Capítulo 3

Tranco a porta do quarto antes de me dirigir ao banheiro. Há uma enorme banheira no centro do cômodo, eu ligo a torneira enquanto vou até o espelho grande e largo pendurado na parede oposta. 

O ruído de surpresa que deixa meus lábios é inevitável. Eu não me lembro quando foi a última vez que me vi no espelho, mas eu posso afirmar que essa não é a imagem que eu costumava ver. As mangas longas do suéter em que me foi vestido parecem largas demais para os meus braços, a calça pende de um jeito estranho sobre meu quadril que antes fora largo, meus cabelos longos estão ralos e desbotados, tenho olheiras roxas e fundas, minhas bochechas estão ocas e há um corte em cicatrização na maçã do meu rosto, os olhos verdes parecem sem vida mas eu duvido que alguma vez tivesse sido diferente. Permito que a calça desça até os meus tornozelos e passo o suéter pela cabeça, deixando-o se juntar ao restante da roupa. Não visto nada por baixo. 

A visão agora me perturba ainda mais. Há um corte longo na minha costela que foi costurado recentemente, passo os dedos pelos pontos não sentindo mais dor, meu corpo sempre fora cheio de cicatrizes mas nunca havia tempo o suficiente para encara-las, agora reparando bem, eu as achava repugnantes. Olhei mais uma vez para o espelho e tive a sensação de encarar um cadáver. Um em específico. Eu odiei aquela imagem e os odiei ainda mais pelo que fizeram comigo.

Sigo até a banheira e entro, deixando a água quente cobrir meu corpo, estico a mão para fechar a torneira e me afundo ainda mais. Conjuro um pouco do meu poder para me certificar de que o esgotamento tinha mesmo passado, uma parte pequena fica aliviada quando o vejo na palma da minha mão. A massa escura com filetes violeta envolve meus dedos, as palmas e meus braços antes que eu a guarde novamente.

Tentei lavar toda a dor, cansaço, ódio e violência da minha pele, mas acabei o banho me sentindo mais suja do que quando comecei. Aperto os olhos com força antes de decidir que não tem solução, pra isso eu teria que limpar todos os anos da minha existência, e eu não podia nem mesmo dizer o número exato. Por não saber o que fazer com as peças de roupas sujas, eu as dobro e deixo em cima da pia, já tentando adivinhar onde estão as minhas vestes antigas.

De volta ao quarto me deparo com uma troca de roupa limpa sobre a cama. Vou até a porta e depois de confirmar que está trancada ergo as sobrancelhas, imaginando que com certeza o macho lá fora deve ter outra chave. Me sinto idiota por não pensar nisso antes. Visto mais um suéter e calça de moletom largos, destranco a porta e saio para encontrar paredes de madeira rústica com detalhes trabalhados a mão. Passo as pontas dos dedos pelos desenhos diferentes. 

Eu o sinto antes mesmo de virar para encontrar o homem rodeado de sombras ao lado do sofá. Por um momento ele apenas me encara antes de indicar uma mesinha de centro com vários tipos de comida.

-Fique a vontade. -a voz rouca e sussurrada invade meus ouvidos.

Meu estômago ronca em concordância, mas eu permaneço desconfiada. Olho da comida, que parece muito boa, até o macho imóvel como uma estátua. Estreito os olhos em direção a ele. Ele me envenenaria? Ele teria algum motivo pra isso? Ele me salvou. Mas ele também não tinha motivos...

-Não há nada errado com a comida, não se preocupe. - As sombras voltam a sussurrar no ouvido dele e ele murmura de volta - É provável que você esteja a muito mais do que três dias sem fazer uma refeição decente.

Foi preciso muitos anos de treinamento e muita concentração para não corar naquele momento. Eu tinha ficado tão chocada com a minha imagem no espelho que me esqueci que outras pessoas também a vêem. Aperto as mãos e respiro fundo antes de sorrir ironicamente para ele.

-Você também não me parece muito bem. - A surpresa em seus olhos é o suficiente para me incentivar a falar - Há quanto tempo não dorme, homem das sombras? - Caminho lentamente até a mesa para me servir, sem nunca desviar o olhar - Ah... Não esperava que eu também estivesse te observando.

Um pequeno sorriso repuxa seus lábios mas ele não responde, alargo ainda mais o meu. Eu não estava mentindo, ele definitivamente também já havia tido dias melhores. Coloco a primeira fatia de bolo na boca e quase não sou capaz de segurar um gemido de apreciação. Eu estava faminta e realmente fazia muito mais do que três dias que eu comia o que conseguia encontrar na floresta. O macho me observa atentamente antes de dar um passo a frente.

-De onde você veio, antes de atravessar?

-Eu não sei. Provavelmente de algum lugar do Reino do Fogo.

-De quem estava fugindo?

-Não é de quem, é de quê. As bestas de Maghdon. 

-O rei está morto. 

-Mas não estava. Ele deve ter deixado ordens específicas para seus servos.

A comida cresce na minha boca e eu me obrigo a engoli-la antes de decidir que estou satisfeita. As lembranças daquele lugar e daquele homem me fariam tremer, relembra-las com um estranho não é uma coisa que eu gostaria de fazer. 

-Eu preciso ir agora. - Me levanto rapidamente, o que não foi uma boa ideia já que a minha cabeça gira e eu dou um passo a frente para não cair.

-Ir? Você pelo menos tem um lugar pra ir? - Ele está mais perto agora, depois de dar alguns passos para me ajudar.

-Eu tenho que continuar antes que elas me encontrem de novo.

-Você não está em condições de sair por aí sem rumo. - Não é uma sugestão, ou uma advertência. É uma afirmação.

Eu penso em argumentar, mostrar meus poderes ou simplesmente invadir a mente dele. Mas como se concordasse, minhas pernas fraquejam mais uma vez e eu sou obrigada a me sentar.

-Se eu continuar aqui elas vão me encontrar. E quando fizerem isso elas vão destruir esse lugar.

-Como eu já lhe disse, aqui não é um local tão simples de encontrar. Você está segura aqui. São poucas pessoas que conhecem esse chalé e nenhuma delas revelaria a localização.

Mas ele não está. Se as bestas me encontrassem aqui elas colocariam essa casa a baixo e ainda o matariam. Eu seria a causa de mais uma morte. Mais uma para a minha lista extensa. Levanto os olhos para encontrá-lo me encarando como uma estátua.

-Mas mesmo assim eu consegui encontrar.

-Como, exatamente, você encontrou?

Quem sabe se eu disser que ouço vozes ele acredite que comigo aqui está em perigo? Volto ao exato momento em que atravessei, tentando lembrar de cada imagem, cheiro, pensamento e sensação. Me lembro da dor e do medo, mas também me lembro daquele puxão e a voz que me disse para seguir.

-Eu senti uma coisa. - Fecho os olhos tentando sentir de novo - É como se fosse uma linha invisível presa ao meu estômago, ela puxa e eu respondo ao chamado... - Como se soubesse que é o assunto, sinto o puxão e o puxo de volta, respondendo - Quando eu a sinto, tenho esperança. Eu a tenho seguido a bastante tempo. Ela me chamou aquela noite de novo e mais uma vez eu fui. E então eu estava aqui. - Abro os olhos tendo a certeza de que ele acabou de comprovar que eu sou uma lunática.

Eu esperava choque? Sim. Mas nada como a expressão no rosto de Matteo. Seus olhos estavam arregalados agora e a boca aberta. Olho para a sua mão direita que aperta com força a calça de coro que ele veste. As sombras, agora muito próximas, cobrem todo o seu braço esquerdo e continuam se aproximando. As asas enormes se agitam uma vez antes que ele volte a normal postura de estátua. Ele engole em seco uma vez e seus olhos vacilam antes que ele os desvie para longe de mim.

-Você não tem que se preocupar com as bestas aqui. Está sob a minha proteção.

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