Capítulo 4

Seria mentira se eu dissesse que as palavras dele não me deixaram mais calma, mas ao mesmo tempo eu fiquei ansiosa pra mostrar que eu não preciso de proteção. Me levanto do sofá e passo rapidamente por ele, esbarrando em seu braço propositalmente, indo em direção ao quarto. Paro antes de abrir a porta.

-Agradeço pelas palavras de conforto e a hospitalidade. Mas... - Abro um sorriso irônico e tiro da manga a adaga que roubei de sua bainha quando passei por ele - Eu não costumo aceitar ofertas de proteção. 

Me viro a tempo de vê-lo piscando de surpresa e conferindo a bainha, antes de seus lábios formarem um rápido sorriso de lado.

-Acho que vou ficar com essa. Por precaução. - Dou uma piscadinha e entro no quarto.

Deito novamente na cama, colocando a adaga debaixo do travesseiro e puxo as cobertas até o pescoço. Por um tempo eu apenas fico ouvindo as batidas frenéticas do meu coração, tentando organizar todos os confusos e embolados pensamentos. 

Um desconhecido me ofereceu proteção depois de ter salvo a minha vida. Seguindo as ordens do rei, ele claramente é um dos inimigos. Mas eu não sigo mais suas ordens. Por algum motivo esse homem me salvou e se ofereceu pra me salvar novamente. Eu não consigo ver a razão, não consigo ver um motivo pra isso. Meus olhos começam a pesar ao mesmo tempo em que meu corpo relaxa. Eu adormeço.

As algemas nos meus pulsos e tornozelos pesam, meu corpo todo dói, não tenho forças pra nem mesmo levantar a cabeça. Estou mais uma vez algemada nas paredes de ferro do calabouço do castelo de Maghdon. A porta range, passos lentos e pesados vem na minha direção. Minha respiração fica mais rápida, mas é a única reação de medo que eu deixo que ele veja. Suas botas estão no meu campo de visão agora. Me obrigo a levantar a cabeça e encontrar seus olhos escuros e terríveis.

-Você tem uma missão.

Ele tomba a cabeça para o lado antes de um sorriso horrível e cruel brotar em seus lábios. Ele avança...

Mãos seguram meus ombros e eu grito para o escuro. Procurando fugir daquele lugar e daquela sensação eu solto meu poder, colocando minhas mãos nos braços que me seguram na cama e me permitindo ferir o meu agressor, que solta um grito de dor mas não se afasta. O som me afeta também e eu me sinto entrar em desespero, permito que mais do meu poder saia.

-Lucille! Você precisa parar! - As mãos saem dos meus ombros e seguram meu rosto. - Sou eu! Você está bem...

Abro os olhos e encontro as feições de Matteo se contorcendo de dor. Afasto as mãos dele. Por que ele está aqui? O pegaram também! Olho ao redor sentindo o pânico me puxar, abro a boca para implorar que ele fuja mas nada sai, nada entra também. Não consigo respirar. Começo a me debater, tentando puxar o máximo possível de ar, mas nada vem.

-Olha pra mim! - A voz agoniada está mais perto agora. - Olha pra mim, Lucille!

Meu olhar busca, desesperadamente, o dele. Seu rosto é a única coisa que eu consigo ver na escuridão, está a centímetros do meu e eu olho diretamente em seus olhos.

-Respira. - É com calma que ele fala agora - Continue olhando para mim. Você está aqui, está tudo bem.

Meu corpo começa a acalmar e aos poucos o ar começa a entrar e sair. Posso sentir a cama abaixo de mim, a gota de suor que escorre pela minha testa, as mãos calejadas e ásperas de Matteo nas minhas bochechas.

-Isso. Continue respirando.

As batidas do meu coração começam a voltar ao ritmo normal. Foi um pesadelo. Um pesadelo de um passado horrível. Sinto meu rosto molhado e pegajoso, provavelmente molhando também as mãos do homem que me olha com preocupação.

-Você está bem? - Ele sussurra e eu assinto - Eu vou me afastar agora, ok?

Assinto mais uma vez, respirando fundo. Ele tira uma mão e depois a outra, os olhos nunca deixando os meus. Só agora quando se levanta eu percebo que ele estava quase sob o meu corpo, não sei como reagir a isso. Não sei como reagir a tudo isso. Um gemido de dor sai de seus lábios e eu me sento na mesma hora. Meus olhos ardem mas mesmo assim eu consigo ver seus braços machucados.

-Está tudo bem. 

Não consigo encarar seus olhos. Há cortes e hematomas desde os pulsos até os cotovelos. Eu fiz aquilo, o mínimo que eu poderia fazer é cuidar eu mesma dos ferimentos.

-Você não tem com o que se preocupar.

-Eu posso ajudar... - falo depressa - Se você me permitir.

-Está tudo bem, em poucos dias vão estar como antes.

Relutantemente, volto a encarar seus olhos. Ele foi eletrocutado, dependendo de quanto tempo sua pele esteve em contato com a massa, há grandes chances de não só ter cortado, mas também queimado pele e carne. 

Me levanto, ficando de frente para ele, vagarosamente, deixando ele escolher se me afasta ou não, seguro sua mão direita, tomando cuidado para não encostar no braço. Além dos cortes, há muitas queimaduras. Me amaldiçôo mentalmente.

-Onde eu posso encontrar kit de primeiros socorros?

-Nós deixamos um em cada cômodo. Está no banheiro. Eu posso pegar...

-Não. Eu pego. 

Solto sua mão, cuidadosamente, e vou para o banheiro. Encontro o kit no armário abaixo da pia e volto para o quarto. Matteo permanece imóvel no lugar em que eu o deixei, parecendo desconsertado e com dor. 

Nós seguimos até a cozinha, onde eu me sento de frente para ele. Começo a limpar seus machucados com todo cuidado possível, me odiando ainda mais a cada careta que ele tenta esconder.

-Me desculpa. Eu não...

-Está tudo bem. - ele me interrompe - Eu ouvi você gritando.

-Tive um pesadelo. 

-Quer falar? - Levanto os olhos para olhar para ele.

Eu queria falar? Mesmo tendo fugido eu nunca esqueci tudo o que aconteceu comigo naquele lugar. Eu revivia cada acontecimento toda hora, em todo lugar, dormindo ou acordada. Como eu me sentiria se verbalizasse tudo aquilo? Como eu me sentiria se falasse com ele? Respiro fundo antes de voltar a cuidar dos machucados.

-Eu sonhei que estava em Maghdon.

-Foi a primeira vez?

-Não. Eu não tenho dormido muito desde que fugi, mas de alguma forma estou sempre voltando pra lá. Sentindo tudo aquilo de novo, o medo, o desespero, as algemas...

-Algemas? Você ficava algemada?

-A maior parte do tempo. As vezes ele precisava de mim, as vezes eram "missões".

-Que tipo de missões?

Me permito sentir de novo o sangue nas minhas mãos, os sons de ossos quebrando, pele e carne rasgando, os gritos. Lembro de como só duravam alguns segundos mas os rostos jamais saíram da minha mente.

-Daqui alguns dias os machucados vão cicatrizar por completo, mas seria melhor se você fosse a uma curandeira, ou se eu tirasse a parte queimada. Mas de qualquer forma, a curandeira seria a melhor opção.

Alguns são simples cortes e hematomas que em três ou quatro dias estarão muito melhores. Porém, no local onde minha mão esteve, a pele queimou e está apodrecendo rapidamente. É parte do que o meu dom faz. Por mais que tenha sido uma pequena parte, ainda sim doeria.

-Você pode tirar. Nós temos tudo que uma curandeira utilizaria aqui.

Ele me encara sem esboçar reação alguma. Eu o encaro em choque. Esse homem maluco e corajoso está me dando permissão pra cortar a pele dele. Um processo doloroso e difícil.

-Eu não sei se é uma boa ideia...

-É mais rápido assim. Eu não poderia ver uma curandeira hoje.

-Ok. - opto por ceder - Você me diz onde estão as coisas e eu pego.

Ele realmente tinha tudo o que eu precisaria. Ervas, antídotos, gaze, faixas. Eu precisei ir para fora do chalé pegar neve e me surpreendi ao ver como realmente aquele lugar era impossível de ser descoberto, ficava no meio do nada.

-Você tem certeza? - Coloco o balde com a neve em cima da mesa.

-Tenho. - Estende o braço mais uma vez.

Enrolo a neve em um pano e coloco por alguns segundos no braço dele, na esperança de que o deixe dormente. Respiro fundo, me preparando para o que estou prestes a fazer. Deixo a neve de lado e pego a ferramenta no kit, olho mais uma vez nos olhos de Azriel.

-Se precisar que eu pare, por favor, me diga.

Ele somente assente e eu começo. Um grunhido sai de seus lábios e ele cerra os punhos. Paro no mesmo instante.

-Está tudo bem. Pode continuar.

Seguro seu punho fechado e continuo, tirando toda a parte queimada e podre. Limpo o machucado, faço um curativo com as ervas para a cicatrização e enfaixo. 

Ele me estende o braço esquerdo. Seu maxilar está travado, mas não há lágrimas ou qualquer sinal de dor em seu rosto. Volto a pressionar seu braço com a neve. Mais uma vez seguro seu punho fechado e começo. Dessa o som que sai de seus lábios é mais urgente, e reverbera por todo o meu corpo, eu paro e olho pra ele, sentindo minhas mãos tremerem.

-Eu estou bem. - A frase se quebra no final e eu tremo com mais força - Continue, por favor - Ele abre o punho e entrelaça os dedos nos meus, me confortando - Eu estou bem.

Assinto. Aperto a faca com mais força, esperando que minha mão pare de tremer. Azriel dá um leve aperto na minha mão, me incentivando. Eu continuo. Seguindo o mesmo processo do outro braço. Nós suspiramos aliviados quando acaba. Eu não sou capaz de dizer nada, continuo o encarando, sua mão ainda na minha. É ele quem quebra o silêncio.

-Nós devíamos descansar.

-Sim. - Solto sua mão e me levanto, esperando para ver se ele precisa de ajuda - Obrigada, pelo que tem feito por mim.

-Não há de quê. - Ele sorri fracamente.

-Bom descanso, Matteo.

-Bom descanso, Lucille.

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