Abro meus olhos encontrando-me em uma completa escuridão. Imediatamente detecto que onde quer que eu esteja, não estou sozinha. Não ouso me mexer. Avalio mentalmente quais as minhas chances em um possível combate.
-Você está acordada. - Me sobressalto ao ouvir a voz masculina que reverbera por toda escuridão -Eu não sou seu inimigo. - Ela é rouca e parece acompanhada de sussuros.
-Por que eu deveria acreditar? - Pergunto, obrigando meus olhos a se acostumarem com a escuridão.
-Se eu quisesse matar você... - A voz se aproxima e eu fico em estado de alerta - Eu já teria feito.
Apesar do clima tenso, sorrio de lado. Arrogante. Ele claramente está certo, mas eu não diria isso. A escuridão começa a fazer sentido para mim e eu observo uma forma andar de um lado para o outro de frente ao local em que estou deitada. Meu sorriso se alarga quando eu mergulho na escuridão, surgindo atrás do macho alado que me observava. Rapidamente se vira na minha direção, ele pisca com a surpresa mas rapidamente volta as feições impassíveis.
-Como você... - Ele começa a falar mas eu o interrompo.
-Quem é você? Onde eu estou? - O observo como fui treinada para fazer, como uma caçadora - E como eu vim parar aqui?
Mesmo encarando fixamente seus olhos amêndoas eu sei exatamente todas as formas que ele poderia me atacar, e ele parece saber o mesmo.
-Eu não vou atacar você. Se afasta, senta e nós conversaremos...
O grunhido que sai dos meus lábios é instintivo, ele lentamente se coloca em posição de defesa.
-Se não é meu inimigo, não me dê ordens. - A questão não é a ordem em si, e sim as lembranças que elas trazem...
-Eu não estou afim de começar uma luta. - Ele não teve a intenção, mas saiu como uma ameaça.
Nós estamos nos rondando agora, como dois animais. Eu o observo como uma predadora e ele faz o mesmo. Sempre tive certeza de que eu sairia vitoriosa quando entrava em um combate, mas dessa vez é diferente, o meu oponente não parece ter sido derrotado muitas vezes.
-Eu não tive a intenção de ofendê-la. - Suas feições se contorcem e percebo que ele fez um enorme esforço para soltar aquelas palavras - Mas se quer saber o que aconteceu, me atacar não vai trazer respostas.
Nós paramos juntos, como se a música que estávamos dançando tivesse simplesmente parado. Ele respira fundo e me surpreendo quando toda a escuridão começa a se afastar, nos deixando em um quarto iluminado. Olhos amêndoas fitam mais uma vez olhos verdes antes do macho alado, e bonito, se afastar e sentar em uma poltrona. Permaneço de pé.
-Você deveria se sentar, está desacordada a três dias. - Tento não parecer surpresa enquanto ele se ajeita, sombras o rodeando.
-Como eu cheguei aqui? - Recuso a sugestão e continuo de pé.
-Aparentemente você atravessou. Eu estava esperando você acordar para que me dissesse como descobriu esse lugar.
-Descobri? Eu nem sei que lugar é esse. - Sorrio ironicamente.
-Está mentindo? - As sombras cochicham em seus ouvidos.
-Como eu poderia ter descoberto esse lugar se o modo como você o colocou deixou claro que não é um local que possa ser descoberto?
-Você tem um ponto. - Murmura.
-O que aconteceu depois que eu atravessei? - Caminho lentamente até a cama, me sentando de frente para a poltrona em que ele está.
-Você entrou em esgotamento. - As sombras se aproximam mais uma vez, vindo na minha direção, ele franze o cenho e as afasta - Eu te trouxe para dentro, nós cuidamos dos seus ferimentos, trocamos suas vestes e te deixamos dormir.
-Nós? - Eu não tinha sentido mais ninguém na casa.
-Achei que seria melhor ter servas cuidando de você. - Ele desvia os olhos e eu entendo o porque - Elas não estão mais aqui.
-O que aconteceu com as bestas? - Seus olhos encontram os meus novamente.
-Bestas?
-Sim. As bestas de Maghdon.
-O rei de Maghdon morreu tem meses. - Ele ergue as sobrancelhas interrogativamente.
-Eu sei. - Reviro os olhos - Isso não as impediu de continuarem vindo.
Nós ficamos em silêncio por um tempo. Apenas nos encarando. Ele tentando decidir se eu estava mentindo ou não, e eu tentando colocar em ordem os últimos dias, procurando pelo menos por flashes. Mas nada veio. Eu atravessei para um lugar estranho que, provavelmente, é cheio de algum tipo de magia ilusória seguindo uma sensação idiota e uma voz da minha cabeça. Na verdade eu não sei porque ele não me matou.
-Porque não me matou? Quando atravessei. Seria mais sábio da sua parte se tivesse feito.
Ele abre a boca e a fecha. Ergue as sobrancelhas e então franze o cenho. Penso que ele esperava um agradecimento ou qualquer outra coisa, menos aquilo. Continuo séria, esperando a resposta. As sombras cochicham pra ele mais uma vez e dessa vez ele cochicha de volta antes de falar comigo de novo.
-Com certeza era o mais sábio, mas não seria certo.
-E por que não?
-Você... - Ele olha ao redor e eu olho também, tentando entender o que ele estava dizendo - Você já estava morrendo. Estava ferida, ensanguentada e esgotada. Para ter aparecido aqui, onde ninguém jamais aparece... - Ele se levanta de repente - Bom... Fique a vontade, tem comida lá embaixo, você deve estar faminta.
Meu estômago ronca e eu o amaldiçôo por mais uma vez estar certo. Penso em dizer algo ou simplesmente me despedir e sair o mais rápido possível quando ouço mais um sussurro.
Matteo...
-Matteo? - Acabo pensando em voz alta.
-Sim? - Ele se vira instintivamente para mim e quando percebe que eu obviamente disse seu nome sem nem ao menos ter perguntado, sua surpresa é evidente e dessa vez não passa tão rápido - Como sabe o meu nome?
-Eu só... - Ouço vozes? - Me lembrei. Alguém de vocês deve ter falado enquanto eu dormia.
-Deve ser isso. - ele continua surpreso, claramente nem um pouco convencido - E você é?
-Lucille.
-É um prazer. - Faz uma reverência curta e sai rapidamente, levando toda a escuridão e sombras com ele.
Coloco a mão sobre o coração que está completamente disparado. Minha cabeça gira e eu me sinto confusa. Os sussurros sempre falaram ao pé do meu ouvido, como se realmente fossem vozes da minha mente. Mas dessa vez foi diferente. Eles estavam de frente para mim, estavam junto com o macho que acaba de deixar o quarto.
Tranco a porta do quarto antes de me dirigir ao banheiro. Há uma enorme banheira no centro do cômodo, eu ligo a torneira enquanto vou até o espelho grande e largo pendurado na parede oposta.O ruído de surpresa que deixa meus lábios é inevitável. Eu não me lembro quando foi a última vez que me vi no espelho, mas eu posso afirmar que essa não é a imagem que eu costumava ver. As mangas longas do suéter em que me foi vestido parecem largas demais para os meus braços, a calça pende de um jeito estranho sobre meu quadril que antes fora largo, meus cabelos longos estão ralos e desbotados, tenho olheiras roxas e fundas, minhas bochechas estão ocas e há um corte em cicatrização na maçã do meu rosto, os olhos verdes parecem sem vida mas eu duvido que alguma vez tivesse sido diferente. Permito que a calça desça até os meus tornozelos e passo o suéter pela cabeça, deixando-o se juntar ao restante da roupa. Não visto nada por baixo.A visão agora me
Seria mentira se eu dissesse que as palavras dele não me deixaram mais calma, mas ao mesmo tempo eu fiquei ansiosa pra mostrar que eu não preciso de proteção. Me levanto do sofá e passo rapidamente por ele, esbarrando em seu braço propositalmente, indo em direção ao quarto. Paro antes de abrir a porta.-Agradeço pelas palavras de conforto e a hospitalidade. Mas... - Abro um sorriso irônico e tiro da manga a adaga que roubei de sua bainha quando passei por ele - Eu não costumo aceitar ofertas de proteção.Me viro a tempo de vê-lo piscando de surpresa e conferindo a bainha, antes de seus lábios formarem um rápido sorriso de lado.-Acho que vou ficar com essa. Por precaução. - Dou uma piscadinha e entro no quarto.Deito novamente na cama, colocando a adaga debaixo do travesseiro e puxo as cobertas até o pescoço. Por um tempo eu apenas fico ouvindo as batidas frenéticas do meu coração, tentando organizar todos os
Matteo não voltou mais no quarto, mas eu também não voltei a dormir. Tive receio de que se dormisse poderia ter pesadelos piores e pudesse atacá-lo outra vez, então me obriguei a ficar acordada.Já era dia quando saí do quarto e me assustei quando o encontrei pelando de febre deitado no sofá. Depois de muita relutância, da parte dele, eu o arrastei até o quarto e o coloquei na cama.Me preocupei que os ferimentos tivessem infeccionado, mas aparentemente seu corpo só estava reagindo a dor extrema que sentiu, os machucados estavam bem.Troquei os curativos e pedi que ele dormisse enquanto eu preparava algo para que pudéssemos comer. Não achei que ele fosse capaz de comer algo além de sopa, e como haviam muitas latas, foi o que fiz.Quando voltei para o quarto ele estava dormindo. Lutei comigo mesma entre deixá-lo dormir ou acordá-lo para comer. A segunda opção venceu, já que eu não sabia quando foi a últim
Nós acabamos de comer em completo silêncio. Eu me obriguei a engolir a sopa, tinha perdido o apetite.-Você não vai tirar os meus pontos.-Por que não? - Afasta a tigela vazia.-Posso fazer isso sozinha.-Eu tenho certeza que sim, mas eu posso te ajudar. - Ele cruza os braços, me encarando - Compensar o que fez por mim.-Eu não fiz nada de mais.-Você cuidou de mim.-Você cuidou de mim primeiro.-Eu não vou forçar você, mas seria mais prudente que outra pessoa fizesse isso. Você pode acabar se ferindo de novo.Matteo respira fundo, se levantando e eu desvio o olhar do seu, observando minhas mãos cheias de cicatrizes e calos. Eu com certeza estou sendo imatura, e ele está certo, mas a ideia de ter outra pessoa observando uma vulnerabilidade minha ainda me apavora. Eu também me levanto, pegando nossas tigelas.<
Chegamos a conclusão de que não seria uma boa ideia eu usar a minha magia até que o feitiço fosse quebrado. Eu continuei esperando por julgamento ou repreensão, porém, recebi conforto e ajuda.A fogueira feita com corpos estala na minha frente, Matteo está ao meu lado, perto o suficiente para que suas asas impessam a neve e o vento de chegar até mim.-Se eles estão te rastreando pela sua magia é provável que estejam a caminho neste exato momento. Nós temos que nos apressar.Eu me viro para encara-lo. Não entendo como ele pode querer me ajudar depois de ver o que eu fiz. Se ele ao menos soubesse que aquilo não foi nem metade do que eu já fui capaz, do que eu sou capaz... Penso em contar tudo de uma vez para ele. Dizer quem eu fui, já que não sei quem eu sou agora. Várias imagens passam pela minha cabeça e o buraco ameaça voltar a me corroer, estremeço quando isso acontece, mas ele logo começa a diminuir quando as asas de
-Sua vez. - sussurro.Lentamente ele segura minha mão, indicando os pequenos furos ao redor dos meus pulsos.-O que fez isso?-O rei tinha certeza de que eu me rebelaria na primeira oportunidade, assim que eu tivesse consciência de que poderia fugir se quisesse. - Me surpreendo quando as palavras saem sem nenhum esforço - Então ele mandou que preparassem grilhões "especiais" para mim. - Solto uma risada irônica - Eram de ferro com pontas afiadas na parte de dentro, que perfuravam minha pele, injetando veneno para adormecer meus poderes e me mantendo sob controle. Eu ficava acorrentada pelos pulsos e tornozelos à parede. - Faço uma pausa, conseguindo sentir o peso das algemas - Algum tempo depois, Dominique, o homem que matei hoje, chegou com as duas peças que faltavam no jogo cruel deles. Uma coleira grossa e pesada, e uma focinheira, pra que eu não pudesse mais respondê-los ou debochar das palavras deles.Des
Após a refeição silenciosa, já que estávamos presos em nossos próprios pensamentos, Matteo não permitiu que eu lavasse a louça, então me aconcheguei na poltrona mais próxima da lareira, aproveitando seu calor, para esperá-lo.Devido a canseira e o estresse do dia, acabei dormindo em poucos minutos. Acordei em uma cama espaçosa, enrolada em várias cobertas, reconheci o local que eu havia deduzido como o quarto dele, já que suas roupas e pertences estavam no armário.Afasto o monte de cobertor que estava sobre o meu corpo e saio direto para o banheiro. A casa está toda iluminada pelo sol quando eu desço para a cozinha, há uma adaga que eu reconheço como a Fatiadora sobre um papel na mesa, eu os pego, percebendo que é um bilhete direcionado a mim:Lucille,Tive que sair para resolver algumas pendências, não devo demorar. Fique a vontade para andar pela casa ou pela cidade. Mande me chamar se precisar.
Nem mesmo um banho frio foi capaz de tirar o calor do meu corpo. Amaldiçoei mentalmente aquele homem por me deixar assim. Estava prestes a sair do banheiro quando ouço batidas na porta:-Lucille? Deixei algumas roupas para você no quarto, use-as se se sentir confortável. - Era a mesma voz sussurrada que estava tirando minha paz.-Eu... Ok. Obrigada.Bufo de raiva quando sinto minhas bochechas corarem mais uma vez. Permaneço colada a porta tentando, e falhando, escutar seus passos se afastando. Quando presumo que já tenha passado tempo suficiente eu corro para o quarto.Há várias trocas de roupas por cima da cama, a adaga que eu havia esquecido na sala de treinamento estava no meio, eu olho cada uma, observando cada detalhe diferente das que eu estava acostumada a vestir. Todas parecendo ter sido feitas para alguém maior que eu, mesmo assim algumas deixavam partes do corpo de fora, eu escolho uma legging