Prólogo

“Da claridade, da chuva, há relva saindo da terra”. (2 sam 23:10)

Era um dia de primavera, de um ano que já se vai pelas névoas do tempo. Lá estava eu sentado em uma praça numa grande cidade borbulhante de vida. Deviam ser nove horas da manhã: um dia de sol claro, no qual uma brisa soprava amena espalhando uma vibração gostosa pelo ar; nem calor nem frio, apenas uma inefável sensação de bem estar. Mesmo sentindo as benesses daquele dia lindo, mesmo sentindo a felicidade íntima enquanto zéfiro afagava meu rosto, uma pontinha da minha alma se entristecia por encontrar-me à margem do mercado formal de trabalho. Eu estava desempregado.

Sentado, permaneci em cisma observando a entrada do metrô que, qual enorme fauce escancarada, engolia e vomitava a multidão numa rotina constante. Uma cena repetitiva, impessoal, onde os personagens mudam, mas o quadro não se altera.

Era um dia de semana e os transeuntes caminhavam compenetrados, sérios, atrás de seus afazeres e interesses sem se preocupar com outra coisa senão a ponta de seu próprio nariz.

Multidão é assim: Impessoal. Caso ocorra um fato curioso, uma novidade ou algo que atice sua atenção, então esse grupo, conforme a gravidade agirá emocionalmente esquecendo todos os limites gerados pela educação social. Quase sempre, entretanto, o povo é conduzido por desejos materiais, que é o padrão estereotipado para qualquer ação coletiva.

Engraçado: O ser humano transforma-se radicalmente, com atitudes diferenciadas, quando está na rua. Às vezes uma criatura alegre, comunicativa e sociável na intimidade de seu lar, torna-se taciturna, intolerante ou até mesmo violenta quando exposta em via pública... a reação particular de cada indivíduo é tão imprevisível, quanto é previsível a reação da multidão. É algo parecido com o comportamento dos gases em um recipiente: cada molécula dentro do frasco em que está contido esse gás choca-se caoticamente com outras moléculas ou com as paredes do vaso em que se encontra; mas suas variáveis se alteram, exatamente, como previsto nas Leis físico-químicas dos gases, que regulam o comportamento e os princípios apresentados pelas condições de volume, temperatura ou pressão.

Muito bem, era com esse pensamento que eu me absorvia sem prestar muita atenção a minha volta.  Casualmente olhei para um banco situado à minha frente onde um senhor de cabelos brancos um pouco mais compridos do que a média, olhava fixamente em minha direção. Trajava calça e blusão igualmente brancos. Tinha uma pequena barbicha ou pera no queixo, também branca. Sua fisionomia era jovial e franca, embora a insistência em me olhar me incomodasse. Passei a prestar atenção discretamente, de rabo de olho. Aos poucos fui ficando constrangido. Toda a vez que meu olhar ia à direção do homem me deparava com o olhar fixo dele. Ele continuava a me observar sem qualquer reserva ou disfarce. Era como se quisesse, intencionalmente, chamar a minha atenção!

Eu já sentia um mal estar, um desconforto, pois essa insistência me aborrecia muito. Estava, mesmo, bem chateado, pois supunha que minha intimidade estava sendo devassada servindo de objeto ao olhar daquele indivíduo e, com indisfarçável amuo, retirei-me apressadamente entrando pela boca do metrô.

O acaso me fez pegar a primeira composição que passava e saltar, a esmo, numa das estações da linha. E saindo para a rua segui pela calçada sem destino.

Fui relembrando a condição que torturava minha mente nos últimos tempos: desempregado! Essa palavra atuava no meu cérebro como uma chicotada. Há quase um mês eu perambulava atrás de um emprego, sempre batendo com a cara na porta sem conseguir nada.

Já estava no limite... Sentia-me mal com isso. Em casa, nem podia olhar para a mulher ou os filhos sem que um nó me obstruísse a garganta.

A figura de meu ex-chefe sentado na escrivaninha à minha frente não saía da minha cabeça: eu a enxergava, platonicamente, como a falsidade em si mesma. Um sorriso hipócrita no rosto...  um olhar de piedade que procurava fugir do meu e que não enganava ninguém... e a voz soando estridente, como a de um personagem de desenho animado, a comunicar-me solene:

 — A empresa vai fazer um remanejamento em seu quadro... falta de verba... o país está em crise... você, no momento está fora de nossos planos... lamentamos... daremos uma carta de apresentação... sei que você ajudou muito durante todos esses anos...  bla, bla, bla...

A verdade é que a empresa havia contratado um jovem recém-formado por um salário bem menor que o meu. Eu ensinara todo o trabalho a ele. Durante meses a fio, passei todas as informações importantes... depois de tudo já não era imprescindível, nem necessário. Uma laranja chupada até o bagaço era como me sentia. E agora? Arranjar um emprego com a idade avançada em que me encontrava? Quase sessenta anos...

Entretanto, naquela manhã, acordara com bastante disposição e, apesar dos fardos, sentia-me feliz até o momento em que fora importunado pelo olhar insistente do velho. Caminhei até chegar a uma ampla praça, com bancos em torno de um lago. Algumas carpas gorduchas movimentavam-se através da água, nadando pachorrentas sob o sol daquela manhã primaveril.

Pensei:

“Será que ninguém vem aqui à noite para pescá-las?”

Sentei-me ainda aborrecido com a presença incômoda e importuna do desconhecido que forçara a minha debandada... A praça em que eu me encontrava agora tinha pouco movimento, apenas alguns usuários, sentados como eu, olhando para tudo sem ver nada. Os carros passavam por uma pista de alta velocidade afastada e reinava uma calma gostosa aonde o ruído barulhento da cidade chegava amortecido dando a falsa impressão de silêncio. Algumas pessoas liam jornal, outras alimentavam os pombos... Todos agiam com gestos lentos e medidos sem a agitação frenética da outra praça. Aproveitei para cerrar os olhos e meditar um pouco...

Quando os reabri e olhei para o lado, quase caí desmaiado: no banco contíguo ao meu estava o velho que me importunara!

Como conseguira chegar ali? Um ladrão? Fiquei com medo!

Quando fiz menção de me levantar, ele dirigiu-se a mim:

— Desculpe-me se fui inconveniente, mas não era essa a minha intenção ― disse. ― Gostaria de trocar duas palavras: posso me sentar?

Não respondi nada, tamanha a comoção que se apoderou de mim. Pensei em assalto, sequestro... tudo que poderia advir do fato de estar sendo seguido pela cidade. Ainda bem que não me encontrava com muito dinheiro ou cartões de crédito no bolso. Apenas uns trocados e documentos. Mas mesmo assim meu coração estava aos pulos. Mantive minha expressão facial séria, pouco amistosa e assustada.  Eu sou do tipo que na rua fica desconfiado em qualquer abordagem.

— Meu nome é Ângelo — falou o velho. — Estava te observando de longe... e pousou a mão amistosamente em meu ombro.

De repente senti uma agradável sensação como se uma fraca corrente elétrica percorresse meu corpo. Uma profunda paz tomou conta de mim acalmando meu íntimo tão agitado por aqueles acontecimentos insólitos. Era como se eu ouvisse uma voz vinda do fundo de minha alma que assim dissesse: “Vem, sou teu guia, confia em mim e te conduzirei por todos os caminhos. Não temas”.

Inconscientemente respondi:

— Não estou mais com medo, vá que te acompanharei!

Voltei a mim e percebi que o homem à minha frente estava sorrindo.

— Que aconteceu? — perguntei ao notar seu sorriso. — Parece que perdi momentaneamente a consciência.

— Não aconteceu nada — disse ele. — Apenas tua alma reconheceu a minha! Parece que já somos velhos conhecidos e hoje nos reencontramos nessa existência. Sou a resposta às tuas preces. Sou teu amigo e teu guia.

Falou com uma voz tão suave e ao mesmo tempo tão poderosa que não tive como contestá-lo. Ele sentou-se e convidou-me a ocupar o lugar ao seu lado. E então, calmamente, disse:

— Deves estar estranhando tudo isso, mas não se admire. Pouco a pouco ficarás sabendo o motivo de minha abordagem tão estranha. Era necessário que eu me aproximasse de ti dessa forma. Como te falei, meu nome é Ângelo e, apesar de conhecer teu nome atual, chamar-te-ei José, pois este é o nome com o qual nos conhecemos.

Olhei assustado para o velho. Ele percebeu meu espanto e disse com uma expressão alegre no rosto jovial:

— Não sou nenhuma aparição! Toca meu braço e verá que sou de carne e osso. Nada é sobrenatural, apenas estou numa classe mais adiantada. Tu também és um estudante, como eu, em busca do conhecimento. Preciso contar-te uma história que faz parte das tuas pesquisas. Depois saberás o que fazer com ela.

— Fez uma pequena pausa e continuou:

— Caso te interesse, publique-a... conte para seus filhos, mostre a seus amigos, pregue nos Templos ou, simplesmente, guarde-a...

― Chegou um momento do teu aprendizado e da tua vida mística em que é necessário conhecer essa história que vou transmitir a ti e ela deve ser contada da mesma forma tradicional e ritual pela qual chegou a mim em outras épocas.

— Alguns de nós somos escolhidos como depositários desse conhecimento — afirmou. — Tu, embora não te lembres nesse momento, já passaste por iniciações. Já morreste para a vida mundana e ressuscitastes em outras dimensões de teu próprio pensamento.

Olhou bem dentro dos meus olhos e falou com voz meiga:

— Sentistes que tua alma reconheceu a minha e esta é uma das formas que temos para nos aproximarmos quando revestidos da roupagem humana que caracteriza nossa existência física.

Ângelo fez uma pausa mais longa enquanto pensava. Eu não arriscava nenhum comentário; pelo meu íntimo, milhares de pensamentos contraditórios passavam como uma torrente, um verdadeiro tsunami, varrendo da mente tantas coisas que durante anos ajuntara com esforço.

As perguntas subiam aos montes pela minha garganta, mas morriam na boca antes de serem formuladas. Meu coração disparara no peito dando-me ânsias e secando a língua; as pernas bambeavam...

Notando meu estado Ângelo pousou novamente a mão no meu ombro. Outra vez, como por encanto, todas aquelas sensações negativas foram se dissolvendo para dar lugar a um cálido torpor. Ele, ainda com a mão em meu ombro, disse:

— A partir do primeiro dia da semana vindoura, irás a este endereço — e estendeu-me um cartão que eu peguei mecanicamente. — Por um período de tempo, narrarei um por um os capítulos de uma história extraordinária.

— Repetiremos esta visita quantas vezes forem necessárias, sempre aos domingos. Isso, claro, se tiver tua aquiescência para tal. Nada pode ser forçado. Tua vontade é soberana e tens o livre- arbítrio para decidires. Se resolveres ir, espero-te no domingo às dez horas da manhã. Nem tu, nem tua família, durante o período de tempo necessário para cumprimento da tua tarefa, passareis privações, pois o Pai não dá uma serpente ao filho que pede um peixe.

Senti uma tonteira e a vista se toldou um pouco. Quando recobrei totalmente a consciência, Ângelo tinha sumido sem que eu pudesse adivinhar por onde fora. Um sonho?

Fiquei olhando o cartão na minha mão, para certificar-me de que era real!

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