Tranco a porta do quarto antes de me dirigir ao banheiro. Há uma enorme banheira no centro do cômodo, eu ligo a torneira enquanto vou até o espelho grande e largo pendurado na parede oposta.
O ruído de surpresa que deixa meus lábios é inevitável. Eu não me lembro quando foi a última vez que me vi no espelho, mas eu posso afirmar que essa não é a imagem que eu costumava ver. As mangas longas do suéter em que me foi vestido parecem largas demais para os meus braços, a calça pende de um jeito estranho sobre meu quadril que antes fora largo, meus cabelos longos estão ralos e desbotados, tenho olheiras roxas e fundas, minhas bochechas estão ocas e há um corte em cicatrização na maçã do meu rosto, os olhos verdes parecem sem vida mas eu duvido que alguma vez tivesse sido diferente. Permito que a calça desça até os meus tornozelos e passo o suéter pela cabeça, deixando-o se juntar ao restante da roupa. Não visto nada por baixo.
A visão agora me perturba ainda mais. Há um corte longo na minha costela que foi costurado recentemente, passo os dedos pelos pontos não sentindo mais dor, meu corpo sempre fora cheio de cicatrizes mas nunca havia tempo o suficiente para encara-las, agora reparando bem, eu as achava repugnantes. Olhei mais uma vez para o espelho e tive a sensação de encarar um cadáver. Um em específico. Eu odiei aquela imagem e os odiei ainda mais pelo que fizeram comigo.
Sigo até a banheira e entro, deixando a água quente cobrir meu corpo, estico a mão para fechar a torneira e me afundo ainda mais. Conjuro um pouco do meu poder para me certificar de que o esgotamento tinha mesmo passado, uma parte pequena fica aliviada quando o vejo na palma da minha mão. A massa escura com filetes violeta envolve meus dedos, as palmas e meus braços antes que eu a guarde novamente.
Tentei lavar toda a dor, cansaço, ódio e violência da minha pele, mas acabei o banho me sentindo mais suja do que quando comecei. Aperto os olhos com força antes de decidir que não tem solução, pra isso eu teria que limpar todos os anos da minha existência, e eu não podia nem mesmo dizer o número exato. Por não saber o que fazer com as peças de roupas sujas, eu as dobro e deixo em cima da pia, já tentando adivinhar onde estão as minhas vestes antigas.
De volta ao quarto me deparo com uma troca de roupa limpa sobre a cama. Vou até a porta e depois de confirmar que está trancada ergo as sobrancelhas, imaginando que com certeza o macho lá fora deve ter outra chave. Me sinto idiota por não pensar nisso antes. Visto mais um suéter e calça de moletom largos, destranco a porta e saio para encontrar paredes de madeira rústica com detalhes trabalhados a mão. Passo as pontas dos dedos pelos desenhos diferentes.
Eu o sinto antes mesmo de virar para encontrar o homem rodeado de sombras ao lado do sofá. Por um momento ele apenas me encara antes de indicar uma mesinha de centro com vários tipos de comida.
-Fique a vontade. -a voz rouca e sussurrada invade meus ouvidos.
Meu estômago ronca em concordância, mas eu permaneço desconfiada. Olho da comida, que parece muito boa, até o macho imóvel como uma estátua. Estreito os olhos em direção a ele. Ele me envenenaria? Ele teria algum motivo pra isso? Ele me salvou. Mas ele também não tinha motivos...
-Não há nada errado com a comida, não se preocupe. - As sombras voltam a sussurrar no ouvido dele e ele murmura de volta - É provável que você esteja a muito mais do que três dias sem fazer uma refeição decente.
Foi preciso muitos anos de treinamento e muita concentração para não corar naquele momento. Eu tinha ficado tão chocada com a minha imagem no espelho que me esqueci que outras pessoas também a vêem. Aperto as mãos e respiro fundo antes de sorrir ironicamente para ele.
-Você também não me parece muito bem. - A surpresa em seus olhos é o suficiente para me incentivar a falar - Há quanto tempo não dorme, homem das sombras? - Caminho lentamente até a mesa para me servir, sem nunca desviar o olhar - Ah... Não esperava que eu também estivesse te observando.
Um pequeno sorriso repuxa seus lábios mas ele não responde, alargo ainda mais o meu. Eu não estava mentindo, ele definitivamente também já havia tido dias melhores. Coloco a primeira fatia de bolo na boca e quase não sou capaz de segurar um gemido de apreciação. Eu estava faminta e realmente fazia muito mais do que três dias que eu comia o que conseguia encontrar na floresta. O macho me observa atentamente antes de dar um passo a frente.
-De onde você veio, antes de atravessar?
-Eu não sei. Provavelmente de algum lugar do Reino do Fogo.
-De quem estava fugindo?
-Não é de quem, é de quê. As bestas de Maghdon.
-O rei está morto.
-Mas não estava. Ele deve ter deixado ordens específicas para seus servos.
A comida cresce na minha boca e eu me obrigo a engoli-la antes de decidir que estou satisfeita. As lembranças daquele lugar e daquele homem me fariam tremer, relembra-las com um estranho não é uma coisa que eu gostaria de fazer.
-Eu preciso ir agora. - Me levanto rapidamente, o que não foi uma boa ideia já que a minha cabeça gira e eu dou um passo a frente para não cair.
-Ir? Você pelo menos tem um lugar pra ir? - Ele está mais perto agora, depois de dar alguns passos para me ajudar.
-Eu tenho que continuar antes que elas me encontrem de novo.
-Você não está em condições de sair por aí sem rumo. - Não é uma sugestão, ou uma advertência. É uma afirmação.
Eu penso em argumentar, mostrar meus poderes ou simplesmente invadir a mente dele. Mas como se concordasse, minhas pernas fraquejam mais uma vez e eu sou obrigada a me sentar.
-Se eu continuar aqui elas vão me encontrar. E quando fizerem isso elas vão destruir esse lugar.
-Como eu já lhe disse, aqui não é um local tão simples de encontrar. Você está segura aqui. São poucas pessoas que conhecem esse chalé e nenhuma delas revelaria a localização.
Mas ele não está. Se as bestas me encontrassem aqui elas colocariam essa casa a baixo e ainda o matariam. Eu seria a causa de mais uma morte. Mais uma para a minha lista extensa. Levanto os olhos para encontrá-lo me encarando como uma estátua.
-Mas mesmo assim eu consegui encontrar.
-Como, exatamente, você encontrou?
Quem sabe se eu disser que ouço vozes ele acredite que comigo aqui está em perigo? Volto ao exato momento em que atravessei, tentando lembrar de cada imagem, cheiro, pensamento e sensação. Me lembro da dor e do medo, mas também me lembro daquele puxão e a voz que me disse para seguir.
-Eu senti uma coisa. - Fecho os olhos tentando sentir de novo - É como se fosse uma linha invisível presa ao meu estômago, ela puxa e eu respondo ao chamado... - Como se soubesse que é o assunto, sinto o puxão e o puxo de volta, respondendo - Quando eu a sinto, tenho esperança. Eu a tenho seguido a bastante tempo. Ela me chamou aquela noite de novo e mais uma vez eu fui. E então eu estava aqui. - Abro os olhos tendo a certeza de que ele acabou de comprovar que eu sou uma lunática.
Eu esperava choque? Sim. Mas nada como a expressão no rosto de Matteo. Seus olhos estavam arregalados agora e a boca aberta. Olho para a sua mão direita que aperta com força a calça de coro que ele veste. As sombras, agora muito próximas, cobrem todo o seu braço esquerdo e continuam se aproximando. As asas enormes se agitam uma vez antes que ele volte a normal postura de estátua. Ele engole em seco uma vez e seus olhos vacilam antes que ele os desvie para longe de mim.
-Você não tem que se preocupar com as bestas aqui. Está sob a minha proteção.
Seria mentira se eu dissesse que as palavras dele não me deixaram mais calma, mas ao mesmo tempo eu fiquei ansiosa pra mostrar que eu não preciso de proteção. Me levanto do sofá e passo rapidamente por ele, esbarrando em seu braço propositalmente, indo em direção ao quarto. Paro antes de abrir a porta.-Agradeço pelas palavras de conforto e a hospitalidade. Mas... - Abro um sorriso irônico e tiro da manga a adaga que roubei de sua bainha quando passei por ele - Eu não costumo aceitar ofertas de proteção.Me viro a tempo de vê-lo piscando de surpresa e conferindo a bainha, antes de seus lábios formarem um rápido sorriso de lado.-Acho que vou ficar com essa. Por precaução. - Dou uma piscadinha e entro no quarto.Deito novamente na cama, colocando a adaga debaixo do travesseiro e puxo as cobertas até o pescoço. Por um tempo eu apenas fico ouvindo as batidas frenéticas do meu coração, tentando organizar todos os
Matteo não voltou mais no quarto, mas eu também não voltei a dormir. Tive receio de que se dormisse poderia ter pesadelos piores e pudesse atacá-lo outra vez, então me obriguei a ficar acordada.Já era dia quando saí do quarto e me assustei quando o encontrei pelando de febre deitado no sofá. Depois de muita relutância, da parte dele, eu o arrastei até o quarto e o coloquei na cama.Me preocupei que os ferimentos tivessem infeccionado, mas aparentemente seu corpo só estava reagindo a dor extrema que sentiu, os machucados estavam bem.Troquei os curativos e pedi que ele dormisse enquanto eu preparava algo para que pudéssemos comer. Não achei que ele fosse capaz de comer algo além de sopa, e como haviam muitas latas, foi o que fiz.Quando voltei para o quarto ele estava dormindo. Lutei comigo mesma entre deixá-lo dormir ou acordá-lo para comer. A segunda opção venceu, já que eu não sabia quando foi a últim
Nós acabamos de comer em completo silêncio. Eu me obriguei a engolir a sopa, tinha perdido o apetite.-Você não vai tirar os meus pontos.-Por que não? - Afasta a tigela vazia.-Posso fazer isso sozinha.-Eu tenho certeza que sim, mas eu posso te ajudar. - Ele cruza os braços, me encarando - Compensar o que fez por mim.-Eu não fiz nada de mais.-Você cuidou de mim.-Você cuidou de mim primeiro.-Eu não vou forçar você, mas seria mais prudente que outra pessoa fizesse isso. Você pode acabar se ferindo de novo.Matteo respira fundo, se levantando e eu desvio o olhar do seu, observando minhas mãos cheias de cicatrizes e calos. Eu com certeza estou sendo imatura, e ele está certo, mas a ideia de ter outra pessoa observando uma vulnerabilidade minha ainda me apavora. Eu também me levanto, pegando nossas tigelas.<
Chegamos a conclusão de que não seria uma boa ideia eu usar a minha magia até que o feitiço fosse quebrado. Eu continuei esperando por julgamento ou repreensão, porém, recebi conforto e ajuda.A fogueira feita com corpos estala na minha frente, Matteo está ao meu lado, perto o suficiente para que suas asas impessam a neve e o vento de chegar até mim.-Se eles estão te rastreando pela sua magia é provável que estejam a caminho neste exato momento. Nós temos que nos apressar.Eu me viro para encara-lo. Não entendo como ele pode querer me ajudar depois de ver o que eu fiz. Se ele ao menos soubesse que aquilo não foi nem metade do que eu já fui capaz, do que eu sou capaz... Penso em contar tudo de uma vez para ele. Dizer quem eu fui, já que não sei quem eu sou agora. Várias imagens passam pela minha cabeça e o buraco ameaça voltar a me corroer, estremeço quando isso acontece, mas ele logo começa a diminuir quando as asas de
-Sua vez. - sussurro.Lentamente ele segura minha mão, indicando os pequenos furos ao redor dos meus pulsos.-O que fez isso?-O rei tinha certeza de que eu me rebelaria na primeira oportunidade, assim que eu tivesse consciência de que poderia fugir se quisesse. - Me surpreendo quando as palavras saem sem nenhum esforço - Então ele mandou que preparassem grilhões "especiais" para mim. - Solto uma risada irônica - Eram de ferro com pontas afiadas na parte de dentro, que perfuravam minha pele, injetando veneno para adormecer meus poderes e me mantendo sob controle. Eu ficava acorrentada pelos pulsos e tornozelos à parede. - Faço uma pausa, conseguindo sentir o peso das algemas - Algum tempo depois, Dominique, o homem que matei hoje, chegou com as duas peças que faltavam no jogo cruel deles. Uma coleira grossa e pesada, e uma focinheira, pra que eu não pudesse mais respondê-los ou debochar das palavras deles.Des
Após a refeição silenciosa, já que estávamos presos em nossos próprios pensamentos, Matteo não permitiu que eu lavasse a louça, então me aconcheguei na poltrona mais próxima da lareira, aproveitando seu calor, para esperá-lo.Devido a canseira e o estresse do dia, acabei dormindo em poucos minutos. Acordei em uma cama espaçosa, enrolada em várias cobertas, reconheci o local que eu havia deduzido como o quarto dele, já que suas roupas e pertences estavam no armário.Afasto o monte de cobertor que estava sobre o meu corpo e saio direto para o banheiro. A casa está toda iluminada pelo sol quando eu desço para a cozinha, há uma adaga que eu reconheço como a Fatiadora sobre um papel na mesa, eu os pego, percebendo que é um bilhete direcionado a mim:Lucille,Tive que sair para resolver algumas pendências, não devo demorar. Fique a vontade para andar pela casa ou pela cidade. Mande me chamar se precisar.
Nem mesmo um banho frio foi capaz de tirar o calor do meu corpo. Amaldiçoei mentalmente aquele homem por me deixar assim. Estava prestes a sair do banheiro quando ouço batidas na porta:-Lucille? Deixei algumas roupas para você no quarto, use-as se se sentir confortável. - Era a mesma voz sussurrada que estava tirando minha paz.-Eu... Ok. Obrigada.Bufo de raiva quando sinto minhas bochechas corarem mais uma vez. Permaneço colada a porta tentando, e falhando, escutar seus passos se afastando. Quando presumo que já tenha passado tempo suficiente eu corro para o quarto.Há várias trocas de roupas por cima da cama, a adaga que eu havia esquecido na sala de treinamento estava no meio, eu olho cada uma, observando cada detalhe diferente das que eu estava acostumada a vestir. Todas parecendo ter sido feitas para alguém maior que eu, mesmo assim algumas deixavam partes do corpo de fora, eu escolho uma legging
Os dias seguintes se seguiram iguais, eu agora passava as manhãs treinando na área, Matteo não voltou a treinar comigo, porém estava sempre presente, vez ou outra ele saía para fazer o que quer que fizesse, mas voltava a tempo das refeições, que agora fazíamos juntos.Antes de dormir eu me deitava ao lado da lareira para ler, o macho das sombras se sentava de frente para mim e agora tinha o estranho o hábito de me observar.Nossos pesadelos voltavam toda noite, os meus envolvendo meu passado, a cidade e o meu anfitrião, os dele eram desconhecidos por mim, algumas vezes eu vomitava, em outras eu só me levantava e corria para fora, mas em todos esses momentos terríveis o homem aparecia para me confortar. Eu procurava fazer o mesmo com ele, algumas vezes eu precisei acordá-lo, em outras eu me sentava ao seu lado e ficava em silêncio. Na maioria das vezes eu estava tão cansada que dormia na sala, em seu ombro ou em suas asas, mas sempre acor