Cidade de “FT”, 13 de janeiro, segunda-feira.
Às 8h35min, terminou o relatório, imprimiu e deu uma lida, fins corrigir possíveis erros.
Assassinato!
Um homem matou a ex-esposa → a facadas → e fingiu que nada tinha acontecido. Chegou a ir ao enterro, o vagabundo, numa ousadia e desfaçatez sem limites.
Mas seus dias de glória logo chegaram ao fim. Após sete dias de investigações, descobriu → no local do crime → marcas de sapatos que coincidiam com as de um par usado pelo homem. Sapatos encontrados, por incrível que pareça, debaixo da cama dele.
Além disso, seguindo orientação de uma filha desconfiada, recolheu e mandou analisar as roupas por ele deixadas numa lavanderia. Bingo! Havia marcas de sangue da vítima numa calça jeans.
Um erro crasso, típico de um imbecil amador, cheio de ódio, que acreditou → erradamente → ter cometido o crime perfeito. Foi o suficiente para expedir um mandado de prisão. Uma vez preso e após quatro horas de intenso interrogatório, o sujeito acabou por confessar o crime.
Caprichou no texto do relatório, para que o desgraçado não tivesse nenhuma chance de sair ileso dessa.
Finda a leitura e ciente de que não havia erros, assinava o relatório quando o telefone fixo tocou.
→ Pois não?
→ Bom dia, Macto! Tudo bem?
→ Bom dia, chefe. Tudo joia. O que manda?
→ Poderia vir à minha sala, por favor? Tenho uma importante missão para você.
→ Ok.
Colocou o fone no gancho, levantou-se e deixou o relatório em cima da mesa do inspetor Cardoso, que ainda não tinha chegado. Ao passar pela mesa de Marcos, disse:
→ O delegado me chamou.
→ Beleza. → ele respondeu, concentrado, sem tirar os olhos da tela do notebook.
Saiu da sala, percorreu seis metros do largo corredor e entrou no elevador. Apertou o botão de número quatro. Dez segundos de viagem, com somente o zumbido do motor do elevador como companhia. Rotina. Uma vez no quarto andar, saiu do elevador, percorreu dez metros e entrou na primeira sala, do lado esquerdo.
Sala esta que conhecia bem.
Um homem moreno, magro e alto, que aparentava ter entre 40 e 50 anos, estava sentado atrás de uma enorme escrivaninha. Duas cadeiras de madeira → com estofamento de couro → se encontravam na frente da citada escrivaninha.
→ Com licença, chefe.
→ Oi, Macto. Pode entrar.
Parou na frente da escrivaninha. Aguardou, de forma respeitosa, enquanto ele lia e assinava alguns papéis.
O delegado Haroldo estava no comando da 1ª Delegacia há somente dois meses. Transferido da cidade de “GH”, era um homem de hábitos discretos, que a maioria dos policiais não conhecia. Falava pouco, não costumava encarar as pessoas de frente e dava a impressão de não gostar da função. Era como se aquele não fosse o seu mundo. Era, acima de tudo, um cara muito estranho!
No entanto, apesar de esquisito e introspectivo, já demonstrou ter plena capacidade para o serviço, além de liderança.
→ Sente-se, por favor.
Obedeceu, ocupando uma das cadeiras.
O delegado, minutos depois, parou o que estava fazendo e levantou a cabeça, porém sem olhá-lo fixamente nos olhos. Olhava, na verdade, para o nariz de seu interlocutor, um hábito que tinha.
→ Soube que você concluiu o caso do cidadão que matou a ex-esposa, certo?
→ Sim. Encerrei o caso. Acabei, inclusive, de assinar o relatório e já o deixei na mesa do inspetor.
→ Um excelente trabalho, por sinal. Aquele elemento maquiavélico vai amargar, no mínimo, uns vinte anos de xilindró, com certeza. Parabéns!
→ Obrigado, chefe.
→ Muito bem. Deixe-me ver. → Olhou para uma folha de papel. → Você seria designado, pelo Cardoso, para auxiliar o Marcos, no caso do crime do bar La Puntaine. É isso mesmo?
→ Sim. O inspetor havia me informado, na sexta-feira.
→ Ok, ok. → Suspirou, fixando o olhar na parede. → Bem, Macto, mas como surgiu um novo caso, decidi dá-lo para você. O Diego irá substituí-lo, no auxílio ao Marcos. Avisarei ao Cardoso mais tarde sobre esse assunto. Ele não chegou ainda, certo?
→ Não.
→ Tudo bem. Eu o dispensei, na sexta-feira, para chegar mais tarde, hoje. Assuntos particulares → novo suspiro →. Mas vamos, agora, ao que interessa. Com relação ao caso, trata-se de um traficante de drogas, conhecido como “Ameba”. Na verdade, ele se chamava Nestor Junt Espordy, trinta e cinco anos, solteiro, sem filhos, e, após cumprir seis anos de prisão, estava solto há quatro meses. Trabalhava como lavador de carros, para a empresa Mortiscar. Foi encontrado morto, no início da manhã deste domingo. Veja as fotos.
Recebeu, das mãos do delegado, três fotos coloridas, tamanho doze por quinze centímetros.
Ao vê-las, levou um susto!
Nelas, um homem branco, forte, de cabelos vermelhos → e completamente nu! → se encontrava pregado numa enorme cruz de madeira. Pregado mesmo, para seu profundo espanto!
Além do mais, uma corda de nylon, amarrada ao redor da cintura dele, o fixava à referida cruz.
Notou os olhos arregalados → evidenciando vívido desespero e um hórrido esgar de dor! → a cabeça tombada de lado, a boca ligeiramente aberta e o sangue empapando os ferimentos.
Muito sangue! Sangue em profusão!
Uma cena realmente dantesca, que assustava e enojava. Perguntou-se que mente perversa e doentia teria tido a ideia e a coragem de dizimar uma pessoa, um ser humano daquela forma. Um sádico, com certeza.
Devolveu as fotos, controlando o asco.
→ Como você já percebeu, esse homem foi crucificado → o delegado prosseguiu. → Crucificado em pleno século vinte um, por incrível que pareça! O “Ameba” morreu aos poucos, devido à fome, sede, asfixia e parada cardíaca. Uma morte dolorosa.
→ Terrível!
→ E bote terrível nisso. A mídia está fazendo a maior festa, com esse crime. Um verdadeiro escândalo. Veja você mesmo. Apontou para um jornal, que estava sobre o tampo da escrivaninha.
Pegou o jornal “Verdade Suprema”, o maior e mais popular da cidade de “FT”, e deu uma lida na manchete principal, que se destacava, na primeira página:
“HOMEM MORTO POR CRUCIFICAÇÃO!
SERIA MAGIA NEGRA?”
Não quis ler o resto, para não perder tempo. Infelizmente isso significava que teria, acima de tudo, que lidar com os malditos repórteres, todos ávidos por notícias sensacionalistas. Teria que driblá-los ou enrolá-los, para não sofrer aborrecimentos.
Por sorte, estava acostumado com essa pressão.
Rotina.
Devolveu o jornal, em silêncio.
→ Estou na polícia civil há quase trinta anos → o delegado prosseguiu →, mas confesso que nunca tinha visto um homem morrer dessa maneira, exceto nos filmes de terror que costumava assistir, na adolescência. Quem fez isso com ele, além de um grande psicopata, não está brincando em serviço. Não está mesmo. A impressão que tenho é que... sei lá... Como posso dizer isso? É que pode se tratar de um grupo praticamente de magia negra.
Ficou surpreso.
→ Magia negra? O senhor acredita nisso?
→ Claro que acredito. Isso tem tudo para ser magia negra, no seu estágio mais avançado. Magia negra das brabas. Provavelmente, antes de matá-lo, seus assassinos realizaram algum tipo de ritual satânico, com sangue e dancinhas diabólicas. Algo como uma espécie de pacto com o diabo, entende? → Fez uma pausa e suspirou, como que arrependido por ter se exposto demais perante um subordinado →. Mas estou especulando. É apenas impressão minha. Esqueça o que falei. Não posso afirmar que isso realmente aconteceu. Além disso, a cruz teria que estar invertida, de ponta cabeça, para que fosse realmente um ritual de magia negra. Somente as investigações nos darão uma resposta mais precisa, para esse caso sinistro e... digamos assim... inusitado.
Não quis comentar as palavras do delegado. Não valeria à pena iniciar uma discussão por causa de crendices fantasiosas.
Magia negra? Pois sim.
Na verdade, achava que esse foi apenas um crime brutal, em que um psicopata teve a sinistra ideia de pregar a vítima numa cruz, de matar uma pessoa → seja ela bandido ou padre, assassina ou de bem → crucificada, justamente para causar reboliço e instalar o caos na sociedade. Só isso.
De repente, lembrou-se de algo.
→ Chefe, esse tal de “Ameba” não era um contínuo informante da polícia?
→ Exatamente. E tudo começou quando, assim que descobrimos que ele iria sair da penitenciária estadual, há quatro meses, e ciente de que não era um assassino nem estuprador e sim, um reles traficante de drogas, o abordamos e lhe fizemos a seguinte proposta: ele passaria a ser nosso informante, nos dando dicas que levassem à prisão de traficantes. Ao mesmo tempo, continuaria no tráfico, ganhando seus trocados por fora, e, para disfarçar, trabalharia como lavador de carros. Ou isso ou correria o risco de voltar novamente para a prisão. Como “Ameba” sabia que estávamos monitorando seus passos, o que tornaria sua vida de crimes impraticável, acabou por aceitar. Topou a parada, tornando-se um alcaguete. E ele estava fazendo um ótimo serviço. Digo isso porque, por meio de suas denúncias, há um mês, como você já sabe, conseguimos prender duas quadrilhas, no instante em que desembarcavam a droga, no porto. Foram mais de vinte e dois traficantes presos, em duas operações bem sucedidas, o que reduziu drasticamente o comércio ilegal de crack, cocaína e maconha na cidade. O “Ameba”, inclusive, nos últimos dias, estava de olho num traficante de apelido “Minhoca”, seu atual patrão, que seria nosso próximo alvo. Infelizmente, não teve tempo para nos dizer mais nada.
→ E o vagabundo do “Minhoca”, obviamente, se tornou o principal suspeito desse crime.
→ Exatamente. Agora, se ele for mesmo o responsável pela morte do “Ameba”, já viu, né? Estaremos lidando com um elemento profundamente perigoso e insano. Um satanista. Um torturador. Teremos que ficar atentos.
→ Sim.
→ É isso aí. Bem, Macto, como você já percebeu, sua missão é encontrar e prender o assassino ou assassinos do “Ameba”. É o mínimo que podemos fazer para compensar os serviços que ele prestou à polícia. → Pegou uma pasta de capa verde. → Tudo leva a crer que foi o “Minhoca”, embora seja ainda cedo para afirmar isso. Aqui está um dossiê do caso, com todas as informações que julgamos importantes. Peço-lhe que o leia → estendeu a mão. → Este não deve ser um caso difícil de ser desvendado, porém é extremamente perigoso. Você deverá tomar muito cuidado. E caso necessite de um parceiro ou de viaturas ou de uma equipe de assalto, basta nos ligar, que arrumaremos de imediato.
Pegou a pasta. No fundo, estava feliz e excitado, pois adorava receber casos como esse. Envolver-se em ações imprevisíveis e emocionantes faziam parte da essência de sua vida de policial.
A adrenalina, nessas horas, era reconfortante!
→ Tudo bem, chefe.
→ Ah, e coloque essas fotos na pasta, sim?
Obedeceu, inserindo rapidamente as fotos.
→ Tem alguma pergunta, que queria me fazer?
→ Sim. Alguém da delegacia vistoriou a pensão onde o “Ameba” residia?
→ Sim. Ontem enviei três policiais, que realizaram, com a autorização do dono, uma busca minuciosa no quarto. Os objetos pessoais dele, além de algumas roupas, foram recolhidos e estão no armário vinte e três, no almoxarifado. Caso queira dar uma olhada, basta pedir para o Kleber. Todas as impressões digitais encontradas no local estão sendo analisadas. Sangue, fios de cabelos e outros materiais também. Acredito que quarta-feira à tarde você já poderá obter a identificação aproximada das pessoas que frequentavam a morada do nosso amigo.
→ Algum parente foi avisado da morte dele?
→ Nenhum, apesar dos avisos que colocamos nos jornais e rádios. E ninguém foi ao necrotério, para reclamar ou identificar o corpo. Pelo visto, o “Ameba” era um homem que vivia absolutamente só. Um “Zé Ninguém” anônimo e patético.
→ Amigos? Namorada?
→ Também não.
→ Ok, chefe. Não tenho mais dúvidas.
→ Pois muito bem. Quero que saiba que escolhi você para solucionar esse caso por ser um dos mais brilhantes policiais desta delegacia. Espero que faça um bom trabalho. Desejo-lhe boa sorte. Obrigado.
→ Até mais, chefe.
Levantou-se e saiu da sala.
Cidade de “FT”, 13 de janeiro, segunda-feira. De volta ao segundo andar e à sua mesa, sentou-se, respirou fundo e deu uma lida no dossiê. Primeira parte → as análises do médico legista. A grosso modo, mostrava a hora provável da morte de “Ameba”. O dia. Os motivos: sede, asfixia etc. As substâncias ingeridas. O sangue. As impressões digitais. A surra que o sujeito levou, antes de morrer. As costelas quebradas como prova. O fato de ter permanecido cinco ou seis dias na cruz. O fato de ter sido crucificado num lugar e, após a morte, ter sido deixado no local onde foi encontrado. Fim de papo. Talvez pudesse achar um caminhão baú → repleto de sangue → na casa do ta
Cidade de “FT”, 13 de janeiro, segunda-feira. Estacionou o Corsa verde do lado direito da rua, diante da pensão. Olhou o relógio: 10h50min. Saiu do veículo e não pôde deixar de notar o cume do famoso morro do Palmor, a cerca de oitocentos e cinquenta metros dali. Morro reconhecidamente violento, apesar das constantes incursões da polícia. Na verdade, aquele bairro, em si, era violento. Sem perder tempo, abriu o portãozinho de entrada, percorreu a rampa de cimento, que dividia o pátio gramado, subiu os quatro degraus de madeira e parou na varanda, diante de um portão de ferro → fechado, naquele momento. Pensão pintada de vermelho fosco. Percebeu que havia um corredor, atr&aac
Cidade de “FT”, 13 de janeiro, segunda-feira. Uma mulata bonita e sexy, que devia ter entre trinta e trinta e cinco anos, o recebeu. Ela → que tinha acabado de fazer o almoço → o convidou para entrar. O quarto era limpo e organizado. Dividido ao meio por uma folha de compensado, que servia de parede. Uma mesa → com suas quatro cadeiras → separava a “cozinha” da “sala”. Viu o fogão → com três panelas em cima →, o buffet e a geladeira do lado de lá; o sofá e a televisão do lado de cá. No meio, a mesa. Viu também a “parede” de compensado, que com certeza escondia o “quarto” onde o casal dormia. Mônica reforçou as palavras da dona Judite. O Nestor era um bom vizinho e n&a
Cidade de “FT”, 13 de janeiro, segunda-feira. Após o almoço → bife com fritas → seguiu para a rua Marselhantes. Fez um rápido reconhecimento, até notar → no meio do percurso, do lado direito da rua → um letreiro enorme e luminoso, que dizia:“BOATE RASPUTIN” Na mosca! Suas análises e deduções se confirmaram. Obviamente que o “Ameba” só podia ter conhecido a mulher do vestido preto ali, entre generosas doses de cerveja. Casa pintada de amarelo escuro, com dois pavimentos. As duas portas → a grande e a pequena →, localizadas no térreo, estavam fechadas. No andar de cima, uma sacada. Estaci
Cidade de “FT”, 13 de janeiro, segunda-feira. O bairro “FT-4.56”, zona leste, próximo da praia, era nobre e repleto de belas mansões, uma maior e mais extravagante que a outra. Os prédios luxuosos completavam o requinte de riqueza do lugar. A rua Galdino Serpp → com aproximadamente oitocentos metros de extensão → era larga e discreta. Não tinha saída, pois terminava num muro, atrás do qual via-se um matagal. Rua absolutamente deserta. Enigmática! Sombria! Não gostou dela → nem um pouco. Contou dez grandiosas mansões ao longo da via → cinco de cada lado →, todas com
Cidade de “FT”, 13 de janeiro, segunda-feira. Foi recebido por uma mulher branca, alta, magra, com peitos fenomenais e tatuagens. Usava um longo vestido preto. Seria ela?, indagou para si mesmo, profundamente surpreso. → Ana? → ousou perguntar, após refazer-se do choque. → Sim. Sou eu mesma. Entre, policial. Obedeceu, completamente desnorteado. Entrou numa sala enorme, de teto alto. Tudo ali era extremamente limpo e luxuoso. A estante. O tapete. Os sofás. As poltronas. O bar. O lustre, com suas doze lâmpadas. O piso de ladrilho. As cortinas. As luzes. A mesinha-de-centro. Ela. → Sente-se. Quer
Cidade de “FT”, 13 de janeiro, segunda-feira. Olhou o relógio: 18h15min. Seguia por uma estrada deserta, com o matagal do lado direito e algumas fábricas do lado esquerdo. Mais cinco quilômetros e alcançaria a avenida “F600”. Ligou os faróis, uma vez que a noite havia chegado. Iria jantar e depois dar uma passada no bar Lintox. Talvez pudesse conseguir alguma informação importante com o dono. Procurou não pensar nas coxas da tal de Ana. Não teve dúvidas de que era uma mulher fácil. Fácil e.. sexy! Desejável! Excitante! Se as
Cidade de “FT”, 13 de janeiro, segunda-feira. Pisou bruscamente o freio, mas não conseguiu evitar a batida. A frente do Corsa amassou, ao bater na lateral do Siena preto, que havia bloqueado sua passagem. Sua testa atingiu o volante, produzindo uma dorzinha chata. Tonto, não teve tempo de pegar a arma. Oito homens rodearam o Corsa, todos com armas nas mãos. → Quieto! → gritou um deles. → Saia do carro! → Ei! Eu... → SAIA DO CARRO! AGORA! Não poderia lutar contra oito indivíduos. Obedeceu, portanto, saindo do Corsa lentamente, com a vista meio que turva. Um filete de sangue fluí