Matteo não voltou mais no quarto, mas eu também não voltei a dormir. Tive receio de que se dormisse poderia ter pesadelos piores e pudesse atacá-lo outra vez, então me obriguei a ficar acordada.
Já era dia quando saí do quarto e me assustei quando o encontrei pelando de febre deitado no sofá. Depois de muita relutância, da parte dele, eu o arrastei até o quarto e o coloquei na cama.
Me preocupei que os ferimentos tivessem infeccionado, mas aparentemente seu corpo só estava reagindo a dor extrema que sentiu, os machucados estavam bem.
Troquei os curativos e pedi que ele dormisse enquanto eu preparava algo para que pudéssemos comer. Não achei que ele fosse capaz de comer algo além de sopa, e como haviam muitas latas, foi o que fiz.
Quando voltei para o quarto ele estava dormindo. Lutei comigo mesma entre deixá-lo dormir ou acordá-lo para comer. A segunda opção venceu, já que eu não sabia quando foi a última vez que ele comeu.
-Matteo... - Respirei fundo tentando me acalmar, eu havia perdido as contas de quantas vezes eu o chamei e ele negou - Você vai tomar essa sopa agora ou eu mesma vou socá-la na sua garganta!
-Você não...
-Olha bem pra minha cara e me diz se eu não faria.
O macho abre um olho e depois o outro. Eu permaneço impassível. Suas asas se agitam uma vez e ele faz força pra levantar. Penso em ajudar, mas por mínimo que seja o movimento que eu fizer, minha máscara cairia e ele veria o quão desesperada eu estou. Porque essa é a verdade, eu estou desesperada. Eu passei a noite ouvindo ecos dos gritos e grunhidos de dor que ele soltou quando eu o ataquei e de quando precisei remover a pele queimada. Realmente me atormentou.
-Você dormiu? - Sua voz rouca me tira do transe - Parece cansada.
-Sério? Já se olhou no espelho? Você tá horrível.
Ele solta uma curta risada pelo nariz. Prendo um suspiro de alívio. Pego a bandeja com a sopa e coloco em seu colo, permaneço de braços cruzados até que ele comece a comer.
-Não esqueça o remédio. - Faço sinal para a xícara na bandeja.
-Onde você conseguiu?
-Eu fiz.
Ele para de comer, olha para o líquido de consistência horrível, a sopa e depois olha para mim, franzindo o cenho. Ergo as sobrancelhas interrogativamente, mas o homem não diz nada, faço mais um sinal para que volte a comer. Ele me obedece, comendo tudo. Quando acaba pega a xícara e a inspeciona. Reviro os olhos.
-Se eu quisesse te matar, já teria feito. - Tiro a bandeja do colo dele - É para a febre.
Depois de mais um olhar de cenho franzido, ele bebe o remédio, fazendo uma careta no final. Seguro uma risada.
-Agora você pode descansar. - Coloco a xícara na bandeja e vou até a porta.
-E você? - Sua voz sai fraca e cansada, é como eu sei que o remédio está fazendo efeito.
-Vou estar aqui. - Sussurro sabendo que ele já não me ouve mais.
Lavo as louças e volto rapidamente para o quarto, arrasto a poltrona para que fique ao lado de Matteo e me sento.
Me sinto um pouco culpada por ter omitido parte da verdade. Ele não tomaria se eu dissesse que o remédio o faria dormir, e ele precisava dormir.
Me aconchego na poltrona enquanto o observo. As olheiras mais leves que as minhas, mas ainda assim fundas, ele está pálido, e pela forma como suas calças de couro pendem em seus quadris, ele também emagreceu.
Jogo a cabeça para trás, tentando me obrigar a pensar em mim mesma, nos meus problemas, mas não consigo, o homem na minha frente está fraco e doente por minha causa. Eu o ataquei enquanto ele tentava me ajudar. Não é como se eu nunca tivesse feito isso antes, mas dessa vez eu não fui obrigada, eu fiz por querer. Pego no sono enquanto me autodeprecio.
Acordo envolta em escuridão. Pisco várias vezes tentando me adequar, mas não é culpa da noite ou do quarto. Estico a mão as pressas, apalpando a cama, e as cobertas, me acalmo quando encontro as asas e logo depois o braço de Matteo. Teteio no escuro até encontrar seu rosto, ele ainda dorme. Me jogo mais uma vez na poltrona, mais calma agora que o encontrei, e que tive a certeza de que são as suas sombras escurecendo o quarto. Elas não me deixam desconfortável, pelo contrário.
Segura.
Eu ouço a escuridão me falar e acredito nela, as sombras se condensam e eu as sinto me abraçar, me envolvendo com braços invisíveis, recebo o abraço de bom grado, me permitindo relaxar. Acabo dormindo mais uma vez.
O quarto está claro agora, não há sinal das sombras. Não sei dizer quanto tempo se passou, minhas pernas tremem um pouco quando eu me levanto, então concluo que dormi por muito tempo, mais do que deveria. Me aproximo da cama e coloco a mão sobre a testa de Matteo. A febre baixou.
-Você me drogou.
Me afasto rapidamente, com o coração disparado. Fui pega de surpresa. Eu o encaro e ele me encara de volta. Sua expressão é indecifrável.
-Eu não te droguei, eu te mediquei. - Respiro fundo algumas vezes para me recuperar do susto.
-Mas você sabia.
-Sabia.
-E não me avisou.
-Você não teria tomado se eu tivesse falado. E além do mais, sua aparência até melhorou.
Sigo para o banheiro ligando a torneira com água gelada para encher a banheira. Volto para o quarto, me aproximando vagarosamente da cama.
-Sua febre baixou, mas seu corpo ainda não está na temperatura normal. A banheira está enchendo com água gelada, pode ajudar.
Ele me olha mais uma vez com seu olhar penetrante antes de assentir. Me apresso para ajudá-lo, já que seu corpo ainda está fraco por causa do remédio. Eu o deixo no banheiro e sigo para a cozinha.
Esquento a sopa, coloco em duas tigelas e me sento para o esperar. Algum tempo depois ele aparece. Se senta de frente para mim e me encara, abrindo um sorrisinho irônico.
-Também colocou sonífero na sopa?
Reviro os olhos e tomo uma colherada, na esperança de que o incentive. Ele não se move e eu bufo.
-Quer que eu tome da sua também?
-Não... Não precisa. - Sorri mais uma vez - Eu só estou me perguntando se devo fazer o mesmo quando for remover seus pontos.
-O quê? - Paro de comer.
Matteo começa a comer. Eu continuo imóvel, sem saber do que ele está falando. Ou melhor, sem querer acreditar. O sorriso volta aos seus lábios antes de me responder.
-Quem você acha que costurou seu ferimento? - Ele dá uma piscadinha antes de voltar a comer, seu olhar sempre no meu.
Ele só pode estar de brincadeira.
Nós acabamos de comer em completo silêncio. Eu me obriguei a engolir a sopa, tinha perdido o apetite.-Você não vai tirar os meus pontos.-Por que não? - Afasta a tigela vazia.-Posso fazer isso sozinha.-Eu tenho certeza que sim, mas eu posso te ajudar. - Ele cruza os braços, me encarando - Compensar o que fez por mim.-Eu não fiz nada de mais.-Você cuidou de mim.-Você cuidou de mim primeiro.-Eu não vou forçar você, mas seria mais prudente que outra pessoa fizesse isso. Você pode acabar se ferindo de novo.Matteo respira fundo, se levantando e eu desvio o olhar do seu, observando minhas mãos cheias de cicatrizes e calos. Eu com certeza estou sendo imatura, e ele está certo, mas a ideia de ter outra pessoa observando uma vulnerabilidade minha ainda me apavora. Eu também me levanto, pegando nossas tigelas.<
Chegamos a conclusão de que não seria uma boa ideia eu usar a minha magia até que o feitiço fosse quebrado. Eu continuei esperando por julgamento ou repreensão, porém, recebi conforto e ajuda.A fogueira feita com corpos estala na minha frente, Matteo está ao meu lado, perto o suficiente para que suas asas impessam a neve e o vento de chegar até mim.-Se eles estão te rastreando pela sua magia é provável que estejam a caminho neste exato momento. Nós temos que nos apressar.Eu me viro para encara-lo. Não entendo como ele pode querer me ajudar depois de ver o que eu fiz. Se ele ao menos soubesse que aquilo não foi nem metade do que eu já fui capaz, do que eu sou capaz... Penso em contar tudo de uma vez para ele. Dizer quem eu fui, já que não sei quem eu sou agora. Várias imagens passam pela minha cabeça e o buraco ameaça voltar a me corroer, estremeço quando isso acontece, mas ele logo começa a diminuir quando as asas de
-Sua vez. - sussurro.Lentamente ele segura minha mão, indicando os pequenos furos ao redor dos meus pulsos.-O que fez isso?-O rei tinha certeza de que eu me rebelaria na primeira oportunidade, assim que eu tivesse consciência de que poderia fugir se quisesse. - Me surpreendo quando as palavras saem sem nenhum esforço - Então ele mandou que preparassem grilhões "especiais" para mim. - Solto uma risada irônica - Eram de ferro com pontas afiadas na parte de dentro, que perfuravam minha pele, injetando veneno para adormecer meus poderes e me mantendo sob controle. Eu ficava acorrentada pelos pulsos e tornozelos à parede. - Faço uma pausa, conseguindo sentir o peso das algemas - Algum tempo depois, Dominique, o homem que matei hoje, chegou com as duas peças que faltavam no jogo cruel deles. Uma coleira grossa e pesada, e uma focinheira, pra que eu não pudesse mais respondê-los ou debochar das palavras deles.Des
Após a refeição silenciosa, já que estávamos presos em nossos próprios pensamentos, Matteo não permitiu que eu lavasse a louça, então me aconcheguei na poltrona mais próxima da lareira, aproveitando seu calor, para esperá-lo.Devido a canseira e o estresse do dia, acabei dormindo em poucos minutos. Acordei em uma cama espaçosa, enrolada em várias cobertas, reconheci o local que eu havia deduzido como o quarto dele, já que suas roupas e pertences estavam no armário.Afasto o monte de cobertor que estava sobre o meu corpo e saio direto para o banheiro. A casa está toda iluminada pelo sol quando eu desço para a cozinha, há uma adaga que eu reconheço como a Fatiadora sobre um papel na mesa, eu os pego, percebendo que é um bilhete direcionado a mim:Lucille,Tive que sair para resolver algumas pendências, não devo demorar. Fique a vontade para andar pela casa ou pela cidade. Mande me chamar se precisar.
Nem mesmo um banho frio foi capaz de tirar o calor do meu corpo. Amaldiçoei mentalmente aquele homem por me deixar assim. Estava prestes a sair do banheiro quando ouço batidas na porta:-Lucille? Deixei algumas roupas para você no quarto, use-as se se sentir confortável. - Era a mesma voz sussurrada que estava tirando minha paz.-Eu... Ok. Obrigada.Bufo de raiva quando sinto minhas bochechas corarem mais uma vez. Permaneço colada a porta tentando, e falhando, escutar seus passos se afastando. Quando presumo que já tenha passado tempo suficiente eu corro para o quarto.Há várias trocas de roupas por cima da cama, a adaga que eu havia esquecido na sala de treinamento estava no meio, eu olho cada uma, observando cada detalhe diferente das que eu estava acostumada a vestir. Todas parecendo ter sido feitas para alguém maior que eu, mesmo assim algumas deixavam partes do corpo de fora, eu escolho uma legging
Os dias seguintes se seguiram iguais, eu agora passava as manhãs treinando na área, Matteo não voltou a treinar comigo, porém estava sempre presente, vez ou outra ele saía para fazer o que quer que fizesse, mas voltava a tempo das refeições, que agora fazíamos juntos.Antes de dormir eu me deitava ao lado da lareira para ler, o macho das sombras se sentava de frente para mim e agora tinha o estranho o hábito de me observar.Nossos pesadelos voltavam toda noite, os meus envolvendo meu passado, a cidade e o meu anfitrião, os dele eram desconhecidos por mim, algumas vezes eu vomitava, em outras eu só me levantava e corria para fora, mas em todos esses momentos terríveis o homem aparecia para me confortar. Eu procurava fazer o mesmo com ele, algumas vezes eu precisei acordá-lo, em outras eu me sentava ao seu lado e ficava em silêncio. Na maioria das vezes eu estava tão cansada que dormia na sala, em seu ombro ou em suas asas, mas sempre acor
Nós nos olhamos por muito tempo, a tensão podia ser cortada como um pedaço de bolo, o rosto do homem a minha frente estava inexpressivo, ele dá um passo a frente e as sombras nos rodeiam, seus olhos fixos nos meus. Não o culparia se ele me matasse, na verdade eu até agradeceria.-Isso não é uma coisa que se deva esconder. - Apresar de tudo, sua voz ainda é calma.-Eu sei, eu quis contar, acredite, eu quis muito. Eu só... - As palavras somem e eu me calo.-Lucille, você estava prestes a assassinar minha rainha e eu te trouxe diretamente a ela, para que ela pudesse quebrar o feitiço em você.Ayla, a rainha feérica beijada pela lua, capaz de quebrar qualquer feitiço ou maldição. É óbvio! Eu não havia relacionado antes e agora a revelação me atingiu em cheio.-Ayla... Foi para ela que você pediu ajuda?-Sim.-Eu não posso...-Acredite. - Ele me interrom
⚠️ Alerta de gatilhos ⚠️Nos próximos dias eu só saía do quarto de madrugada para comer e voltava o mais rápido possível, não querendo correr o risco de encontrar Matteo. Ele batia na porta todos os dias, por horas pedindo para que eu saísse ou o deixasse entrar, eu o ignorava todas as vezes, esperando que ele desistisse. O que não aconteceu.Em dois dias eu já havia acabado de ler todos os livros da estante, em cinco dias eu mesma havia arrancado os pontos do meu ferimento, em sete dias eu passava mais tempo dormindo do que acordada, em dez dias eu tinha certeza de que estava louca."-Aí está você! - O rei gargalhava. - Eu sabia que você tinha herdado alguma coisa da sua verdadeira mamãe!Eu estava tremendo, estava de joelhos em uma poça de sangue, eu olho para o corpo destruído na outra extremidade do calabouço e depois para as minhas mãos, mãos de criança, tentando entender o que foi que eu fiz. O homem afaga me