Seria mentira se eu dissesse que as palavras dele não me deixaram mais calma, mas ao mesmo tempo eu fiquei ansiosa pra mostrar que eu não preciso de proteção. Me levanto do sofá e passo rapidamente por ele, esbarrando em seu braço propositalmente, indo em direção ao quarto. Paro antes de abrir a porta.
-Agradeço pelas palavras de conforto e a hospitalidade. Mas... - Abro um sorriso irônico e tiro da manga a adaga que roubei de sua bainha quando passei por ele - Eu não costumo aceitar ofertas de proteção.
Me viro a tempo de vê-lo piscando de surpresa e conferindo a bainha, antes de seus lábios formarem um rápido sorriso de lado.
-Acho que vou ficar com essa. Por precaução. - Dou uma piscadinha e entro no quarto.
Deito novamente na cama, colocando a adaga debaixo do travesseiro e puxo as cobertas até o pescoço. Por um tempo eu apenas fico ouvindo as batidas frenéticas do meu coração, tentando organizar todos os confusos e embolados pensamentos.
Um desconhecido me ofereceu proteção depois de ter salvo a minha vida. Seguindo as ordens do rei, ele claramente é um dos inimigos. Mas eu não sigo mais suas ordens. Por algum motivo esse homem me salvou e se ofereceu pra me salvar novamente. Eu não consigo ver a razão, não consigo ver um motivo pra isso. Meus olhos começam a pesar ao mesmo tempo em que meu corpo relaxa. Eu adormeço.
As algemas nos meus pulsos e tornozelos pesam, meu corpo todo dói, não tenho forças pra nem mesmo levantar a cabeça. Estou mais uma vez algemada nas paredes de ferro do calabouço do castelo de Maghdon. A porta range, passos lentos e pesados vem na minha direção. Minha respiração fica mais rápida, mas é a única reação de medo que eu deixo que ele veja. Suas botas estão no meu campo de visão agora. Me obrigo a levantar a cabeça e encontrar seus olhos escuros e terríveis.
-Você tem uma missão.
Ele tomba a cabeça para o lado antes de um sorriso horrível e cruel brotar em seus lábios. Ele avança...
Mãos seguram meus ombros e eu grito para o escuro. Procurando fugir daquele lugar e daquela sensação eu solto meu poder, colocando minhas mãos nos braços que me seguram na cama e me permitindo ferir o meu agressor, que solta um grito de dor mas não se afasta. O som me afeta também e eu me sinto entrar em desespero, permito que mais do meu poder saia.
-Lucille! Você precisa parar! - As mãos saem dos meus ombros e seguram meu rosto. - Sou eu! Você está bem...
Abro os olhos e encontro as feições de Matteo se contorcendo de dor. Afasto as mãos dele. Por que ele está aqui? O pegaram também! Olho ao redor sentindo o pânico me puxar, abro a boca para implorar que ele fuja mas nada sai, nada entra também. Não consigo respirar. Começo a me debater, tentando puxar o máximo possível de ar, mas nada vem.
-Olha pra mim! - A voz agoniada está mais perto agora. - Olha pra mim, Lucille!
Meu olhar busca, desesperadamente, o dele. Seu rosto é a única coisa que eu consigo ver na escuridão, está a centímetros do meu e eu olho diretamente em seus olhos.
-Respira. - É com calma que ele fala agora - Continue olhando para mim. Você está aqui, está tudo bem.
Meu corpo começa a acalmar e aos poucos o ar começa a entrar e sair. Posso sentir a cama abaixo de mim, a gota de suor que escorre pela minha testa, as mãos calejadas e ásperas de Matteo nas minhas bochechas.
-Isso. Continue respirando.
As batidas do meu coração começam a voltar ao ritmo normal. Foi um pesadelo. Um pesadelo de um passado horrível. Sinto meu rosto molhado e pegajoso, provavelmente molhando também as mãos do homem que me olha com preocupação.
-Você está bem? - Ele sussurra e eu assinto - Eu vou me afastar agora, ok?
Assinto mais uma vez, respirando fundo. Ele tira uma mão e depois a outra, os olhos nunca deixando os meus. Só agora quando se levanta eu percebo que ele estava quase sob o meu corpo, não sei como reagir a isso. Não sei como reagir a tudo isso. Um gemido de dor sai de seus lábios e eu me sento na mesma hora. Meus olhos ardem mas mesmo assim eu consigo ver seus braços machucados.
-Está tudo bem.
Não consigo encarar seus olhos. Há cortes e hematomas desde os pulsos até os cotovelos. Eu fiz aquilo, o mínimo que eu poderia fazer é cuidar eu mesma dos ferimentos.
-Você não tem com o que se preocupar.
-Eu posso ajudar... - falo depressa - Se você me permitir.
-Está tudo bem, em poucos dias vão estar como antes.
Relutantemente, volto a encarar seus olhos. Ele foi eletrocutado, dependendo de quanto tempo sua pele esteve em contato com a massa, há grandes chances de não só ter cortado, mas também queimado pele e carne.
Me levanto, ficando de frente para ele, vagarosamente, deixando ele escolher se me afasta ou não, seguro sua mão direita, tomando cuidado para não encostar no braço. Além dos cortes, há muitas queimaduras. Me amaldiçôo mentalmente.
-Onde eu posso encontrar kit de primeiros socorros?
-Nós deixamos um em cada cômodo. Está no banheiro. Eu posso pegar...
-Não. Eu pego.
Solto sua mão, cuidadosamente, e vou para o banheiro. Encontro o kit no armário abaixo da pia e volto para o quarto. Matteo permanece imóvel no lugar em que eu o deixei, parecendo desconsertado e com dor.
Nós seguimos até a cozinha, onde eu me sento de frente para ele. Começo a limpar seus machucados com todo cuidado possível, me odiando ainda mais a cada careta que ele tenta esconder.
-Me desculpa. Eu não...
-Está tudo bem. - ele me interrompe - Eu ouvi você gritando.
-Tive um pesadelo.
-Quer falar? - Levanto os olhos para olhar para ele.
Eu queria falar? Mesmo tendo fugido eu nunca esqueci tudo o que aconteceu comigo naquele lugar. Eu revivia cada acontecimento toda hora, em todo lugar, dormindo ou acordada. Como eu me sentiria se verbalizasse tudo aquilo? Como eu me sentiria se falasse com ele? Respiro fundo antes de voltar a cuidar dos machucados.
-Eu sonhei que estava em Maghdon.
-Foi a primeira vez?
-Não. Eu não tenho dormido muito desde que fugi, mas de alguma forma estou sempre voltando pra lá. Sentindo tudo aquilo de novo, o medo, o desespero, as algemas...
-Algemas? Você ficava algemada?
-A maior parte do tempo. As vezes ele precisava de mim, as vezes eram "missões".
-Que tipo de missões?
Me permito sentir de novo o sangue nas minhas mãos, os sons de ossos quebrando, pele e carne rasgando, os gritos. Lembro de como só duravam alguns segundos mas os rostos jamais saíram da minha mente.
-Daqui alguns dias os machucados vão cicatrizar por completo, mas seria melhor se você fosse a uma curandeira, ou se eu tirasse a parte queimada. Mas de qualquer forma, a curandeira seria a melhor opção.
Alguns são simples cortes e hematomas que em três ou quatro dias estarão muito melhores. Porém, no local onde minha mão esteve, a pele queimou e está apodrecendo rapidamente. É parte do que o meu dom faz. Por mais que tenha sido uma pequena parte, ainda sim doeria.
-Você pode tirar. Nós temos tudo que uma curandeira utilizaria aqui.
Ele me encara sem esboçar reação alguma. Eu o encaro em choque. Esse homem maluco e corajoso está me dando permissão pra cortar a pele dele. Um processo doloroso e difícil.
-Eu não sei se é uma boa ideia...
-É mais rápido assim. Eu não poderia ver uma curandeira hoje.
-Ok. - opto por ceder - Você me diz onde estão as coisas e eu pego.
Ele realmente tinha tudo o que eu precisaria. Ervas, antídotos, gaze, faixas. Eu precisei ir para fora do chalé pegar neve e me surpreendi ao ver como realmente aquele lugar era impossível de ser descoberto, ficava no meio do nada.
-Você tem certeza? - Coloco o balde com a neve em cima da mesa.
-Tenho. - Estende o braço mais uma vez.
Enrolo a neve em um pano e coloco por alguns segundos no braço dele, na esperança de que o deixe dormente. Respiro fundo, me preparando para o que estou prestes a fazer. Deixo a neve de lado e pego a ferramenta no kit, olho mais uma vez nos olhos de Azriel.
-Se precisar que eu pare, por favor, me diga.
Ele somente assente e eu começo. Um grunhido sai de seus lábios e ele cerra os punhos. Paro no mesmo instante.
-Está tudo bem. Pode continuar.
Seguro seu punho fechado e continuo, tirando toda a parte queimada e podre. Limpo o machucado, faço um curativo com as ervas para a cicatrização e enfaixo.
Ele me estende o braço esquerdo. Seu maxilar está travado, mas não há lágrimas ou qualquer sinal de dor em seu rosto. Volto a pressionar seu braço com a neve. Mais uma vez seguro seu punho fechado e começo. Dessa o som que sai de seus lábios é mais urgente, e reverbera por todo o meu corpo, eu paro e olho pra ele, sentindo minhas mãos tremerem.
-Eu estou bem. - A frase se quebra no final e eu tremo com mais força - Continue, por favor - Ele abre o punho e entrelaça os dedos nos meus, me confortando - Eu estou bem.
Assinto. Aperto a faca com mais força, esperando que minha mão pare de tremer. Azriel dá um leve aperto na minha mão, me incentivando. Eu continuo. Seguindo o mesmo processo do outro braço. Nós suspiramos aliviados quando acaba. Eu não sou capaz de dizer nada, continuo o encarando, sua mão ainda na minha. É ele quem quebra o silêncio.
-Nós devíamos descansar.
-Sim. - Solto sua mão e me levanto, esperando para ver se ele precisa de ajuda - Obrigada, pelo que tem feito por mim.
-Não há de quê. - Ele sorri fracamente.
-Bom descanso, Matteo.
-Bom descanso, Lucille.
Matteo não voltou mais no quarto, mas eu também não voltei a dormir. Tive receio de que se dormisse poderia ter pesadelos piores e pudesse atacá-lo outra vez, então me obriguei a ficar acordada.Já era dia quando saí do quarto e me assustei quando o encontrei pelando de febre deitado no sofá. Depois de muita relutância, da parte dele, eu o arrastei até o quarto e o coloquei na cama.Me preocupei que os ferimentos tivessem infeccionado, mas aparentemente seu corpo só estava reagindo a dor extrema que sentiu, os machucados estavam bem.Troquei os curativos e pedi que ele dormisse enquanto eu preparava algo para que pudéssemos comer. Não achei que ele fosse capaz de comer algo além de sopa, e como haviam muitas latas, foi o que fiz.Quando voltei para o quarto ele estava dormindo. Lutei comigo mesma entre deixá-lo dormir ou acordá-lo para comer. A segunda opção venceu, já que eu não sabia quando foi a últim
Nós acabamos de comer em completo silêncio. Eu me obriguei a engolir a sopa, tinha perdido o apetite.-Você não vai tirar os meus pontos.-Por que não? - Afasta a tigela vazia.-Posso fazer isso sozinha.-Eu tenho certeza que sim, mas eu posso te ajudar. - Ele cruza os braços, me encarando - Compensar o que fez por mim.-Eu não fiz nada de mais.-Você cuidou de mim.-Você cuidou de mim primeiro.-Eu não vou forçar você, mas seria mais prudente que outra pessoa fizesse isso. Você pode acabar se ferindo de novo.Matteo respira fundo, se levantando e eu desvio o olhar do seu, observando minhas mãos cheias de cicatrizes e calos. Eu com certeza estou sendo imatura, e ele está certo, mas a ideia de ter outra pessoa observando uma vulnerabilidade minha ainda me apavora. Eu também me levanto, pegando nossas tigelas.<
Chegamos a conclusão de que não seria uma boa ideia eu usar a minha magia até que o feitiço fosse quebrado. Eu continuei esperando por julgamento ou repreensão, porém, recebi conforto e ajuda.A fogueira feita com corpos estala na minha frente, Matteo está ao meu lado, perto o suficiente para que suas asas impessam a neve e o vento de chegar até mim.-Se eles estão te rastreando pela sua magia é provável que estejam a caminho neste exato momento. Nós temos que nos apressar.Eu me viro para encara-lo. Não entendo como ele pode querer me ajudar depois de ver o que eu fiz. Se ele ao menos soubesse que aquilo não foi nem metade do que eu já fui capaz, do que eu sou capaz... Penso em contar tudo de uma vez para ele. Dizer quem eu fui, já que não sei quem eu sou agora. Várias imagens passam pela minha cabeça e o buraco ameaça voltar a me corroer, estremeço quando isso acontece, mas ele logo começa a diminuir quando as asas de
-Sua vez. - sussurro.Lentamente ele segura minha mão, indicando os pequenos furos ao redor dos meus pulsos.-O que fez isso?-O rei tinha certeza de que eu me rebelaria na primeira oportunidade, assim que eu tivesse consciência de que poderia fugir se quisesse. - Me surpreendo quando as palavras saem sem nenhum esforço - Então ele mandou que preparassem grilhões "especiais" para mim. - Solto uma risada irônica - Eram de ferro com pontas afiadas na parte de dentro, que perfuravam minha pele, injetando veneno para adormecer meus poderes e me mantendo sob controle. Eu ficava acorrentada pelos pulsos e tornozelos à parede. - Faço uma pausa, conseguindo sentir o peso das algemas - Algum tempo depois, Dominique, o homem que matei hoje, chegou com as duas peças que faltavam no jogo cruel deles. Uma coleira grossa e pesada, e uma focinheira, pra que eu não pudesse mais respondê-los ou debochar das palavras deles.Des
Após a refeição silenciosa, já que estávamos presos em nossos próprios pensamentos, Matteo não permitiu que eu lavasse a louça, então me aconcheguei na poltrona mais próxima da lareira, aproveitando seu calor, para esperá-lo.Devido a canseira e o estresse do dia, acabei dormindo em poucos minutos. Acordei em uma cama espaçosa, enrolada em várias cobertas, reconheci o local que eu havia deduzido como o quarto dele, já que suas roupas e pertences estavam no armário.Afasto o monte de cobertor que estava sobre o meu corpo e saio direto para o banheiro. A casa está toda iluminada pelo sol quando eu desço para a cozinha, há uma adaga que eu reconheço como a Fatiadora sobre um papel na mesa, eu os pego, percebendo que é um bilhete direcionado a mim:Lucille,Tive que sair para resolver algumas pendências, não devo demorar. Fique a vontade para andar pela casa ou pela cidade. Mande me chamar se precisar.
Nem mesmo um banho frio foi capaz de tirar o calor do meu corpo. Amaldiçoei mentalmente aquele homem por me deixar assim. Estava prestes a sair do banheiro quando ouço batidas na porta:-Lucille? Deixei algumas roupas para você no quarto, use-as se se sentir confortável. - Era a mesma voz sussurrada que estava tirando minha paz.-Eu... Ok. Obrigada.Bufo de raiva quando sinto minhas bochechas corarem mais uma vez. Permaneço colada a porta tentando, e falhando, escutar seus passos se afastando. Quando presumo que já tenha passado tempo suficiente eu corro para o quarto.Há várias trocas de roupas por cima da cama, a adaga que eu havia esquecido na sala de treinamento estava no meio, eu olho cada uma, observando cada detalhe diferente das que eu estava acostumada a vestir. Todas parecendo ter sido feitas para alguém maior que eu, mesmo assim algumas deixavam partes do corpo de fora, eu escolho uma legging
Os dias seguintes se seguiram iguais, eu agora passava as manhãs treinando na área, Matteo não voltou a treinar comigo, porém estava sempre presente, vez ou outra ele saía para fazer o que quer que fizesse, mas voltava a tempo das refeições, que agora fazíamos juntos.Antes de dormir eu me deitava ao lado da lareira para ler, o macho das sombras se sentava de frente para mim e agora tinha o estranho o hábito de me observar.Nossos pesadelos voltavam toda noite, os meus envolvendo meu passado, a cidade e o meu anfitrião, os dele eram desconhecidos por mim, algumas vezes eu vomitava, em outras eu só me levantava e corria para fora, mas em todos esses momentos terríveis o homem aparecia para me confortar. Eu procurava fazer o mesmo com ele, algumas vezes eu precisei acordá-lo, em outras eu me sentava ao seu lado e ficava em silêncio. Na maioria das vezes eu estava tão cansada que dormia na sala, em seu ombro ou em suas asas, mas sempre acor
Nós nos olhamos por muito tempo, a tensão podia ser cortada como um pedaço de bolo, o rosto do homem a minha frente estava inexpressivo, ele dá um passo a frente e as sombras nos rodeiam, seus olhos fixos nos meus. Não o culparia se ele me matasse, na verdade eu até agradeceria.-Isso não é uma coisa que se deva esconder. - Apresar de tudo, sua voz ainda é calma.-Eu sei, eu quis contar, acredite, eu quis muito. Eu só... - As palavras somem e eu me calo.-Lucille, você estava prestes a assassinar minha rainha e eu te trouxe diretamente a ela, para que ela pudesse quebrar o feitiço em você.Ayla, a rainha feérica beijada pela lua, capaz de quebrar qualquer feitiço ou maldição. É óbvio! Eu não havia relacionado antes e agora a revelação me atingiu em cheio.-Ayla... Foi para ela que você pediu ajuda?-Sim.-Eu não posso...-Acredite. - Ele me interrom