porta. O sol não estava tão quente agora e esse era meu horário preferido para correr pela propriedade.
Ontem mesmo nesse horário, eu estava lá fora, correndo e cronometrando meu batimentos com a pulseira que ganhei de presente de minha avó e ela estaria sentada no banco debaixo da árvore, apenas me observando correndo de um lado para o outro enquanto lia seus livros.
Ambas sempre fomos amantes da leitura, embora com gostos muito diferentes. Independente disso, adorava sua companhia pelas manhãs.
Caminhei pela casa sem rumo, tentando memorizar o local, gostaria de ter tudo fresco em minha mente para me lembrar da sensação de me sentir em casa, a minha gaiola dourada, que parecia bem mais aconchegante agora e estranhei a sensação de falta que eu sentiria desse lugar, que por anos me fez sentir presa. Quando o momento em que eu odiarei a minha vida chegar, terei algo a que me agarrar, aqui, nesse lugar. Espero que seja o suficiente.
Até que, enfim, decidi me dirigir à varanda, onde uma pequena mesa era posta para o café da manhã. Meus avós já estavam lá, conversavam cochichando sobre algo e quando me viram, silenciaram.
- Bom dia querida! – disse Simona, abrindo um sorriso forçado, mas seus olhos tristes entregavam o que estava por trás.
- Bom dia. – respondi, meu avô apenas acenou a cabeça em minha direção. Suas emoções eram mais complicadas de ler, assim como meu pai, ele era bom em esconder o que sentia ou pensava. Mas imaginei que obviamente não estivesse feliz.
Dever. Apenas isso importava.
Eu era apenas mais um mero soldado com ordens a seguir.
Comemos em silêncio, ou melhor, eu. Eles já haviam tomado seu café e enquanto meu avô fumava (cedo demais costumava ser um indicativo sutil de seu mal humor), minha avó intercalava entre olhar o jornal e me olhar de esguelha verificando meu estado a cada segundo.
A ignorei, fingi estar bem e demonstrei indiferença, mas quando meu avô levantou incapaz de lidar com o clima desconfortável dando uma desculpa qualquer de que precisava ir aos estábulos e anunciou que sairíamos em alguns minutos, a realidade bateu mais do antes e meu peito afundou em pavor e desespero.
Perdi a pouca fome que sentia e me contentei em apenas beber pequenos goles do meu suco natural de laranja.
Sim, eu sentiria uma terrível falta do ar livre da fazenda, de cavalgar e ler embaixo da árvore nas tardes mais amenas. Até de torrar ao sol e reclamar do calor…
Porém, agora eu tinha um dever a cumprir. Me casar e proporcionar boas alianças entre nossas famílias e deveria ser grata por isso, afinal, ele tem mais ou menos a minha idade.
- As coisas vão melhorar, querida. – disse vovó, provavelmente reparando em como eu me esforçava para ter forças e parecer bem. – Seu pai está fazendo isso para proteger você!
Claro, olhe só para ela! Teve a sorte grande de encontrar amor em seu casamento, assim como minha mãe, mas como dizem: três é demais. Eu duvidava que teria essa sorte também.
Não respondi, como desculpa encarei o bolinho com pedacinhos de nozes e enfiei na boca. Minha avó obviamente percebeu a deixa e desistiu de falar comigo pelo resto do café.
Não demorou para que os encarregados do serviço pegarem nossas malas e levarem para o carro e minutos depois meu avô nos chamou para partir. Me levantei da cadeira, e dei uma última olhada para dentro da casa quando cheguei à porta. Simona pediu um segundo e correu para dentro, alegando ter se esquecido de algo, não esperei para ver o que quer que ela parou para colocar no porta-malas, mas depois a deixei que segurasse minhas mãos e me guiasse até o carro. No trajeto que fiz até me sentar no banco do carona na parte de trás e meu avô dar a partida, me senti anestesiada, como se não pudesse de fato sentir minhas emoções completamente.
Seguimos pela estrada de terra e em poucos segundos já não dava mais para ver a casa da fazenda atrás, sumindo da vista limitada da janela e então estávamos em uma estrada deserta. Passados alguns minutos dois carros apareceram e um se posicionou atrás e o outro na frente, provavelmente homens de meu pai para nos escoltar até onde quer que teríamos que ir para trocar de carro.
Uma hora se passou e meu avô era quem dirigia com sua esposa ao lado, ninguém falava, mas notei os olhares por cima do ombro de Simona e as verificadas de meu avô pelo retrovisor. Eu sabia que estavam preocupados comigo, mas não conseguia não me sentir magoada com eles também.
Não vi quanto tempo mais se passou, me perdi nas estradas desertas e no penhasco a nossa direita, no vento que balançava meus cabelos e no silêncio ao meu redor divagando sobre todos os anos que vivi e de como seria a minha vida daqui em diante.
Como seria meu marido?
Como serão seus costumes? Pois, se a Cosa Nostra tem os seus, certamente a Yakuza também deve ter…Ele seria gentil comigo quando…Meus pensamentos foram interrompidos pela voz de meu avô.
- Mas que droga…? – ele começou a dizer, mas o que quer que fosse perguntar, aparentemente encontrou as respostas sozinho quando freou abruptamente o carro e sacou sua arma em questão de segundos. O carro da frente perdeu o controle e foi de encontro ao penhasco, caindo e provocando uma explosão logo depois, adiante havia dois carros pretos bloqueando a estrada, não era possível ver através do vidro – ABAIXEM-SE. – gritou e antes que eu pudesse raciocinar, tiros atingiram o carro blindado.
Me joguei no assento e coloquei as mãos na cabeça, minha avó gritou quando vieram mais tiros e vi quando meu avô a cobriu com um de seus braços, na outra mão estava a arma.
O silêncio estabeleceu quando as balas pararam de serem disparadas, provavelmente o inimigo percebendo que não valeria de nada continuar atirando, ou… não estavam mirando para matar, ainda.
Ouvi o clique da arma e procurei por vovô, ele olhava ao redor, ainda mantendo-se abaixado.
Ousei erguer a cabeça e olhar para trás, haviam mais homens armados, o carro que protegia nossa retaguarda com as portas abertas e corpos sem vida pelo chão. O horror da cena e pavor me dominou, senti minhas mãos tremerem e suarem frio.
- Podemos ir até aí e arrancá-los do carro, Vittorio ou você mesmo pode sair. – uma voz grave e rouca soou. - Sei que sua mulher e neta estão com você. Eu só quero a garota. – meus olhos buscaram os deles e ambos se olharam e depois me encararam. Minha avó estava assustada e meu avô estava sério, mas estranhamente calmo.
Tríade…
Vittorio Provenzano sentou-se ereto em seu banco, carregou sua arma e respirou fundo.
- Querido… Não… – com lágrimas nos olhos minha avó implorava.
- Eu te amo, Simona. Jamais esqueça disso, diga à Enrico que me orgulho dele… Ele está sendo um Capo muito melhor do que jamais fui – suas mãos acariciavam o rosto dela. – E você é a mulher mais maravilhosa que eu poderia conhecer. – ela deu um sorriso triste e apaixonado ao mesmo tempo e senti o peso da injustiça, as coisas não deveriam acontecer assim. – E Paola… – o encarei, as lágrimas que eu tentava segurar escorrendo por minhas bochechas. – Eles vão levá-la. Seja forte, lembre-se do nome que carrega. – Seus olhos encararam os meus profundamente. – Tenha cuidado e seja esperta, seu pai não vai parar até encontrar você. Não bata de frente, isso só vai piorar sua situação. – Ele se inclinou até mim e beijou minha testa.
Não tive tempo de dizer nada antes que ele abrisse a porta e descesse do carro, com uma única arma em mãos.
Ele se pôs à frente do carro, a porta por onde saiu fechada. Minha avó soluçava em silêncio, o medo que compartilhamos entorpecendo os pensamentos racionais e a incapacidade nos sufocando.- Como eu disse, eu só quero a garota. – Vi o portador da voz de anteriormente, sua voz chegava abafada pelo som até nós e ele tinha uma aparência asiática, sendo membro da maior organização criminosa da China, e usava um terno azul escuro, com uma camisa branca por baixo. Em uma das mãos também tinha uma arma e encarava meu avô como poucos homens que conheci eram capazes de fazer.- E sabe que não vou entregá-la tão facilmente, Lee. Estamos falando da minha neta. – o outro assentiu levemente, aparentando como se de fato compreendesse a dificuldade da situação e estranhamente o respeitasse por isso.- Entendo. Você carrega o fardo de proteger sua família, infelizmente não pude fazer isso pelo meu irmão. Acho que agora compreende o que quero dizer. Mas ninguém precisa morrer aqui... – meu avô riu e o
- Paola... – disse vovó, saindo do carro. – Por favor, volte para o carro! – eu tiinha absoluta certeza de que ela sabia que isso não poderia acabar de outra forma, mas Simona sempre foi uma mulher de fé. Porém, não achava que o Deus dela ou qualquer outro poderia evitar isso! Porque no fim, fomos nós que trouxemos essa consequência sobre nossa família no momento em que nossos antepassados decidiram se envolver no mundo do crime e nós continuamos a seguir seus passos.- Não tem como eu sair daqui sem que seja acompanhada por esses cavalheiros, vovó. – não omiti o desgosto e desdém na voz. – O senhor mesmo disse, não é? Meu avô me deu um breve olhar de esguelha e assentiu quase que imperceptivelmente. – É desnecessário que isso seja às custas de suas vidas. – ele não disse nada, não podia. Mas era orgulhoso demais e também uma questão de honra permitir que sua neta fosse sequestrada sob sua proteção sem reagir e eu sabia que a impotência provavelmente o estava corroendo por dentro.Dei
Observo Paola enquanto mostro à ela seu quarto temporário no navio, mantendo minha expressão inalterada. Ela está acorrentada à realidade de algo que não compreende e tenho minhas dúvidas se já conseguiu processar tudo. Seus olhos mostram medo, mas para mim é apenas um incômodo irrelevante que aprendi a ignorar, felizmente ou não, ela é necessária aqui.- O que acha que está passando pela cabeça da garota, além de estar com medo e provavelmente calculando todas as possibilidades de fugir? – Jun me pergunta em chinês, quando apareço na proa do navio, onde ele está encostado na grade, relaxado e com uma arma em seu coldre, o que é ótimo, considerando que eu queria mesmo falar com ele.- Você atirou no avô dela... – ele me encarou de volta e então olhou para o chão.- Sabe porquê fiz isso. – em seus olhos pude ver que não gostava nenhum pouco do que fora obrigado por meu pai a fazer.- O que ele lhe disse? – Jun respirou fundo com pesar, olhando ao redor antes de voltar para mim novament
Sozinho no corredor passei pela porta onde estava a garota e ao entrar em minha cabine tirei o terno, tirei as calças e me despi da cueca boxer para adentrar no chuveiro instalado ao canto do quarto, onde eu permiti que a água escorresse pelo corpo e relaxasse os músculos e ao fechar os olhos não pude encontrar nenhum pouco de paz, já que a imagem de Enrico Provenzano morrendo não saia da minha cabeça, e sua esposa gritando... Não que eu me comovesse com sua morte ou lamentar se como alguém que conheci, eu não podia dar vazão a qualquer empatia pela avó de Paola ou por ela própria, mas matar ou ver uma morte ao vivo e a cores não é o tipo de merda com que se possa acostumar, ainda que eu mesma tenha executado algumas.Naquele momento, o vapor d'água do chuveiro não era suficiente para dissipar a tensão que se acumulava em minha mente. Enquanto as gotas caíam, minha mente enfim começava a relaxar e por enfim poderia descansar um pouco, a maldita tarefa estava cumprida, eu a encontrei,
O som das ondas ecoa, misturando-se ao murmúrio do vento que acaricia o convés. Permaneço enclausurada na cabine interna, ele pediu que me servissem o jantar aqui mesmo, em meu refúgio diante do homem que me arrancou da minha vida. Lembro-me do rosto do meu avô, sua partida abrupta diante dos olhos, uma ferida dolorida que jamais permitiria que eu perdoasse Lee ou qualquer homem associado a sua maldita máfia.Eu o vi lá fora, limpo e ridiculamente intimidante até em suas roupas ridículas de dormir, sua presença imponente entre as sombras do navio. O ódio ferve em mim, uma chama que consome qualquer resquício de paz que eu poderia encontrar.Preferindo a solidão da cabine, mergulho nas memórias que o oceano sussurra. O passado se desenrola diante dos meus olhos, entrelaçando-se com o presente incerto. Enquanto a embarcação avança, minha mente está ancorada no passado, na imagem de meus pais me fazendo companhia, de minha avó feliz ao observar como seu filho me jogava para o alto antes
- Tentando fugir? – ouvi a voz masculina de Giang, alto o suficiente para atrair minha atenção. Os olhos dela se encontraram com os meus quando me aproximei. Devia admitir que era admirável, precisaria de muita coragem para cometer uma burrice daquelas.Em poucos passos, cheguei perto o suficiente para ver a tensão no rosto de Paola e o reflexo em seus olhos do medo que sentia.- Aonde pensa que vai, querida? – comentei, meu tom de voz transmitindo uma mistura de sarcasmo e ameaça. Eu podia sentir o olhar de Paola em mim, cheio de desconfiança e desafio.Era um jogo perigoso esse que estávamos jogando, e eu não pretendia deixá-la escapar tão facilmente. Meu pai desejava vingança, e eu estava disposto a alcançar meus próprios objetivos que, infelizmente para ela, a incluíam como peça crucial em tudo isso.Ela aprumou os ombros e ergueu o queixo, pude ver a determinação quando me olhou nos olhos novamente.- Pensei que você seria mais responsável quanto à vida de sua avó. – ela não resp
Sinto meu coração acelerar enquanto Jun me leva de volta para a cabine. Medo e raiva se entrelaçam dentro de mim, formando uma tempestade emocional que ameaça me consumir de frustração. Ele me guia para dentro e fecha a porta, voltando-se para mim.- Você não é muito inteligente, é? – disse ele, com um tom de ironia. Eu optei por não responder, mas não pude evitar revirar os olhos em resposta ao seu comentário ofensivo. Ele continuou com sua postura de indiferença. – Não banque a garota mimada comigo! Se você quer manter sua segurança, seria melhor fazer algo para garantir a benevolência do Lee.- Pouco me interessa a benevolência do seu querido Lee. – falei entredentes, transmitindo meu desdém e raiva. Jun se aproximou assumindo uma expressão séria.- Pense direito, Paola, se você quer manter sua virgindade ilesa, seria bom se começasse a colaborar. Caso contrário, você acabará se tornando um brinquedo sexual nas mãos desses homens que, provavelmente, estão loucos para foder uma buce
"Você é igual ao seu pai! Terrivelmente teimosa."Lembrei a mim mesma das palavras de minha mãe. E decidi que encararia toda essa droga de cabeça erguida e faria o que tivesse que fazer para fugir.Cada palavra ofensiva proferida por Jun ecoa em minha mente, eu sabia que era verdade, era exatamente daquela forma que os homens aqui me veriam. A sensação de ter meu caráter e dignidade sendo ignoradas completamente é insuportável. A vontade de me rebelar, de lutar contra aqueles que tentam me subjugar, cresce quase indomável dentro de mim, mas eu não perderia o controle, manteria o resto de sanidade possível. O que considerava não ser muita, já que cheguei a conclusão que o líder da Yakuza não aceitaria uma mulher que não fosse mais virgem como sua esposa.E foi assim que eu percebi que poderia viver a minha vida sem ter que me casar caso voltasse para meus pais, também qualquer chance de ter um casamento iria por água abaixo, mas sem amor do que isso valeria?Há poucas horas atrás eu es