Capítulo III

“O ódio excita contendas; mas o amor cobre todas as transgressões”. (prov. 10:12)

Após me acalmar, Ângelo pediu-me que fosse até o quarto e que trocasse minhas roupas por uma túnica semelhante à sua, branca, até os tornozelos, que se encontrava dobrada sobre a cama. Somente os hieróglifos e o avental eram diferentes e em cor vermelha. Isso fazia parte do ritual que ele me pedira para realizar. Pediu-me que lavasse as mãos e esfregasse nelas uma espécie de bálsamo, oleoso e perfumado. Depois, pegando um frasco de óleo, ungiu minha cabeça, deixando que o líquido escorresse pelo pescoço e molhasse a parte superior da túnica. Um delicioso perfume invadiu o ambiente e me deixou inebriado. Calcei também sandálias de feltro muito confortáveis e na minha cintura foi amarrada uma corda tosca de sisal. Ângelo deu-me para tomar uma bebida adocicada, cujo sabor eu não consegui identificar, mas que me soube bem, abrandando o torvelinho que me ia ao íntimo. Sentei-me no sofá e ele em pé à minha frente, com as mãos estendidas sobre a minha cabeça e em atitude de prece recitou algumas palavras em uma língua estranha para meus ouvidos, elevou uma prece com muito fervor e devoção e entoou um som vocálico por sete vezes.

E, então, começou a contar:

Livro I – Yosef

“Nem aprendi a sabedoria, nem alcancei o conhecimento dos santos”. (prov 30:3).

Jamil Al Kalil Ibn Jad, beduíno nômade e solitário, que percorria o deserto procurando caravanas perdidas durante as frequentes tempestades de areia, apeou de seu camelo e, sentado no alto de uma duna observava com seus olhos miúdos, acostumados à reverberação excessiva da areia branca, pontos escuros espalhados pelo solo. Para um observador comum, era pouco perceptível o que se via lá em baixo, mas Jamil, por sua experiência de tantos anos, sabia muito bem que aquilo que estava vendo era o resto de uma caravana que não conseguira escapar às intempéries.

O simum é fatal! É o vento abrasador que sopra às vezes do meio-dia, às vezes do setentrião, movimentando as areias do deserto. Estas tempestades fazem vítimas a todo o instante. Com certeza seus integrantes já estavam mortos.

Jamil desceu da duna em direção ao local do desastre. Ia devagar, levando seu camelo a passo e olhava a sua volta tentando ver algum sinal de vida. Um animal quase morto agonizava... mais um estendido... um jumento ali...  dois corpos de homem e um de mulher... todos jaziam estendidos meio recobertos pela areia. Mercadorias semienterradas espalhavam-se ao longo dos panos de tenda esfarrapados pela saraiva do simum. Jamil andava por entre os restos da caravana prestando atenção para ver se descobria algum sinal de vida. Seus olhos treinados se dirigiam a cada amontoado, enquanto os ouvidos atentos tentavam escutar algum som. Calculou que o sinistro se dera durante a tempestade de areia ocorrida há cinco ou seis dias. No deserto, devido à falta de umidade os corpos apodrecem mais lentamente do que o normal, por isso ainda não se viam sinais flagrantes de decomposição, apesar de que um leve mau-cheiro já se exalava naquele sítio. Continuando sua busca o beduíno passava a limpo todos os pontos onde havia a possibilidade de encontrar alguém com vida. Sabia que nestas circunstâncias era difícil, pois o vento do deserto não perdoa aqueles que são pegos desprevenidos sufocando-os sem que haja tempo de recorrer ao abrigo. Jamil se dedicava a ajudar estas caravanas, pois era um profundo conhecedor da geografia local. Praticava esta atividade sem esperar qualquer recompensa, apenas para salvar as vidas humanas, o que para ele constituía-se no bem mais precioso que existe. Entretanto, quando não conseguia encontrar sobreviventes, ficava com alguns despojos que vendia nos mercados das cidades próximas. Jamil não era muito culto, mas os anos de solidão, enfrentando o deserto cheio de mistérios e armadilhas haviam desenvolvido em seu espírito um quê de sabedoria. Ele tinha a ciência do deserto, de como encantar uma serpente; de como colher a erva certa para a cura do corpo, de como “ler” nas areias escaldantes as palavras que a natureza recita diariamente aos mortais alertando-os para que interpretem seus caprichos. Bem poucos, entretanto, conseguem entender as mensagens enviadas.

Mas... o que fora aquilo? Algo se mexera sob os restos de vestes espalhados e meio enterrados. Jamil aproximou-se com cuidado e foi descobrindo uns panos recobertos de areia, retirando-os um a um: havia uma mulher ali e com seu corpo protegia um menino pequeno ainda. A mulher agarrava um odre de água vazio, que levava aos lábios do menino, como se estivesse dando-lhe de beber, num gesto maquinal. Ela estava agonizando quando Jamil tentou reanimá-la. Com o resto de suas forças e os olhos esgazeados, apontou na direção do garoto inconsciente e balbuciou em aramaico:

— Meu filho!

Duas lágrimas escorreram de seu rosto, seus olhos vidraram-se e morreu apertando nas mãos o odre murcho. Ela protegera o menino com seu corpo e a pouca água que conseguira fora para salvá-lo. Pelo físico, Jamil calculou que o garoto teria cinco ou seis anos. Verificou que o pequeno vivia, mas estava inconsciente, desfalecido pela fome e pela sede, provavelmente. Mas mexia-se agitado por um leve tremor, convulsivo e intermitente.

Deitando a cabeça do pequeno em seu colo, foi despejando devagar um filete de água de seu odre naqueles lábios ressequidos. Mas o menino estava muito fraco! A princípio Jamil não conseguiu reanimá-lo, mas continuou a verter a água lentamente para ver se o pequerrucho reagia. Passou-se o tempo e Jamil continuava ali, com a cabeça do menino apoiada em seu colo...

Logo, porém, improvisou uma cama onde ele pudesse estar mais confortável. O beduíno providenciou enterrar os corpos. Acabou de matar o camelo, comprovando que o mesmo não tinha mais salvação. Era uma caravana minúscula e aparentava pobreza. Apenas dois homens, duas mulheres e a criança...

 Mais água, mais um tempo de espera. Jamil foi ao seu próprio camelo e pegou apetrechos para armar rapidamente sua tenda. Feito isso, protegeu o garoto do sol escaldante daquela hora. Acostumado que estava a enfrentar as intempéries do deserto não descurou da segurança prevendo que poderia ocorrer qualquer imprevisto. Improvisou uma espécie de fogão escavado na areia onde pudesse cozinhar um pedaço de carneiro salgado para fazer um caldo. Pegou ainda, entre os destroços da caravana, uns poucos pedaços de madeira para fazer fogo e colocou a água a ferver com uns nacos de carne dentro.

Ficou aguardando e esperando qualquer sinal de vida do pequeno. Finalmente o menino estremeceu e abriu os olhos. A princípio, muito fraco, não teve consciência total do que se passava. Também a febre e a prostração haviam minado suas forças. O beduíno teve dúvidas se conseguiria salvá-lo, tão desidratado estava, entretanto, pouco a pouco foi restabelecendo a consciência, graças a algumas tâmaras que Jamil deixava escorregar para sua boca. O açúcar da fruta seca agiu emprestando um pouco de forças ao doentinho.

Jamil ficou até a noite ministrando, alternadamente, água e tâmaras. Quando o caldo da carne ficou pronto, deu-lhe algumas colheradas e então o pequeno reagiu mexendo-se e gemendo. Levou ainda algum tempo em estado letárgico sem despertar completamente. Quando abriu os olhos, esboçando sinais de consciência, o rosto estranho de Jamil crestado pelo sol do deserto não lhe causou boa impressão. Encolheu-se com expressão de medo nos olhinhos apertados.

— Não tenha medo — disse Jamil na língua dos beduínos do deserto.

E passando a mão pelos cabelos negros do jovenzinho disse:

— Beba mais água, mas cuidado, não beba muito! Qual o seu nome?

O menino não respondeu. Jamil remexeu no embornal e tirou mais tâmaras secas estendendo-as. O pequeno, ainda bem fraco, olhou timidamente para o alimento e relutou por um ou dois minutos. Afinal a fome venceu o medo e ele pegou as tâmaras com avidez.

— Qual o seu nome? – perguntou Jamil novamente.

— Onde está a mamãe? Mamãe, papai! — choramingou.

A voz era fraquinha e causava dó ao beduíno. Ao ver que o pai e a mãe não estavam perto intensificou o choro. Jamil, com medo que o choro tornasse a debilitar o pobrezinho, ia acalmando-o. Mais uma vez perguntou:

— Como é o seu nome?

Desta vez perguntou em aramaico, pois o menino procurara pelos pais nessa língua.

Com o rostinho banhado pelas lágrimas, ele olhou para o beduíno e respondeu num fiozinho de voz:

— Yosef.

Este fato confirmou sua suposição de que a caravana fosse da Palestina, pelo tipo de trajes e roupas espalhados. O beduíno tentou, mas não conseguiu tirar muito mais do menino: Não sabia de onde vinham nem para onde iam. Pelas mercadorias, vinham do Egito e dirigiam-se para a Palestina, mas isso era apenas suposição do árabe. Tudo que o menino dizia é que o pai chamava-se Shimon e a mãe Zila. Mostrava a idade com os dedos da mão espalmada, o que significava cinco anos. Mais do que isto o pequeno não conseguia responder, pois era criança e estava com medo, por isso não lograva concatenar muito bem as ideias. Fraco ainda, Yosef adormeceu e, durante algum tempo, Jamil ficou velando e pensando no que faria com ele.

No dia seguinte tomaram seu desjejum composto de tâmaras, coalhada e um pouco de mel. Yosef estava bem melhor, com mais cor nas faces, mas ainda abatido e fraco. O sol estava apenas clareando o horizonte quando Jamil pegou o menino ao colo e, encarapitando-o no lombo do camelo em uma tendinha improvisada, foi juntando os despojos e fazendo os fardos que pudesse levar. Havia tomado uma decisão: Voltaria à Palestina que era a terra de Yosef. Iniciou a longa viagem, esperando ganhar tempo, pois o percurso era comprido, demorado e perigoso, principalmente para uma criança debilitada. Durante esse tempo, foi puxando conversa com o garoto, procurando obter informações que lhe permitissem conhecer melhor o acontecido.

Viajavam de dia nas horas menos tórridas e descansavam à tardinha aquecidos por uma boa fogueira, já que as noites do deserto, contraditoriamente aos dias, são bastante frias. Nos momentos em que parava para dormir, Jamil assava carne salgada de carneiro e bebia água com mel e um pouco de vinho. Sempre puxava conversa com o menino, que respondia por monossílabos, sem entender o motivo pelo qual se encontrava ali.

Yosef, entretanto, demonstrava ser inteligente e perspicaz.  Aprendeu com facilidade a rotina da viagem e, em alguns momentos, Jamil lobrigou um sorriso iluminando o rostinho do pequeno órfão.

Naqueles quase dois meses em que viajou pelas areias escaldantes do deserto, Jamil foi ensinando a Yosef, ministrando-lhe lições de como reconhecer os sinais daquele ambiente inóspito e cruel. Porém o beduíno não podia ficar com ele. Suas tarefas o obrigavam a estar durante vários meses no deserto, exposto aos perigos.

Jamil conhecia em Berseba um judeu, comerciante esperto, que muitas vezes comprava os espólios das caravanas perdidas por preço baixo, mas sem fazer perguntas. Lá deixaria o garoto... Pelo menos eram da mesma raça e religião.

— Vou levá-lo a Berseba, à casa de Levi — murmurou. —Lá saberão o que fazer com ele.

Levi Ben Shaba era um comerciante semita que vivia na cidade de Berseba, no sul de Israel. Vendia tecidos do Líbano, tapetes da Pérsia, sândalo, mirra, incenso e várias outras especiarias do oriente. Era um judeu baixo, porém forte e atarracado, com uma barbicha avermelhada como o cabelo que, em alguns pontos já estava embranquecendo. Tinha uma esposa chamada Myra e duas filhas, Rebeca e Ana. Vivia triste, pois já ia ficando velho e não conseguira tirar da mulher descendência para sua família.

O negócio de Levi prosperava, mas havia murmúrio na cidade que o comerciante nem sempre ganhava seu dinheiro com a honestidade esperada. Muitos objetos furtados no mercado surgiam, sem que se pudesse provar, nas prateleiras da loja de Levi. Os pequenos gatunos que fugiam pelas vielas da cidade, desapareciam misteriosamente quando passavam pelos muros da confortável morada do judeu. Levi ainda emprestava dinheiro e cobrava juros bem polpudos de seus “clientes”. E quando alguém tinha algum desafeto, recorria a Levi, que se encarregava de “dar um jeito” de acordo com a quantia que tivessem para gastar.

Jamil chegou a Berseba e dirigiu-se à loja do comerciante judeu. Levava o espólio da caravana que conseguira juntar em seu camelo, com intuito de vendê-los a Levi.  Chegando lá mostrou a mercadoria a Levi que analisou peça por peça antes de falar qualquer coisa.

— Todos morreram? Perguntou.

— Salvou-se um menino de cinco anos. Trouxe-o para você criá-lo. Será de bom auxílio para a loja — Respondeu o beduíno.

Levi viu o menino atrás de Jamil e pegou-o pelo braço, examinando-o dos pés à cabeça. Yosef remexeu-se desconfortavelmente, tentando se livrar das mãos do judeu. Levi segurou mais firme e abaixou-se até que a cabeçorra ficasse ao nível do pequeno:

— Aprenda bem — disse. — Aqui sou eu que mando e você obedece. Minha palavra é lei e todos têm que cumpri-la imediatamente.

E virando-se para Jamil:

 — Ficarei com o pequeno para experimentá-lo. Se for rijo para o trabalho e valer à pena, pagarei por ele. Caso contrário ele voltará para ti.

E contando a quantia que devia ao nômade deu por encerrada a conversa, pois como judeu orgulhoso e arrogante, não se misturava com outros povos a quem designava gentios.

Levi levou o menino para Myra e, entregando-o em suas mãos, recomendou:

— Dê comida e ponha algumas roupas nele. Se prestar, adotá-lo-ei, pois estou ficando velho e não pude ter descendência de varão.

Myra nada falou, mas no íntimo seu coração se amargurou contra o pequeno que vinha roubar o afeto que o pai tinha pelas filhas. Era o animal em defesa de sua cria. Agarrou o pequeno pelo braço e arrastou-o para dentro. Yosef chorou, chamando pela mãe e pelo pai, mas o coração de Myra se endureceu e ela, apertando ainda mais o braço da criança, ralhou enfurecida:

— Cala a boca maldito gentio!

E a partir daquele momento Yosef, apesar de ser judeu, passou a receber esse tratamento por parte dela por todo o tempo que viveu ali.

Myra se encarregou de fazer com que a vida de Yosef se transformasse em um tormento. A cada instante e sem nenhum motivo, martirizava o pequeno com impropérios e torturas físicas, morais e mentais. Isso causava prazer à mulher; a qualquer pretexto, ela descarregava em cima dele todas as maldades que uma mente enferma e complexada por não ter dado um varão ao marido seria capaz de ruminar.

À vista disso, também as meninas, que já eram crescidas, Rebeca com doze anos e Ana com quinze, não se faziam de rogadas e aproveitavam para magoar ao máximo, o judeuzinho sob o olhar complacente e satisfeito da mãe. As três mulheres ainda faziam mais: intrigavam o pequeno com Levi, inventando coisas a seu respeito, o que resultava em memoráveis castigos por parte do comerciante.

Yosef chorava muito.  Não entendia por que Deus, que seus pais lhe ensinavam ser o Supremo e Misericordioso Criador, era tão injusto com ele. As lágrimas, entretanto, foram escasseando e, em lugar delas, começou a se instalar uma secura, um amargor que faziam com que aquela criança de repente se transformasse no seu caráter, em um arremedo de adulto melancólico, triste e revoltado.

Tudo era motivo para castigo. O simples fato de não lavar as mãos para a refeição, se traduzia em revolta de Levi, que lhe desferia bastonadas e tapas na orelha.

Levi, desde cedo começou a introduzir Yosef no mundo dos negócios. Mostrava, com voz severa e olhar ameaçador o valor de cada mercadoria e a técnica usada para tirar o maior preço possível de um cliente sem, entretanto, deixar de efetuar a venda a qualquer custo.

Também lhe foram ensinadas outras atividades: Teve que aprender à força a roubar. Levi sustentava uma gangue de pequenos criminosos e deixou Yosef ao cuidado deles para que aprendesse sua nova profissão. Nessa tarefa obrigava os meninos a usarem um capuz comprido sobre a face e roupas andrajosas, que dificultava o reconhecimento.

Inicialmente Yosef acompanhava os mais velhos. Recebia lições de como subtrair uma bolsa de dinheiro sem que o dono percebesse ou pegar objetos nas barracas dos comerciantes sem se deixar apanhar. Depois ele foi obrigado a realizar sozinho toda a operação de furto programada pelo comerciante Levi. Este era, na realidade, um elemento de péssimo caráter e malíssimos hábitos. Obrigar o menino que ainda não completara seis anos a ser um ladrão revoltava até corações bem empedernidos.

Esse fato, para a formação educacional de Yosef era repelente. Sua natureza não condizia com tais práticas e o menino rebelava-se, cada vez mais contra os hábitos maldosos. Isso fazia com que, na maioria de suas incursões voltasse de mãos vazias, o que lhe custava muitas bastonadas e tapas na orelha, para o regozijo de Myra e suas filhas. Yosef ia, então para seu catre e, enrodilhando-se na cama de palha grosseira, chorava lembrando-se dos dias felizes junto à sua mãezinha.

O tempo foi passando e Yosef crescendo naquele ambiente nocivo. Entretanto a natureza do judeuzinho era boa... Apesar de realizar vários delitos, obrigado pela voracidade de Levi, Yosef não conseguia ter no coração maldade ou instintos perversos que desabonassem seu caráter mais íntimo. Ignorante, pois Levi não deixava que o jovem estudasse, e nem participasse de qualquer orientação religiosa, foi Yosef crescendo, atravessando o tempo naquela atmosfera cruel.

Com os anos, já não ligava para os tapas e maus tratos de Levi e de Myra recebendo estoicamente o castigo que lhe era ministrado todos os dias. Isto enfurecia ainda mais seus pais adotivos que despejavam sua ira no jovem batendo, cada vez com mais força e durante mais tempo. O resultado disso eram cicatrizes e machucaduras por todo o corpo.

Uma ocasião Levi trouxe à casa um cordeiro. Entregou-o a Myra com recomendações especiais, dizendo que era para a Páscoa. Myra levou-o para um cercadinho no fundo da casa onde se guardava outros animais. Yosef logo que o viu se afeiçoou ao borrego e, nos momentos em que fugia do contato com a família, ou seja, quando não se lembravam dele, ia correndo para junto do pequeno animal e ali brincava. O cordeirinho ficava alegre quando o menino chegava, pois Yosef representava carinho e algumas verduras surrupiadas no mercado para satisfazer seu apetite. Batizou o bichinho de Manés e conversava com o cordeiro como se ele fosse uma pessoa. Ninguém sequer supunha dessa amizade surgida entre o menino e o cordeiro pascal.

— Sabes Manés, quando eu crescer vou ter uma casa e te trarei para morar comigo — dizia ao carneirinho.

E aí faziam planos de uma vida melhor, sem sofrimento e sem maldade. Yosef sonhava com o pai sempre pronto a fazer-lhe um afago na cabecinha assim como ele fazia a Manés. E com a mãe, sempre solícita e carinhosa, com seus beijos quentes e reconfortantes. E abraçado ao carneirinho chorava as lágrimas de saudade de um tempo feliz que ia se apagando da sua lembrança.

Yosef não sabia o que era a Páscoa. A família nunca o chamara para comemorar a festa do Pacto de Moisés, a maior entre os judeus. Um dia, quando ele voltou para casa não viu mais Manés... o cercadinho estava vazio... procurou por todos os cômodos, mas não o encontrou. Escutou barulho vindo dos aposentos do jantar; foi até a porta na ponta dos pés e de longe viu a festa em volta da tigela fumegante onde, provavelmente, Manés era servido. Sentiu uma tonteira e grande náusea, correu para o ar frio e ali descarregou seu estômago embrulhado. Aquela noite chorou muito. Por sorte não lhe trouxeram nenhum pedaço, pois não conseguiria comer e, se percebessem seu asco seriam capazes de obrigá-lo a comer só por pura diversão e maldade.

Este episódio marcou o garoto que foi, cada vez mais se escondendo em seus próprios sentimentos, calado e sozinho, de forma a não mostrar em nenhum momento sua natureza íntima. E por esse motivo sofria muito mais castigos e sentia crescer a intolerância com ele por parte daquela família. Quando percebiam que não gostava de uma coisa, faziam-no praticá-la apenas por maldade. O ato de roubar no mercado, por exemplo, faziam questão de mandá-lo e quando voltava de mãos vazias cobriam-no de pancadas e impropérios que ele recebia sem verter uma lágrima sequer.

Certa vez mandaram-no à cozinha pegar uma terrina de caldo quente. Quando chegou à sala do jantar, a menina Rebeca deixou, propositadamente, um dos pés estirado a sua frente fazendo o garoto tropeçar e espatifar no chão a tigela fumegante. Alguns espirros do líquido quente salpicaram a perna de Rebeca que abriu logo um berreiro exagerado. Imediatamente Levi saltou sobre o menino e arremessando-o contra a parede, pegou de um chicote e açoitou-o com ódio e crueldade. Yosef aguentou o choro enquanto pode, mas a dor era tanta que não suportou e suplicou que o deixassem e não mais lhe batessem. E então Myra que apenas assistia a cena, com medo que o marido se condoesse do pobrezinho, retirou-lhe das mãos o azorrague e continuou o castigo, e com os lábios esgarçados em um sorriso diabólico e cruel, gritava:

 — Toma filho de Belial! Quis matar minha filha com a sopa quente? Agora recebe o castigo que mereces.  

E o azorrague descia sem piedade.

Afinal, Levi enojado do sangue escorrendo abundante das feridas do menino, afastou Myra com um safanão e deixou-a em um canto espumando entre estertores convulsivos. E pegando Yosef pela mão, arrastou-o à cozinha onde despejou vinagre sobre a carne viva de suas feridas. O garoto urrou com o ácido sobre seu corpo. Levi então com um último tapa na orelha despediu-o para seus aposentos onde ele, sofrendo as dores de seu martírio enrodilhou-se na enxerga e passou o resto da noite soluçando suas penas.

Yosef levou quase dois meses para se recuperar. Esteve entre a vida e a morte e se não fosse a boa vontade de uma velha criada que pensou suas feridas e fez os curativos com bálsamo e unguento não teria resistido a este episódio. Ele estava, então, com oito anos. Na casa ninguém se preocupou com o estado do menino e Levi apenas perguntava à serviçal se Yosef já tinha morrido ou se ainda estava vivo.

Assim foi-se passando o tempo e a vidinha de Yosef triste e sem perspectiva. Mas o menino mantinha a esperança de um dia sair daquela casa onde nunca recebera um gesto, uma palavra sequer que mostrasse carinho ou bondade.

Yosef já estava com nove anos quando Levi o chamou e disse:

— Hoje sairás para o mercado e se não trouxeres algo de bom valor para mim, será a última vez que pisas nesta casa. Estou cansado de sustentar tua inutilidade. A maioria das vezes tu vens de mãos vazias, sem cumprir aquilo que te determino. Minha casa não gosta de ti e se te adotei foi pensando que um dia pudesses me devolver o que empreguei contigo. Já estás há quatro anos aqui e, até agora só tenho apurado desgosto e aborrecimento. Tu não vales o alimento que comes.

Depois continuou resmungando:

— Jamil não voltou mais para que eu te devolvesse. Com certeza morreu naquela sua vida maluca! Portanto vá, e se não voltares com um bom resgate que livre o meu mau humor contra ti, irás embora, não sem antes levar umas boas bastonadas e um punhado de tapas na orelha.

Yosef saiu triste para o mercado. Tinha certeza de que não conseguiria roubar. Encolheu-se sentadinho em um canto, com as costas reclinadas sobre alguns sacos que ali estavam.

 As horas foram passando e ele continuava ali, pensativo, sem se mexer e sem comer nada. Não tinha para onde ir, não tinha alimento e não tinha ânimo.

Não roubaria! Levaria as bastonadas e seria expulso, mas não furtaria mais. Veio chegando a nona hora e o menino continuava ali encolhido sem vontade de voltar, com fome e com sede. Adormeceu.

Quando abriu os olhos a noite já vinha caindo e um velho, de longas barbas brancas e vestes alvas como as neves do Monte Hermon, estava em pé ao seu lado olhando com atenção suas feições.

— Que está fazendo aí, menino?  Perguntou. — Como é teu nome?

—Yosef — respondeu o jovenzinho.

— Onde tu moras?

Yosef não sabia o que responder, mas com uma intuição que venceu sua timidez natural, chorou. E contou suas mágoas para o velho, pois seu coração, sem que soubesse o porquê, se afeiçoara, à primeira vista, àquele homem singular. Abriu seu íntimo e relatou tudo o que acontecera na sua vidinha curta ainda, mas tão cheia de dores. O estranho apiedou-se do menino, que agora chorava aos borbotões, extravasando o pranto reprimido durante anos. Afinal não era mais do que um menino carente e órfão.

— Tenho uma tenda fora dos muros... Venha comigo. És muito jovem para suportar tanto sofrimento! — exclamou comovido o ancião.

Yosef limpou os olhos com as costas da mão e seguindo o velho caminhou com ele para fora da cidade. A noite chegara... Yosef nada enxergava, pois não havia lua ainda. Entretanto seu guia andava com passos firmes e rápidos levando-o pela mão, mostrando uma enorme segurança mesmo com a visão toldada pela intensa escuridão reinante.

Andaram por três quartos de hora e quando a lua surgiu chegaram a uma tenda onde se percebia a silhueta de um jumentinho amarrado em uma estaca. O homem fez fogo e as chamas iluminaram a noite. Arranjou uma panela e encheu-a com água de seu odre. Remexendo em seu embornal arranjou alguns mantimentos: Fava misturada a uns nacos de carneiro salgado e com isto preparou um guisado que reconfortou muitíssimo as entranhas do menino. Yosef tinha passado o dia todo sem qualquer alimento e estava faminto. Após a refeição, sentaram-se de pernas cruzadas sobre a areia. O velho fez uma prece de agradecimento e, em seguida, falou:

— Meu nome é Hiram e moro um pouco ao norte, em uma comunidade que habita em cidades próximas ao Monte Carmelo. Lá criamos ovelhas e cabras e plantamos azeitonas. E também gostamos de servir a Deus com prazer e devoção. Queres vir comigo?

Yosef olhou bem para a expressão serena do velho e, sem qualquer palavra, abraçou-o com carinho. Era o primeiro gesto de amor que o menino fazia em quatro anos, desde que seus pais haviam morrido na tempestade. Hiram, por sua vez, retribuiu com um afago demorado na cabeça de Yosef. Também era o primeiro carinho que ele recebia nesse período. E ambos se sentiram felizes e cheios de alegria, pois em seus corações começava a florescer um afeto verdadeiro. Dormiram no deserto, a luz da lua e tendo as estrelas por manto.

No dia seguinte, os dois se levantaram cedo e arranjando sua bagagem no lombo do jumento, seguiram caminho para o norte. O velho ia à frente puxando o burrico e o menino alguns passos atrás. O coração de Yosef se tornara bem mais leve desde o dia anterior e ele seguia o caminho radiante de alegria. Amiúde dava pulinhos e conversava consigo mesmo, dando vários sorrisos e às vezes, uma boa gargalhada. Hiram olhava para o menino com o rabo do olho e se sentia satisfeito por ver como o tristonho da véspera se comportava agora. O fantasma de Levi já era apenas passado.

— Boa natureza — pensava o velho consigo. — Um menino que passou por tudo o que ele passou e não se corrompeu mantendo íntegra a sua inocência... É de admirar que ainda existem pessoas como o tal Levi e a família! Corações de pedra...  Deus ainda há de enviar o Messias para redimir a todos e ensinar a sua misericórdia. Dizem que Ele já se encontra entre nós!

Quando paravam para descanso e para fazer as refeições Hiram aproveitava para conhecer melhor o garoto perguntando dados de sua vida. Yosef se lembrava dos pais vagamente, como uma recordação boa, mas não conseguia reter a forma ou a aparência deles. O menino não sabia ler nem escrever e sua noção de religião era somente aquela que recebera na primeira fase de sua vida, no aconchego da família. Do tempo que viveu com Levi, não gostava, absolutamente, de falar e, quando o fazia, sua expressão se modificava traduzindo angústia e suas palavras uma ponta de rancor.

Chegaram a um oásis e lá se abasteceram de água dando de beber ao jumento e dessedentando-se eles próprios. Yosef banhou-se nas águas mornas enquanto Hiram preparava a refeição.

Depois, sentados à sombra de uma tamareira descansaram e conversaram. Na calma daquele momento, Hiram falou:

— Meu pequeno, se não fossem os oásis que pontilham as trilhas do deserto, a travessia de trecho tão inóspito seria impraticável. O oásis, muitas vezes é a tábua de salvação do viajante que cansado e sedento, chega até suas águas para se refazer. Assim também na vida, temos trechos análogos a um deserto árido e desgastante. Mas, Deus, na sua bondade e misericórdia nos coloca no caminho homens semelhantes aos oásis para ajudar-nos em nossa travessia. Eles nos dão de beber da água que faz com que jamais sintamos sede.

— Como podemos não sentir mais sede? — perguntou Yosef espantado com a afirmação do velho.

— Porque existem dois tipos de sede —, disse Hiram. — A sede do corpo nos faz sentir a necessidade de beber água várias vezes por dia; sem essa água o corpo seca e morre. Mas existe a sede do espírito cuja necessidade é da alma. Para esta sede, somente a virtude e a retidão podem satisfazer a vontade. Os homens que passam na vida espalhando virtude conseguem mitigar a sede daqueles que tem a alma seca e ávida e, às vezes, morta.

O pequeno Yosef abaixou sua cabecinha e respondeu:

— Então, Hiram, eu preciso desta água que mata a sede do coração!

— E eu te darei meu filho — disse o velho com os olhos marejados.

Neste ponto Ângelo parou:

— No próximo domingo continuaremos a narrativa.

Ângelo dirigiu-se ao banheiro e lavou as mãos enxugando-as bem. Em seguida caminhou até a mesa onde ardiam as velas e colocando-se em posição contrita, elevou uma prece de agradecimento pela oportunidade de contato com as esferas superiores e, em seguida apagou as velas com um abafador.

Eu acompanhava tudo com muito interesse. Muitas perguntas nasciam dentro de mim, mas morriam na garganta, sem que eu as formulasse. Como se lesse meus pensamentos Ângelo falou:

— Meu caro José. Sei que estás bastante curioso a respeito de nossa história, mas no tempo certo terás maiores detalhes.

O mestre sentou-se na cadeira à minha frente e dispôs-se a explicar:

— A título de conhecimento vou explicar um ponto bastante polêmico para os homens em geral. Os ocultistas aprendem que única coisa que pode criar do nada, é a mente — afirmou.

— Por isso, nós, os iniciados na ciência mística, dizemos que o Universo é mental, ou seja, uma criação mental do Todo. O Todo pode ser chamado Deus... ou outro nome qualquer que defina o Principio Criador do Universo.

Ante a minha muda indagação, respondeu:

— Isso pode ser polemico, mas o que não é polêmico no mundo? Essa história que estamos narrando, também é polêmica. Entretanto não está sendo criada do nada; os personagens são reais... no momento exato tu saberás por que ela é tão importante.

Novamente fez uma pequena pausa antes de prosseguir:

— Entendemos que no Universo tudo é análogo; tanto o microcosmo, ou seja, o infinitamente pequeno que diz respeito ao homem, principalmente em seu corpo físico e material e sua constituição celular e atômica, quanto o macrocosmo, ou melhor, o cosmo da forma como o conhecemos... ambos são nuances da mesma substância que é a Mente do Todo...

O guru suspirou e completou:

— E aí o que está escrito na “Tábua de Esmeraldas”, obra antiquíssima atribuída a Hermes, o Trimegisto, passa a fazer sentido: “O que está em cima é como o que está embaixo[1]...” e vice versa. Esta é a sua verdadeira essência.

— Uma vez, um velhinho, cujos anos lhe trouxeram sabedoria e competência, disse-me: “Querido amigo Ângelo, a distância que existe entre o homem mais evoluído que habita este instante terrestre e o menos evoluído, é muito pequena! Sabes por quê? Por que ambos estão dentro da mesma esfera vibratória e mental e no mesmo momento evolutivo, ou seja, pertencem ao planeta terra”.

O mestre continuou:

— Todos que passam por esse momento, são os frequentadores de uma escola para alunos com capacidades semelhantes. A diferença é que uns atingiram classes superiores aos outros e se adiantaram nos seus estudos, o que não modifica, de forma alguma, o amálgama que formou cada um dentro da substância primitiva oriunda da mente do Todo. E como em uma escola, temos professores e temos alunos, ambos caminhando juntos na escalada de evolução a que cada qual está destinado.

— A narrativa que ora iniciamos dá-nos a dimensão própria do momento evolutivo pelo qual passamos. Dois milênios ou dois dias na mente do Todo, se dissolvem na relatividade do tempo e do espaço, sendo por isso, uma história atual, com exemplos e atitudes que elevam a alma e formam o caráter dos bons alunos. 

— Ela — prosseguiu o guru — mostra-nos a ascensão de almas grandiosas que deram ao nosso planeta grande impulso no que diz respeito às Leis Morais que nos orientam. Mas também nos deixa perceber as atitudes inferiores de alguns indivíduos. No momento certo entenderás e terás a resposta para todas as indagações que trazes dentro de ti. Até lá tenha paciência e guarde um pouco suas perguntas. A própria história se encarregara de respondê-las.

Em seguida agradeceu minha presença, abraçou-me afetuosamente e despediu-se, recomendando-me que voltasse no próximo domingo no mesmo horário.

[1] O que está em cima é como o que está embaixo e o que está embaixo é como o que está em cima para que se cumpram os milagres da unidade. (Nota do autor)

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