Minha cabeça latejava como se um punhal estivesse atravessando meu cérebro, os gritos dos cavaleiros treinando ao fundo pareciam distantes quando uma pontada cruel vinha e me deixava tonta. Sam era só suspiros ao meu lado admirando os rapazes que à àquela altura já estavam sem camisa e cobertos de suor, o calor naquele dia em particular estava insuportável, choveria em breve eu tinha certeza, apesar do céu claro e sem nuvens aquele clima abafado só podia significar uma coisa: uma tempestade muito feia estava chegando.
Mas não era apenas o clima que me dizia isso, eu podia sentir que algo se aproximava, sorrateiro e agourento, os sonhos que eu havia tendo ultimamente eram mau presságio, o arrepio que subia pela minha espinha vez ou outra também. Sam sabia que eu andava preocupada e tentava ao máximo me distrair, nesse dia fora o treinamento externo, no dia anterior o passeio para buscar ervas medicinais na floresta, a semana toda uma ocupação diferente. No fim isso também era para distraí-la da ansiedade porque ela sabia que minhas sensações não mentiam, para o bem ou para o mal.
_ Estão fazendo apostas sobre quem o Fin vai levar no baile do solstício – Sam disse depois do que pareceu um longo silêncio, eu apreciava a forma como ela puxava assuntos dos mais variados quando queria criar alguma distração – eu apostei cinquenta moedas que ele convida Kiera Kalli.
_ Ele não parece o tipo que gosta de sair com megeras. – Pensar em Kiera me causava náuseas, não apenas pelo jeito valentona passiva agressiva que ela ostentava com orgulho como um colar de diamantes, mas porque eu era uma das poucas pessoas que conhecia sua personalidade perversa e calculista. Ela não era apenas uma garota mimada e vazia, o que havia por baixo era ainda pior.
_ A questão é que ele precisa de contatos no alto escalão da corte, é o ano de movimentações políticas no conselho, o rei vai decidir quem entra para a guarda, quem vai sair, e haverão votações de quem vai permanecer na mesa. É a chance dele de ser indicado para fazer parte da guarda real.
O que ela disse era verdade, o pai de Kiera era membro permanente do conselho do rei, haviam os permanentes e os que eram votados a cada dez anos, quando o rei gostava de algum membro em particular ele podia decidir estender o tempo de cargo ou tornar ele permanente na corte. Ele era um homem bastante influente no reino, começara como comerciante e fez grande fortuna, possuía uma lábia boa o suficiente para leva-lo onde quisesse e em poucos anos conseguiu chamar a atenção das pessoas certas, está no cargo há uns quarenta anos. Então qualquer um que impressione sua filha tem grandes chances de receber boas indicações para bons cargos dentro do reino e até mesmo no palácio.
_ Acho que isso mostraria bastante sobre o tipo de pessoa que ele é, já que ele nunca demonstrou interesse algum por ela antes mesmo com as investidas nada sutis dela. – Percebi o tom decepcionado na voz de Sam ao dizer isso. Acho que ela era a única que pensava que disfarçava bem sua pequena paixão por Finrod Woods.
_ Eu acho que se ele tivesse esse tipo de planos ele teria se aproximado dela como a maioria antes, ela pode ser obcecada por ele mas também é muito orgulhosa, o interesse repentino deixaria muito óbvio as intenções. Me surpreende um pouco você pensar dessa forma sobre ele achei que você gostasse dele.
_ Eu gosto, acho que só estou com ciúmes porque ele com certeza não vai me convidar. E francamente amiga, como uma pessoa que cresceu na corte eu sei bem o que a vontade de ser alguém importante pode fazer em algumas pessoas.
Sam nunca contou a ninguém quem ela realmente era. A princesa herdeira de Avillar, reino vizinho ao nosso, um dos mais fortes em exércitos do continente temido até pelo nosso rei, que não temia nada. Eu tive muita sorte em conhecer Samantha Alicintte e tenho muita sorte de tê-la como amiga. Não pela sua influência política, ou por ela ter me nomeado sua futura Dama Real, mas porque ela era a pessoa mais justa, leal e decente que eu conheci. Ela podia ser cruel na mesma medida em que era bondosa e gentil, sempre estava pronta para ajudar um amigo, mas qualquer um que atravessasse seu caminho com más intenções veria seu pior lado. Eu adorava isso nela. Ela era quem ela era e não se envergonhava disso.
_ Ele é tolo se não vê a mulher linda e inteligente que você é Sam, eu entendo o porquê de você não revelar quem é, o medo de verem a coroa e não a Samantha e a Samantha merece ser vista.
Sam segurou minha mão e sorriu, eu vi seus lindos olhos castanhos ficarem levemente marejados, havia mais do que um rapaz a deixando mal, com a formatura se aproximando ela logo teria que assumir seus deveres de herdeira real e então ela perderia a pouca liberdade que conseguiu nesses anos no instituto. Eu seria a única coisa que ela levaria daqui além das lembranças.
Eu podia entender, em parte, eu não fui criada cheia de regras rígidas sobre como me comportar e como ser rainha, apesar de termos o mesmo estudo no Instituto, as mesmas matérias, os mesmos treinamentos de magia e combate, ela havia crescido em uma gaiola dourada e só pôde fazer amigos aqui, sem o peso do seu nome e título.
A minha gaiola era esse Instituto. E apesar do peso do nome de minha mãe, nada se comparava ao peso de ser princesa herdeira de um reino. Eu sinceramente esperava poder apoiá-la como Dama Real e protege-la com a minha vida em Avillar, ela não tinha ideia de como era um alívio finalmente poder sair desses muros e nunca mais ter que retornar, esse foi seu segundo maior presente para mim depois de sua amizade.
Ela continuava a observar os futuros cavaleiros treinando, seus olhos sempre no belo Fin, ele era um guerreiro exemplar, derrubava seus oponentes sem grandes dificuldades, com a espada, a lança, os punhos, o que quer que ele usasse para lutar ele se saia muito bem, francamente ele não precisava de Kiera para ascender na corte, suas habilidades foram notadas há muito tempo e ele teria a melhor recomendação da reitora.
A minha dor de cabeça havia diminuído o suficiente, me levantei e comecei a descer as arquibancadas com Sam, já estava quase na hora da aula de magia ancestral e o professor era bastante rigoroso com horários. Enquanto caminhávamos pelo corredor da ala sul em direção as salas de aula, uma sensação ruim me acertou com força e logo eu percebi porquê.
O professor de estratégias de batalha vinha caminhando com duas alunas em seus flancos conversando animadamente. Ninguém fazia ideia de como esse homem era odioso, diferente de Keira que não escondia muito a personalidade amarga, esse homem por outro lado esbanjava sorrisos e simpatias para todos, exceto para quem sabia de sua sujeira. E infelizmente eu era uma dessas pessoas.
Senti meu corpo enrijecer a medida que ele se aproximava, antes que eu paralisasse puxei Sam para uma porta que estava próxima à nós do lado esquerdo e entramos, ela sem entender nada.
_ Eeei o que é isso... Ficou doida? Por que me puxou pra esse buraco de repente? _ Ela protestou mas eu a interrompi antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa.
_ Shhhhii – Eu disse rapidamente e coloquei uma mão sobre a boca de Sam. - Desculpe pensei ter visto uma coisa. - Tentei disfarçar, não queria ter que explicar o por quê de eu estar fugindo de um professor.
Havia barulho de conversa na sala, e apesar de eu conhecer esse castelo como a palma das minhas mãos e poder jurar que alí era um armário, la dentro não parecia em nada como um. O lugar estava pouco iluminado por uma luz mágica fraca, não fomos vistas já que havia um pequeno corredor entre nós e a sala de onde o som de vozes vinha, ficamos ali paradas naquele pequeno hall por alguns segundos até termos certeza de que não tínhamos sido ouvidas. A porta da sala estava entreaberta e logo percebi que haviam duas pessoas lá e que uma das vozes eu reconhecia, me aproximei para espiar mas Sam me deteve, antes que ela me levasse para fora algo me chamou atenção.
_ .. os poderes dela estão começando a retornar, as dores de cabeça os sonhos proféticos, o selo está expirando e a única pessoa que poderia ajudar a essa altura deve estar morta. _ Era a voz de Lenora, a reitora do instituto e ... minha mãe, ou o mais próximo de uma mãe pra mim. Mas quem era a outra pessoa com ela?
_ Eu sei Nora, nosso tempo está se esgotando, estão havendo ... rumores, e talvez seja hora de falar pra ela sobre o que ela possivelmente carrega e enviá-la antes da formatura.
_ Nos resta saber se Samantha será capaz de fazer o necessário quando Aisling precisar.
Sam apertou minha mão, ela parecia nervosa, provavelmente por ter sido citada. Mas o que aquilo queria dizer? Antes que eu pudesse pensar mais elas continuaram.
_ Ouvi que há uma bruxa muito antiga nas montanhas de Cair da Noite que poderia saber sobre os poderes dela, e confirmar se... você sabe.. - a outra mulher continuou- meus investigadores demoraram anos para achar qualquer coisa que pudesse ajudar de fato, talvez essa seja nossa única esperança. – Sua voz ficou mais baixa ao falar essa última frase, como se o medo fosse engolindo sua voz aos poucos. Minha cabeça estava girando e a dor latente começava a retornar.
_ Talvez haja uma outra coisa Meissa, antes de queimar os diários de Melian eu achei uma parte onde ela falava de sua família, pelo que eu entendi sua família era do antigo Império de Naessika depois das muralhas.
Melian era minha mãe biológica. Ela morreu quando eu nasci e quase não falávamos dela, tudo o que eu sabia era que ela era uma maga muito respeitada no Instituto, e dona de uma beleza e talento invejáveis. Lenora era sua melhor amiga e minha madrinha, ela prometeu à minha mãe que cuidaria de mim e por isso cresci no Instituto.
_ Como? Não há nada lá Nora, aquilo é um buraco amaldiçoado!
_ Eu duvido muito que não tenha nada lá, já ouviu falar de alguém que atravessou as muralhas voltar? Nem mesmo um corpo no caminho foi achado.
_ Exaxtamente! O seis reinos vigiam aquela muralha dia e noite, se alguém tivesse atravessado todos teriam descoberto.
Eu já tinha ouvido falar de Naessika ou melhor, do Império dos Mortos, ninguém sabia muito a não ser as lendas espalhadas em noites de fogueira ou o pouco que os livros de história do continente falavam. Apenas sabíamos que um único homem tinha conseguido fugir, ele era um comerciante que viu a movimentação estranha na cidade das montanhas antes de entrar no vale, ele relatou que a cidade havia sido atacada por criaturas misteriosas que ele não sabia nomear e que fugiu antes que o que quer que fosse resolvesse atacar os arredores. Isso já fazia mais de um século, e foi assim que Naessika, o maior império do mundo tinha caído em desgraça e desaparecido atrás de uma barreira de magia conhecida por muralha, que de acordo com a lenda popular foi criada para manter o que estava lá preso, e que não tinha sobrado ninguém vivo. Ninguém passava das muralhas e se ousasse tentar nunca mais era visto.
Minha mãe morreu jovem, o imperio caiu antes que ela tivesse nascido, se sua família fosse de lá isso teria virado notícia, não tínhamos parentesco com o comerciante já que ele era humano e minha mãe não, além disso ele era famoso e seus descendentes estão vivos ainda.
Eu não conseguia mais ficar lá dentro, precisava sair rápido.
A dor na minha cabeça retornara com força, abri a porta silenciosamente e puxei Sam comigo, disparamos pelo corredor até eu sentir que estava distante o suficiente para respirar. Sam não disse uma palavra durante o caminho, apenas me seguindo cautelosa enquanto saíamos para o jardim dos fundos do castelo.
O que foi aquela conversa estranha sobre mim? Que assuntos Lenora tinha com aquela mulher a meu respeito? Quem era aquela mulher afinal? Sam finalmente quebrou o silêncio.
_ Você está bem? – Tudo estava girando, ela segurou meu braço e me sentou em um dos bancos de pedra.
_ Não sei, acho que eu devia ter falado com elas, mas minha cabeça está doendo tanto que não consigo raciocinar. – Coloquei minhas pernas para cima e abracei meus joelhos fechando os olhos. Eu sentia que estava prestes a explodir.
_ Acho que ela vai falar com você na hora certa, tente não pensar muito sobre isso, nunca vimos Lenora perder o controle sobre nada ela deve saber o que está fazendo.
_ Mas isso é sobre mim Sam! Eu deveria saber, e se for alguma coisa grave? Eu preciso voltar lá e perguntar! – Eu disse exasperada não estava brava com ela mas a situação toda me tirou do controle, senti meus olhos pegando fogo.
Comecei a me levantar para voltar quando olhei para Sam e ela olhou pra mim como se eu tivesse ganhado chifres.
_ O que foi?
_ Ash... seus olhos... _ ela não conseguiu terminar a frase.
_ O que tem meus olhos? – Além do fato de que minha visão parecia ter clareado de alguma forma, reparei que eu estava enxergando muito melhor do que antes. Eu não via de forma nítida coisas que estavam mais distantes de mim, mas agora parecia que eu podia contar até as partículas de poeira. Meu cérebro ficou ainda mais atordoado.
_ Eles... – Ela tentou explicar, mas apenas se levantou e me levou até a água da fonte que estava alguns metros a nossa frente, ela inclinou meu rosto para o reflexo de nós duas, e então eu vi que meus olhos antes castanhos, agora cada um tinha uma cor diferente, a íris do esquerdo estava em um tom de dourado profundo e do direito de um marrom quase preto assustador com apenas uma mancha dourada.
De fato, meus olhos pareciam estar em chamas.
Me afastei assustada da fonte e caí com a bunda no chão, Sam parecia ter se recuperado do choque inicial, ela me levantou e me puxou apressada._ Vamos, você precisa ir para o seu quarto, ninguém pode ver isso Ash, entendeu?_ Por que? – Fiquei ainda mais assustada com o tom preocupado que ela havia dito aquilo. – Para Sam! – Puxei meu braço do seu aperto e paramos perto da entrada dos corredores. Ela segurou meus braços e olhou pra mim séria._ Aisling, as pessoas desse lugar não podem ver seus olhos, vamos para um lugar seguro e eu te explico.Eu nunca havia visto ela agir daquela maneira tão séria, ela era naturalmente mandona, cresceu como uma princesa e sempre teve tudo o que quis, mas nunca tinha usado aquele tom de ordem, não comigo.Encontramos alguns alunos no caminho, mas nenhum reparou em nós, a maioria estava nas salas de aula e conseguimos chegar ao meu quarto no andar onde eu morava com Lenora, Sam trancou a porta quando entramos. Ela então ficou um pouco mais calma e
Lenora me olhou pensativa por dois segundos antes de sair sem dizer nada, Sam e eu nos encaramos confusas mas não levou muito tempo até que Lenora retornasse com dois frascos em suas mãos. Ela parecia cansada, ela sempre parecia, mas naquele dia parecia mais, Lenora me ofereceu os frascos que ela segurava, um pequeno com um liquido azul claro e um maior com um líquido vermelho._ Isso vai te ajudar com as dores de cabeça, - ela disse me passando o liquido vermelho primeiro- beba o frasco todo, e esse aqui - ela disse oferecendo o menor - você pinga uma gota em cada olho, vai fazer com que eles voltem a cor normal. Aquilo foi estranho, ela já tinha exatamente o que eu precisava mesmo sem saber o que tinha acontecido, minha expressão deve ter deixado claro meus pensamentos pois ela continuou. _ Eu sabia que mais cedo ou mais tarde isso aconteceria, era uma questão de tempo até seu selo se desgastar. Eu só não esperava que fosse tão rápido. Ela se sentou em minha cama e olhou para mim
Lenora, Sam e eu combinamos que enquanto a formatura não chegasse nós agiríamos como se nada tivesse normalmente, tomei a poção de líquido vermelho para ajudar com as dores de cabeça que minha mãe me deu na noite anterior e pinguei uma gota da azul em cada olho, que era apenas um glamour para que ninguém visse a cor dos meus olhos. Naquela manhã eu havia acordado bem melhor, finalmente tinha dormido o suficiente e me sentia físicamente normal, mentalmente por outro lado eu estava perturbada. Não prestei atenção à aula de poções o suficiente e acabei explodindo o pequeno caldeirão, poções não eram meu forte então a professora não ficou impressionada, fui derrubada pelo menos três vezes no tatame no treinamento de luta o que já era uma coisa incomum, acabei inventando que estava com dores de cabeça novamente e ele pareceu acreditar e me dispensou mais cedo, saindo do vestiário vejo alguém encostado na parede a minha frente, era Fin, o garoto prodígio, eu o ignorei e passei por ele mas
As nuvens escuras de tempestade rodeavam as montanhas do norte como um mau agouro, o vento frio e forte afugentava os moradores da aldeia que se escondiam dentro de suas casas pequenas, trancando portas e janelas e acendendo lareiras, as mães abraçavam suas crianças fazendo-as ficar em silêncio. Não era estranho as tempestades nas montanhas, mas aquele dia tinha uma aura diferente, todos podiam sentir, humano ou não, tendo magia ou não, havia um aviso no ar de que alguma coisa estava prestes a acontecer. Da torre oeste do palácio, o imperador olhava pela janela as primeiras gotas de chuva e o reflexo de um raio que acabara de cair, ele podia jurar que no piscar da luz nas nuvens asas grandes batiam na direção deles. Mas não podia ser, ele pensou, talvez fosse o nervosismo que havia se instalado nos últimos meses desde a visita ao oráculo de Sohros, aquela visão confusa de sangue e escuridão assombrava seus sonhos todas as noites desde então. Sua esposa a imperatriz e seus dois filhos