O som estridente do despertador do celular prateado tocou anunciando seis horas da manhã. Bento despertou, mas não sentia a menor vontade de se levantar. Roçou os cabelos castanhos claros cacheados pela fronha branca, colocando a cabeça embaixo do travesseiro.

A porta do seu quarto abriu, deixando a luz entrar. Bento não se mexeu, sabia que possivelmente era sua irmã Nice entrando no seu quarto — como fazia todos os dias que tinha aula — para pegar emprestado um par de meias.

Nice tinha muitas meias, cor-de-rosa, azul, verde, listradas, de ursos marrons, com vaquinhas, com anjinhos, com coração, com estrelinhas…. Mas apesar disso, sempre pegava as meias brancas e masculinas de Bento para ir à escola. Isso irritava Bento ao extremo, a ponto de fazê-lo levantar-se da cama só para perguntar:

— Você não tem suas próprias meias? — sua voz saiu rouca de tanta preguiça.

— As suas são muito mais confortáveis. — Nice piscou com seus olhos verdes para ele, abrindo a gaveta da cômoda branca. Ela era uma daquelas garotas que todo mundo na escola queria namorar. Tinha os cabelos tingidos de ruivo, olhos grandes, a boca sempre cheia de gloss vermelho brilhante, convidativa, e um corpo de arrasar.

Ela e Bento nem pareciam irmãos, pois Bento era magrinho, comprido e desajeitado, com um cabelo castanho cacheado precisando de um corte parecendo uma espiga de milho. Enquanto Nice tinha um rosto bonito e corpo de modelo, cabelos ondulados e olhos verdes.

— Sai daqui, Nice! — expulsou a irmã do quarto com mau humor típico matinal. — Quero me trocar.

— Claro, princesinha! — Nice debochou com um sorriso, pegou as meias e fez um sinal de “paz e amor” com os dedos de unhas compridas pintadas de cor-de-rosa, saiu do quarto tão rápido quanto entrou.

Bento ouviu o secador de cabelo de sua irmã ligar e ficou de pé, com desânimo. Coçou a barriga e foi até o banheiro escovar os dentes. Colocou a primeira calça jeans do armário, a camiseta do uniforme escolar e um moletom de zíper cinza. Calçou o All Star azul escuro e pegando sua mochila, deixou o quarto.

Foi bater à porta do quarto de Nice, que estava aberta. Viu dali do corredor que a garota estava secando os cabelos olhando-se no espelho, usando um casaco de poliéster branco com capuz e as mangas de pelúcia preta, um jeans escuro tão apertado que deveria ser dois números menores e botas de chuva coloridas com personagens que ela gostava. Uma coisa estranha em Nice era que usava um visual que transitava entre o infantil e o sensual. Provavelmente era por isso que a maioria dos garotos da escola só faltava beijar seus pés de tão apaixonados. Seria hilário, se não fosse tão desesperador para Bento, que apesar de pegar no pé de sua irmã, era um irmão protetor.

— Você vai se atrasar! — falou provocando batendo a mão fechada na porta, para pedir licença com educação. Desde o dia que abriu a porta e flagrou sua irmã se amassando com um carinha, nunca mais deixou de bater, virara uma mania, pois agora batia até sem a necessidade. Nice estava sempre com algum carinha, mas nunca estava sério com ninguém.

— Me deixa em paz! — a irmã gritou enquanto puxava o cabelo com a escova tentando deixá-lo bem liso.

— Tudo bem, vou na frente! — Bento virou de costas, preparado para sair.

— Não! Mãe! O Bento não quer me esperar! — Nice berrou fazendo manha, como se tivesse apenas seis anos.

— Chorona! — Bento logo falou, revirando os olhos.

— Bestão!

— Criançona!

— Babaca!

— Espinhenta!

— Cabelo de miojo!

— Bento, faça o favor de esperar a sua irmã! — sua mãe interrompeu a briga boba dos dois, gritando da cozinha onde começava a passar o café, o cheiro invadiu a casa.

Bento olhou para a irmã pelo reflexo do espelho, e com as duas mãos erguidas, falou com uma voz fininha junto com a sua mãe, de forma sincronizada:

— Você sabe que eu não gosto que ela vá sozinha!

Nice lançou ao irmão um olhar enviesado, no mesmo instante Bento recebeu uma mensagem de texto no celular, tocando um bipe alto.

— É o Daniel? — Nice parou de secar o cabelo para conversar, interrompendo seus afazeres com interesse na mensagem do irmão.

Daniel era o melhor amigo de Bento há cinco anos, mas não só isso, Nice havia decidido há meio ano que Daniel era o seu príncipe encantado e desde então estava se esforçando para chamar atenção do garoto. Era até engraçado se não fosse desesperador para Bento, que detestava a cara de apaixonada e os olhos brilhantes de Nice para cima de Daniel…. Tudo bem, as meninas achavam Daniel muito bonito, mas Bento sabia que era uma mania nova de Nice, algo que tinha começado há pouco.

— Provavelmente! Deve estar de saco cheio de esperar lá em baixo. Vai demorar? — Bento apressou a irmã e abriu a mensagem. — É ele mesmo, tá saindo em cinco minutos, vamos logo, Nice! — mentiu. A mensagem de Daniel dizia que ele estava atrasado, pois tinha perdido a hora.

— Ai…. Já vou! — Nice soltou a escova e o secador mesmo sem terminar o cabelo, deixando-os meio bagunçados. Não queria perder a chance de caminhar até a escola ao lado de Bento e Daniel. Pegou sua mochila e de frente para o irmão, anunciou. — Estou pronta!

— Ótimo. — Bento saiu na frente. — Estamos indo, tchau! — gritou para a mãe.

— Boa aula!

— Obrigada, mãe! Bom trabalho pra você! — Nice ainda passou na cozinha e despediu-se de sua mãe.

Bento entrou no elevador e virou os olhos quando a primeira coisa que Nice fez foi arrumar os cabelos nos ombros de frente para o espelho e limpar os cantos da boca para tirar o excesso de gloss. Era uma menina muito vaidosa.

— Me esqueci de colocar os brincos! — choramingou.

Quando saíram na rua, Nice abriu seu guarda-chuva xadrez para proteger os cabelos do chuvisco fino que caía naquele dia de verão inusitadamente frio. Bento colocou o capuz na cabeça.

— Ué, cadê o Daniel? — perguntou olhando para os dois lados e constatando que o garoto não estava ali. Bento já ria escandalosamente, faltando apenas rolar no chão de tanto rir da peça que pregou na irmã. — Você é tão babaca! — Nice reclamou, sacando qual era a piada. Estava desleixada por culpa do irmão, que ficou apressando-a.

— Vamos indo, encontramos com ele na esquina. — Bento ao passar por Nice, puxou seu guarda-chuva das mãos da menina e saiu correndo.

— Bento! — Nice reclamou com a voz chorosa enquanto os pingos finos da chuva caíram em seu rosto. Mas que droga! Bento era tão babaca! Tinha dezesseis anos e continuava agindo como se tivesse treze! Correu atrás do irmão, pisando nas poças.

Quando chegaram à esquina, Bento não devolveu o guarda-chuva para sua irmã, e por ser mais alto, levantou bem para cima para que a garota não conseguisse pegar.

— Bento, meu cabelo! Para com isso! — Nice pulou mais uma vez tentando pegar o guarda-chuva das mãos do irmão. — Você é um chato.

— Ei, o que estão fazendo? — Daniel perguntou assim que chegou, com cara de sono e olheiras contornando os olhos castanhos claros. Seus cabelos lisos e castanhos estavam por dentro do capuz do casaco de poliéster preto e de All Star vermelho. Segurava um guarda-chuva também preto.

— O Bento está me enchendo de novo, pegou meu guarda-chuva! — Nice pulou mais uma vez. — Meu cabelo vai ficar horrível!

— A culpa não é minha que você tem cabelo ruim e fica passando ferro nele todo dia! — Bento continuou com o guarda-chuva bem alto, longe das mãos de Nice. — Eu que vou usar o guarda-chuva hoje!

— Ei Nice, eu te levo. — Daniel interferiu oferecendo uma vaga embaixo do seu guarda-chuva.

— Sério? — Nice parou de pular e com um sorriso no rosto, foi para baixo do guarda-chuva de Daniel, segurando o braço do garoto. — Obrigada!

— De nada. — respondeu para a garota com um sorriso.

Bento suspirou fundo. Esse era o único defeito de Daniel: ficava o tempo todo protegendo Nice das brincadeiras. Era algo que também tinha começado há pouco tempo, pois se lembrava de que no começo Daniel juntava-se a ele nas brincadeiras contra Nice, rolava até uma competição entre ambos.

Foi por essa mudança repentina de comportamento que Bento se sentiu obrigado a conversar seriamente com Daniel durante o Ano Novo, para pedir-lhe que não tentasse nada com Nice, pois se algo acontecesse, sabia que isso afetaria a amizade dos dois.

Lembrava-se daquela noite como se fosse ontem, já fazia mais de um mês, mas as memórias estavam marcadas profundamente em sua cabeça. Tinha sido um dia maluco, Bento ainda estava muito chateado com o fim de namoro com Lucinda — que era melhor amiga de Nice — seus pais brigando na sala, Nice chateada por estar sozinha durante o feriado do Ano Novo e Daniel tentando fazer companhia para a menina, como um bom anfitrião — estavam na casa de veraneio dos pais de Daniel, que apareceram apenas no dia da virada.

Notou que durante aquelas duas semanas que passaram de férias na praia, Nice e Daniel tinham ficado muito próximos, conversando sobre coisas que tinham em comum e fazendo tudo juntos. Com isso, Bento ficou de lado lamentando o término do namoro.

Bento sentia-se até meio mal quando se lembrava do momento em que disse para Daniel prometer que não tentaria nada com Nice e que terminou a frase com “confio em você, você é meu melhor amigo” de uma forma manipuladora. Julgava necessário, antes que as coisas saíssem do controle. Nice não levava ninguém a sério e com Daniel não seria diferente, se eles ficassem juntos, certamente perderia o melhor — e único — amigo na primeira briga de namoro dos dois.

Não podia se dar ao luxo de perder o melhor amigo bem quando tinha perdido a namorada. Aliás, se não fosse por Daniel, Bento certamente passaria as férias de verão trancado em casa se escondendo no fundo do poço.

Virou os olhos para o amigo e a irmã, que andavam juntos debaixo do pequeno guarda-chuva preto e teve a impressão que a conversa não tinha adiantado de nada! Não conseguia se resolver se naquele momento tinha mais ciúmes do amigo ou da irmã.

— Ei, Daniel, quando vou conhecer a sua namorada misteriosa? — Bento perguntou, chamando atenção do amigo e inserindo um assunto corta clima. A história era que Daniel arrumou uma namorada nas férias e saía sempre com ela, se ausentando vez ou outra e deixando Bento sozinho batendo papo na internet.

— Hoje, talvez…. Ela é nova na escola.

— Uau, ela mudou de escola por você? Isso sim deve ser sério!

— Sério? — Nice levou um susto. — É sério?

— Não, não é sério…. — Daniel respondeu meio sem jeito. — Ela mudou de escola por razões pessoais…. e a menina que você conheceu na Internet? — retrucou para Bento na mesma moeda, tentando mudar de assunto, pois não queria falar de seu relacionamento nem com Bento e nem com Nice.

— Estávamos conversando ontem no MSN. — Bento revelou. — Ela quer terminar com o namorado e ficar comigo, mas não sei….

— Ih, meninas que fazem isso são as mais complicadas, Gu! — Nice avisou, com um risinho debochado. — Você só arruma confusão!

— Ela é linda! — Bento suspirou. — Tem um olhar muito encantador….! Quando eu a vi pela primeira vez, não sei, me deu um negócio estranho, fiquei muito nervoso.

— Você está apaixonado? — Nice perguntou, olhando-o por cima do ombro, com uma sobrancelha erguida em surpresa.

— Acho que estou! — Bento revelou.

— Finalmente! — Daniel comemorou e fechou a mão no ar com um gesto de vitória. — Estava demorando muito para você se esquecer da Lucinda! Onde a menina nova estuda?

— Não perguntei….

— E onde mora? — Nice quem quis saber.

— Não perguntei…. Mas não é longe do shopping.

— Você ao menos tem o telefone celular dela? — Nice desdenhou. Bento era muito distraído! Como se apaixonava por alguém que mal conhecia?

— Tenho o MSN!

— Já é alguma coisa, para quem estava todo pra baixo e na fossa. Não é? — Daniel via sempre o lado positivo de tudo.

— Mas fala mais da sua namorada, quero saber tudo da menina que fisgou seu coração! Afinal pra você ter pedido ela em namoro….

— Você a pediu em namoro? — Nice perguntou curiosa interrompendo o irmão.

— Não…. Ela quem pediu. — Daniel contou ao mesmo tempo em que bateu os ombros.

— Ah é?

— Mal posso esperar para conhecer a sua namorada nova. — Bento estava entusiasmado com a ideia de Daniel arrumar uma namorada, pois isso significava que ele estava longe de Nice. — Já estava mais do que na hora de você arrumar alguém mais sério!

— Já disse que não é sério! — Daniel protestou convicto. Olhou para Nice, como quem busca um apoio, mas Nice deu de ombros, sem resposta para dar. Virou-se para Bento por fim, e devido ao silêncio, mudou de assunto novamente para a tal garota que Bento conhecera sábado. — E por que a menina do MSN quer terminar o namoro?

— Ela me contou que o cara que ela namora não dá muita atenção para ela…. Que se sente sozinha.

— Cuidado que essa é carente. — Nice deu mais uma vez a opinião que apontava os defeitos.

— Para o Bento carente é bom, ele é o maior grude! — Daniel debochou rindo.

— Quem te disse isso? — Bento não gostou do comentário, enfiou uma mão no bolso da calça e olhou para seus pés.

— Lucinda! — Nice e Daniel responderam juntos e depois caíram na risada.

— Não achei graça! — protestou, mas por fim, riu com os amigos.