O celular tocou por um longo tempo. Sessenta segundos inteiros. Os dedos de Sílvio, firmes no volante, apertaram-se instintivamente. O som do seu coração parecia ecoar no mesmo ritmo insistente do toque. Por fim, a ligação foi interrompida, substituída por uma voz mecânica e fria: a pessoa chamada não pode atender no momento, por favor, tente mais tarde. Seria porque ela ainda estava com raiva dele? Por isso não quis atender? Ou talvez estivesse dormindo. Quem sabe, ocupada com outra coisa. Mas, hoje em dia, quem não olha para o celular o tempo todo? Sílvio sabia a verdade. Sabia que Lúcia não queria falar com ele. A Lúcia de agora não era mais a Lúcia de ontem. Eles tinham voltado àquela tensão sufocante, à distância carregada de mágoas. Ainda assim, ele se permitia enganar, acreditando que talvez ela simplesmente não tivesse visto a ligação. Não queria aceitar que ela o estava ignorando de propósito. A chuva caía pesada, martelando sem piedade o para-brisa do Cullinan. Os l
O que Lúcia faria ao saber da doença de Sílvio? Sentiria pena dele? O perdoaria? Ela ficaria ao lado dele durante o tratamento, como ele fez por ela no passado?Essas perguntas ecoavam incessantemente na cabeça de Sílvio. Sem comer o dia inteiro, ele já não sentia mais fome. Seu estômago, há muito tempo castigado por uma rotina desregrada, cigarro constante, trabalho exaustivo e refeições irregulares, estava longe de ser saudável. Bastava comer um pouco mais, e já se sentia inchado e desconfortável. Enquanto isso, Lúcia andava pela chuva, com passos mecânicos e o rosto vazio de qualquer expressão. Ela sentia o coração apertado, tão apertado que parecia que ia explodir. Estava exausta, emocionalmente devastada. As lágrimas misturavam-se com as gotas de chuva que desciam pelo rosto. As palavras de Paulo ecoavam sem parar nos ouvidos dela:— O Sr. Abelardo nunca fez nada de errado em vida, mas pessoas boas não têm sorte. O Sr. Sílvio descobriu a verdade sobre o incêndio logo depoi
Morrer assim não seria tão ruim. Talvez pudesse finalmente se redimir com os pais. Lúcia fechou os olhos. Já fazia tempo que ela desejava morrer. Muito tempo. Ninguém nunca soube o quanto ela ansiava pelo fim, o quanto desejava que a morte a levasse embora. Mas a dor que ela esperava sentir não veio. Em vez disso, uma poça de lama e água suja foi lançada com força contra seu rosto e suas roupas. — Ei, de qual hospício você escapou, sua maluca? Quer morrer, beleza, mas não me leva junto! — Gritou alguém, sua voz cortando a cortina de chuva e o vento gelado, entrando direto nos ouvidos dela como uma lâmina. Lúcia abriu os olhos a tempo de ver o carro desaparecer à distância, deixando para trás apenas um rastro de sujeira e amargura. Ela desabou em um grito desesperado. As lágrimas, já secas há muito tempo, deixavam apenas a ardência nos olhos, tornando cada piscada um sofrimento. Sentia como se uma rocha enorme pressionasse seu peito, tornando a respiração quase impossível. P
Mesmo sendo marido e mulher, por que se tratavam com palavras tão frias e cruéis? Ele nunca tinha feito nada de errado, absolutamente nada.Sílvio se lembrava de tudo. Abelardo matou seus pais, e mesmo assim, ele pagou todas as despesas médicas e ainda assumiu a administração do Grupo Baptista. Até aquele momento, nem sequer tinha mudado o nome da empresa para Medeiros.Ele sabia que sua consciência estava limpa.— Fez ou não, você sabe muito bem. — Lúcia riu friamente, virando-se para sair.Antes que pudesse dar o primeiro passo, Sílvio agarrou seu pulso, puxando-a de volta com firmeza: — Fale claramente. O que você está insinuando? O que eu fiz de errado?— Sílvio, aquele incêndio... foi mesmo o meu pai que mandou o Paulo provocá-lo?— O culpado foi o Paulo. Ele era o capanga do seu pai, o motorista. Isso é um fato incontestável — Respondeu ele, em um tom firme.Lúcia soltou um riso cínico:— É mesmo?— Não é? — Sílvio rebateu, encarando-a.Algo estava diferente nela. Desde que Lúci
Como poderia se sentir feliz? Mesmo que ele morresse, os pais dela não voltariam, e a família Baptista nunca seria como antes.Seu coração, agora, era apenas um amontoado de pedaços quebrados. A morte dele não traria solução alguma. A situação já havia chegado a um ponto irreversível.Mas Lúcia estava consumida pela raiva. Sentia-se injustiçada pelos pais que morreram em vão e não conseguia aceitar o declínio da família Baptista.Ela não sabia da real condição de saúde de Sílvio, e as palavras que saíam de sua boca eram como facas cravadas diretamente no coração dele:— Claro que sim. Então, Sílvio, morra logo!Depois, ela seguiu apressada para o quarto, batendo a porta com força.Sílvio ficou parado no mesmo lugar, imóvel, como se algo estivesse preso em sua garganta. Seus olhos estavam vermelhos e inchados. Ele se jogou no sofá e tirou um cigarro do bolso, colocando-o entre os lábios ressecados.Com o isqueiro, acendeu o cigarro, mas a fumaça parecia mais forte do que o habitual, faz
Cada vez que ouvia aquelas palavras, Sílvio sentia o peito apertar ainda mais. Ele se perguntava o quanto Lúcia deveria odiá-lo para ter falado tantas coisas horríveis sobre ele na frente daquele papagaio.Sílvio Pegou a gaiola com o animal e a pendurou do lado de fora, na varanda. Talvez assim, com o silêncio, conseguisse um pouco de paz.Na manhã seguinte, logo cedo, Sílvio foi para a cozinha. Preparou a sopa de abóbora que ela tanto amava e que era boa para o estômago. Ao lado, colocou um prato com acompanhamentos leves. Pegou tudo e levou até o quarto dela.Lúcia estava encolhida no canto da cama, os olhos marcados por olheiras profundas. Ficava evidente que ela também não tinha dormido.O sono de Lúcia estava cada vez pior, assim como sua paciência, que se esgotava a cada dia. Sua mente era assombrada pelas imagens do pai caindo da sacada e da mãe desfalecida na neve.Ainda ouvia as palavras de Paulo ecoarem em sua cabeça, acusando Sílvio de ser o responsável pela morte trágica do
Sílvio segurava o cabo da colher com tanta força que seus dedos estavam cobertos de veias saltadas.Lúcia percebeu que ele estava com raiva, mas, como sempre, se controlava. Toda vez que isso acontecia, ele apenas a encarava friamente, sem dizer uma palavra.— Saia. Não quero mais ver a sua cara.— Lúcia, será que não podemos fazer uma trégua por alguns meses? — Sílvio respirou fundo, tentando domar a fúria que queimava por dentro, e falou num tom mais ameno.Lúcia curvou os lábios em um sorriso irônico:— O senhor está me implorando, Sr. Sílvio?— Se você acha que sim, então é isso.Era verdade. Ele estava, de fato, implorando. O tempo dele estava acabando. Será que não poderiam viver em paz por alguns meses? Logo ele estaria morto, e ela poderia finalmente realizar o que tanto desejava.Lúcia deu uma risada desdenhosa, os lábios se curvaram num sorriso sarcástico:— Que pena, mas eu não caio mais na sua lábia.Ela não caía mais, mas a Lúcia de antes… Ah, como ela caía.Bastava ele mo
“Na verdade, não me resta muito tempo. Não faltam muitos dias para você deixar de me ver.”Mas Lúcia não quis nem dar espaço para ele continuar a falar, cortando o assunto sem cerimônia:— Você diz que não está encenando? Tudo bem. Então pode sair agora?— Lúcia, o que você quer para aceitar comer? Você acabou de fazer um transplante de fígado. Não faz tanto tempo assim. Se você não comer, como o seu corpo vai aguentar? — Sílvio franziu as sobrancelhas, a preocupação evidente no rosto. — Você pode brigar comigo, mas não pode brincar com a sua própria saúde.Lúcia, no entanto, não demonstrou nenhuma gratidão:— Fui eu que pedi para fazer essa cirurgia?Claro, a cirurgia aconteceu porque ele a submeteu a isso à força, sem sequer pedir sua permissão. Em certo sentido, ele havia enganado Lúcia.— Não pense que eu não sei o que você está tramando.— Então me diga, o que você acha que eu estou tramando?Sílvio realmente tinha um motivo oculto, mas não o que ela imaginava.— Você só quer me s