As luzes do festival reluziam no reflexo dos olhos afiados de Tânia. As barracas enfeitadas, a música e o aroma doce de especiarias pairando no ar pareciam insignificantes diante da cena à sua frente. Kael e Camélia caminhavam lado a lado. Os sorrisos eram sutis, mas naturais demais, confortáveis demais. O estômago de Tânia revirou. Merda. Ela sentiu antes mesmo de processar. Aquela pontada incômoda, aquele aperto quente dentro do peito. Algo que não deveria sentir. E Bianca percebeu. — Tá te incomodando? — A voz de Bianca deslizou como um fio de veneno macio, cheia de doçura falsa. O dom dela se espalhou no ar. Sutil, insistente. Mas Tânia já esperava por isso. Ela fingiu ceder, fingiu deixar a raiva crescer e atravessou o festival sem hesitar, indo direto até Kael e Camélia. A cidade assistiu. O Conflito
Cauã ainda sentia o corpo inquieto quando entrou em casa e se jogou no sofá, tentando ignorar a onda de sensações conflitantes que o sacudiam por dentro. Seu coração ainda batia mais rápido do que o normal, e a respiração saía curta, como se ele tivesse corrido quilômetros. Foi assim que Camélia o encontrou, entrando silenciosa na sala iluminada apenas pelo abajur perto do sofá. — Você parece perdido — ela comentou, sentando-se ao lado dele com um suspiro suave. Cauã piscou, como se só então notasse sua presença. Ele passou a mão pelos cabelos, bagunçando-os ainda mais, e se encostou no braço do sofá, olhando para o teto como se buscasse respostas nas tramas da textura. — Não tô perdido. Só… pensando — murmurou, a voz entrecortada pela tensão. Camélia arqueou uma sobrancelha, desconfiada. O canto de sua boca se curvou num meio sorriso. — Desde quando você pensa tanto assim depois de uma festa?<
O gabinete de Kael estava iluminado por uma luz quente e amarelada, lançando sombras suaves sobre as paredes de madeira escura. O ambiente carregava um peso invisível, como se cada pessoa presente soubesse que aquela conversa mudaria tudo. Kael estava de pé, apoiado na mesa de madeira maciça, os braços cruzados sobre o peito enquanto observava os rostos ao seu redor. Camélia, sentada ao lado de Azíria, mordia o lábio em uma expressão pensativa. Ricardo recostava-se na parede, observador como sempre. Tânia estava mais afastada, os braços cruzados, o olhar fixo no chão. O peso da verdade parecia recente demais para que ela conseguisse se sentir completamente confortável ali. — Agora que todos estão aqui, podemos começar. — Kael quebrou o silêncio, sua voz firme e controlada. — Depois de tudo o que descobrimos, sabemos que a profecia que acreditamos a vida inteira foi manipulada.
Serra dos Riachos não era uma cidade qualquer, era viva e pulsava sob os pés dos que passavam, sussurrava através das árvores, escondia segredos no reflexo dos riachos, era uma cidade que respirava. Aqui, o mundo visível e o invisível se entrelaçavam. Aqui, lendas não eram apenas lendas. Safira foi a primeira a ouvir o aviso, nas águas calmas do Bosque da Névoa, onde as guardiãs buscavam refúgio para se centralizarem, criarem amuletos e discutirem o destino da cidade. Em um desses momentos, a profecia veio até ela como um sussurro no vento, como se a própria Serra dos Riachos se materializasse. A noite estava densa, o ar carregado com o peso de algo que não podia ser visto, apenas sentido. A lua cheia pairava alta no céu, derramando sua luz prateada sobre a floresta silenciosa, que servia como testemunha de segredos antigos. No centro da clareira, um círculo de guardiãs permanecia imóvel, como se aguardassem algo. No meio delas, Safira ergueu o rosto, seu olhar intenso refletindo o
Camélia nunca gostou de perguntas sem respostas, ela era do tipo que desvendava padrões, que lia entrelinhas e desconfiava de silêncios longos demais. Cresceu sendo a pessoa que resolvia problemas, que planejava antes de agir, que não gostava de sentir que estava sendo deixada de fora de algo. E, naquele momento, algo não fazia sentido, a avó arrumando a mala com um olhar perdido. O avô mais silencioso do que o normal e o nome de uma cidade que nunca tinha ouvido antes: Serra dos Riachos. Desde pequena, Camélia sabia que sua família era diferente. Mas, em vez de histórias mirabolantes sobre o passado, havia apenas silêncio. Seu avô mudava de assunto quando questionado. Sua avó sempre dizia que o passado já havia ficado para trás. Seus pais também nunca pareceram curiosos sobre isso. Agora, aos vinte e cinco anos, Camélia percebia que aquilo nunca tinha sido normal. Seus pais, Flor e Gustavo, eram um casal equilibrado. Flor era mais reservada, dona de uma paciência invejável, mas
A primeira passagem que encontrou foi comprada sem pensar duas vezes por Cauã. Camélia arrumou suas coisas rapidamente, a tensão aumentando a cada minuto que se passava. A viagem pareceu interminável. Cada quilômetro percorrido apenas reforçava sua certeza de que algo estava errado, de que estavam atrasados para algo que ainda não compreendiam. Quando a aeronave finalmente pousou, ainda de manhã cedo, ela inalou profundamente o ar fresco, notando como ele parecia diferente. Mais puro, carregado com o frescor da vegetação e o perfume das flores espalhadas pelo vento. A névoa fina dançava entre as montanhas, como um véu separando dois mundos. O ar gelado da manhã a envolveu assim que saiu do avião, um abraço aconchegante depois de horas abafadas dentro da cabine. O cheiro de terra e grama molhada entrou em seus pulmões, como uma brisa suave e bem-vinda. Porém, algo a fez hesitar. Camélia sentiu que estava pisando em um território que carregava mistérios, e ela não sabia o porquê. Tam
O encontro com aqueles dois ainda martelava na mente da jovem enquanto ela caminhava pelo centro de Serra dos Riachos. A cidade estava desperta agora. O céu azul pálido se espalhava acima dos casarões coloniais, banhando as ruas de pedra em uma luz dourada. O som de passos apressados ecoava entre as vielas, mesclado ao barulho distante de sinos e ao murmúrio das primeiras conversas matinais.Pequenos comércios abriam suas portas, e o cheiro de café fresco e pão recém-saído do forno se misturava ao perfume das flores que decoravam varandas e janelas. Serra dos Riachos parecia um lugar fora do tempo, lembrando um pouco a cidade de Petrópolis pela arquitetura. Mas havia algo estranho ali.Era uma cidade pacata demais para a tensão que se sentia no ar, para a forma como os olhares se demoravam um pouco mais sobre ela do que o necessário. A sensação de estar sendo observada a acompanhava a cada esquina.Ela pegou o celular, ainda inquieta depois da confusão
Kael soube que ela estava ali antes mesmo de Júlio abrir a porta. O perfume doce e inconfundível de flor de laranjeira invadiu o ambiente antes do som da madeira sendo batida. E então, ela surgiu. A garota da praça. Kael manteve o rosto impassível enquanto via Júlio e Madalena a abraçarem, mas por dentro, uma irritação crescente o dominava. Ela não era apenas uma forasteira. Ela estava ligada à família Alencar, talvez neta de Júlio e Madalena. Isso não dissipava seu interesse, mas aumentava. Ela era bonita de um jeito perturbador. Os olhos dela, cinzentos como o céu antes da tempestade, avaliavam tudo ao redor, como se quisessem decifrar cada detalhe. Eles carregavam uma tempestade silenciosa, e Kael não sabia se queria fugir ou ser levado junto. Ela parecia mais preocupada com a família do que com ele. — O que aconteceu? — Camélia perguntou, sua voz carregada de preocupação. O silêncio tomou conta, a tensão no ar se tornando palpável. Júlio pigarreou, surpreso pela chegada repent