Asan Quo, Guardiões Reais: Tertúlia
Asan Quo, Guardiões Reais: Tertúlia
Por: Mitch Prieto
Uma Mensagem do Além

Não consegui esquecer...

Era final do dia e o sol tinha praticamente se guardado. As coisas já estavam carregadas no caminhão quando aquele velho de cabelos grisalhos, com uma expressão carrancuda nos disse:

– Vamos embora!­­

Danton e eu subimos no caminhão e partimos imediatamente. Não me recordo para onde nem porque, mas estávamos em um caminhão carregado de coisas e móveis que mobiliariam facilmente uma casa. Aquele caminhão velho, quase que aos pedaços, balançava demais e nos dava a impressão de que poderia desmontar a qualquer momento.

Quem era aquele velho? Não fazíamos ideia, mas estávamos seguindo com ele.

Poucas quadras adiante tentaram roubar alguns objetos pequenos e mal encaixados no caminhão, uma tentativa malsucedida por dois rapazes de patins, que perceberam a oportunidade de furto no momento em que o caminhão fazia uma conversão à esquerda. Então, de repente, aquele velho começou a acelerar o caminhão com uma pressa perturbadora. Assustados, e temendo que o caminhão tombasse numa daquelas curvas acentuadas que fazia, gritei:

­­­­­­­–­ ­Vá devagar! Você vai tombar esse caminhão!

Ele não me deu ouvidos... Aquele caminhão velho balançava como se fosse tombar e, na segunda tentativa de alertá-lo nem consegui completar a frase... Quando percebemos, já estávamos voando para fora daquele caminhão tenebroso.

Por sorte ninguém se machucou. As coisas estavam bem amarradas ao caminhão, então pouco se perdera no acidente. Mas, um fato curioso me chamou a atenção, foi ver o motorista entrando no mercado bem em frente ao acidente, como se nada houvesse acontecido. Ele entrou e foi direto para a fila do último caixa tentando aparentar uma ação rotineira, e pagou por uma compara. Sua atitude me fez pensar, "ele não estava ali simplesmente fazendo uma mudança". Era como se estivesse nos vigiando para alguém... Quem era ele?!

A cena muda completamente, e nesse momento me pego subindo escadas largas e de poucos degraus. A construção aparentava ser um barracão com algumas divisórias que o tornavam uma casa improvisada, dividindo quarto, sala e cozinha.

Ao subir aqueles poucos e largos degraus, em um deles, notei que a força que empregava na perna para que meu pé tocasse o chão era superior ao normal. Aquilo me chamou a atenção, fiquei perplexo. Repeti o movimento de subir e descer o mesmo degrau fazendo testes com os pés, até pulei com os dois pés ao mesmo tempo para constatar que os segundos que levava a tocar o chão novamente eram maiores do que nos demais degraus. Era como se naquele ponto específico, naquele exato degrau, minha massa corporal se tornasse mais leve, como se a gravidade fosse diferente para aquele ponto do planeta.

Ao reconhecer esse fenômeno, corri escada acima, com a intenção de contar o que havia descoberto aos outros.

Ao terminar de subir o último degrau, avistei como era feita a divisão, e o primeiro cômodo que vi foi o quarto. A televisão estava ligada e notei Danton, Naara e Jena próximos a ela. Dos irmãos biológicos, eles eram os mais jovens. A televisão estava no espaço entre dois beliches em um quarto grande demais para poucas coisas. O chão cinza e limpo imitava um cimento lustrado, em contraste com as paredes amarelo claras de cinco metros de altura que sustentavam as telhas finas de zinco. Quando comecei a falar, uma quarta pessoa surge de um beliche, assustando-me com sua presença inesperada. Era a detestável Sandra... Nunca nos demos bem. Ela era minha prima há vinte e seis anos. Sua mãe era irmã da minha, e até onde me lembro, era envolvida com coisas obscuras, de má índole e um caráter questionável. Acanhei-me por um momento, pois minha expressão facial denotava todo o descontentamento com sua presença. Senti-me bem por conter-me em relação aos meus sentimentos naquele momento.

Retomando a conversa, observei que aquele forte fisiculturista que me ajudara a encher o velho caminhão, estava com aparência desgastada, exausta e desnutrida em comparação ao jovem que estivera comigo anteriormente. Quando questionei o porquê daquela aparência, respondeu-me automaticamente:

– Estou mais forte do que nunca! Sinto-me ótimo!

Senti profunda tristeza, pois não era a imagem que meus olhos viam.

Não demorei a contar o que havia descoberto, e é claro, eles não acreditaram em mim. Eu mesmo não teria acreditado se não tivesse acontecido comigo. Aquela não era a minha casa, e eles moravam ali no máximo há uns quinze dias pelo que percebi, por isso não sabiam dizer a quanto tempo aquele fenômeno estava acontecendo. Tão logo terminei de me expressar descrevendo a descoberta, notei ao tropeçar para trás que havia outro foco de gravidade diferenciada! Começamos a brincar naquele pequeno espaço de metro quadrado onde a gravidade era diferente. Tentei ficar de ponta cabeça, e para meu espanto a gravidade começou a inverter, arrastando-me para cima de cabeça para baixo em direção ao teto de zinco. Danton segurou-me pela mão e me tirou daquele pedaço de chão estranho. Suspirei em sinal de alivio, pois a situação parecia perigosa. Entreolhamo-nos ouvindo grandes gotas de água caindo no telhado.

– É chuva? – questionei.

– Sim, é chuva! – respondeu Jena prontamente.

Na intenção de refrescar-me, pois o clima estava seco e quente, desci as escadas com pressa. Ao sair do prédio deparei-me com construções de arquitetura europeia, cujos designs eram belos e arcaicos. Avistei frondosas e floridas árvores em uma praça que ficava uma quadra à minha direita, e por ela passava uma mulher com aparência estranha, vestindo roupas estranhas, sujas e velhas, caminhando reprimida e cabisbaixa. Observando aquela estranha mulher próxima às árvores, vejo passar por mim um senhor, com as mesmas características, porém, manco da perna esquerda. Suas vestimentas apresentavam tonalidade cinza, gastas e rasgadas.

Naquele exato momento percebi que o dia se tornara um tanto sombrio. O sol já estava sendo coberto pelas nuvens carregadas de chuva, acrescentando sombras adicionais àquele dia atípico. Dei oito passos à frente e avistei a cinco metros, um homem com aparentemente seus trinta, encostado ao poste apoiando um de seus pés, barba mediana, cabelos escuros e lisos que cobriam as orelhas, calça jeans preta, correntes prata penduradas pelos bolsos e camiseta preta com estampa branca de almas penadas, como que lutando para alcançar algo, ou simplesmente sair de lá.

– Que cara estranho! – disse ao notar sua camiseta – acho melhor voltar para dentro.

Tão logo fiz o giro de cento e oitenta graus para retornar, me deparei com o mesmo personagem estranho, desta vez, encostado ao poste entre eu e a entrada do prédio, onde pretendia voltar. Fiquei perplexo! Como ele teria se movimentado mais rápido do que meus olhos pudessem ver? Olhei para a camiseta e reconheci que era o mesmo sujeito estranho que vira do outro lado da rua. Olhei atentamente para seu rosto e notei que abaixo de seus olhos havia outros dois menores, que não percebi devido à distância. Fiquei assustado!

– Que diabos é isso?! – expressei ao notar aquela bizarrice.

Mal dei o primeiro passo à esquerda para contornar aquele indivíduo e, para meu assombro, ele surgiu de repente ao meu lado antes mesmo que eu pudesse piscar meus olhos, segurou-me no braço direito de maneira firme e disse:

– ALGUÉM NO REINO DOS MORTOS QUER FALAR COM VOCÊ.

Acordei...

Desesperado, com o coração quase saindo pela boca, suando frio e com a nítida impressão de que alguém me observava enquanto dormia. Logo ouvi gritos de Kyra, minha esquilo da Mongólia, e como aquela atitude dela não era normal, fui verificar se não havia algum gato tentando entrar em sua gaiola. Encontrei-a deitada sem nenhum vestígio de gatos, e Fred, seu companheiro, dormia calmamente. Voltei para o quarto e deitei-me novamente. Era cinco da madrugada de uma segunda-feira de dezembro de dois mil e quatorze.

Que sonho foi esse? Pareceu muito real para mim.

Faltava apenas uma hora para que o sol nascesse e não consegui dormir novamente.

Peguei o celular e Solanis estava online em um aplicativo de conversas instantâneas. Relatei-lhe meu sonho, sem entender o que aquilo poderia significar, ou se deveria significar algo. Rindo daquela história louca vinda de mim, disse:

– Você tem assistido muitos seriados de mortos vivos! São coisas da sua mente.

Não para mim. Relevei suas palavras, pois o que sonhei, ou melhor, o que vi, foi muito real para confundir.

No dia seguinte, ao alimentar meus pequenos, vi que havia mais cinco integrantes dentro da gaiola. Sim! Kyra havia dado à luz a cinco novos esquilinhos da Mongólia. Tentei achar ligação do sonho com o nascimento dos bichinhos, mas nada fazia sentido.

Segui minha rotina diária normalmente. Nada anormal me rodeava, a não ser aquela estranha empresa onde trabalho. Aquele sim era um local improvisado, com divisórias por todos os lados separando salas de trabalho. Um local negativo não apenas pela aparência, mas também pelo ambiente sinistro. Saía todos os dias pelas portas daquele prédio com o desejo de não ter que retornar... Havia apenas uma coisa que ainda me prendia àquele lugar: o salário.

Uma empresa semifalida, com produto barato e de pouca qualidade. Sinceramente, nunca havia trabalhado numa espelunca como aquela. Era minha primeira vez.

Ao meio dia contei a Anne o que havia sonhado, e com o mesmo ar de brincadeira, entre risos e deboches, com palavras idênticas as de Solanis, disse que eu "estava assistindo muitos seriados de mortos vivos".

Anne era minha ex-esposa. Separamo-nos há pouco mais de um ano, mas nossa comunicação sempre foi frequente pelo fato de termos uma linda filha. Ela nunca gostara dessas coisas de ficção ou de mortos vivos, que eram a minha paixão.

A tarde passou tão rápido que quando me dei conta já era quase oito horas da noite. Aquela empresa sempre cheia de problemas e atrasos nos prazos de entrega. Os clientes viviam abrindo reclamações de praticamente todos os serviços prestados, sem mencionar os critérios de organização, que sempre trouxeram problemas por dificultar qualquer acesso ao departamento de atendimento ao cliente. Fui para casa andando, pois residia a uns três quilômetros do local de trabalho. Sempre gostei de caminhar, pois além de acalmar, ajuda a pensar com ponderação, principalmente nos assuntos mais importantes que constantemente me incomodavam. A caminhada de quarenta minutos às vezes parecia durar mais de uma hora, devido ao peso da bolsa com livros e o laptop que carregava, juntamente com os pensamentos que fluíam como formigas desesperadas saindo de um formigueiro.

Em casa.

Aquela casa alugada, com mais espaço do que eu realmente precisava para descansar. Sempre fui sozinho depois do divórcio, pois achava que uma hora ou outra me decepcionaria novamente. Sempre tive certa dificuldade na área do amor. Eu só precisava de uma coisa, tempo. E acredite meu amigo, tinha de sobra. Tinha tempo para cuidar das tarefas rotineiras, para cuidar dos meus animais de estimação, que me faziam mais companhia do que imaginei que fariam. O tempo foi primordial para reconhecer muitas coisas sobre o mundo, e principalmente sobre mim mesmo. Não vivi sempre dessa forma, não, tinha uma vida diferente. Trabalhava mais do que as forças permitiam, gastava dinheiro indevidamente e não sobrava tempo para quase nada. Com as poucas horas livres que conseguia, me reunia com membros da comunidade para ajudar a buscar soluções aos problemas simples e rotineiros, ou utilizava algumas horas nos filmes e jogos eletrônicos, que me transportavam para outro mundo com a ficção e fantasia. Anne nunca gostou daquela cidade do interior. Não havia nada mais do que fábricas de confecções e reservas florestais naquele lugar. Após alguns anos ela já não fazia questão de estar junto, e eu também não. Nossa relação desgastada pelos conflitos diários tornou-se tão somente um compromisso forçado pela formalização civil. E isso explica porque tudo acabou.

Tempo... Eu não tinha tempo.

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