O sol aquece minha face quando saio da caverna escura para o dia claro e quente, ele é bem vindo depois da noite fria e mal dormida. Tiro minha faca da bainha presa à minha coxa direita enquanto apuro os ouvidos, tentando escutar se eles já conseguiram me encontrar.
Meses. Tem meses que ouvi falar do fim da guerra contra o rei de Maghdon. Meses que finalmente me vi longe das garras do monstro, bom... Nem tanto. Desde a minha fuga, mais e mais deles continuam vindo, e as últimas bestas conseguiram deixar um estrago bem maior. Coloco a mão na ferida aberta, e de cor estranha, na minha costela.
Depois de confirmar que estava sozinha, rasgo um pedaço da túnica e amarro forte sobre o machucado. Uma das coisas que aprendi com o rei foi não demonstrar dor, independente de estar quase me matando. Forço meus pés a continuarem andando. Eu não sei para onde vou, apenas caminho, seguindo o estranho puxão que vem de dentro do meu estômago. Venho seguindo ele desde a minha fuga, talvez ele me leve a algum lugar, ou talvez não seja nada, mas sinto esperança de imaginar que possa estar me guiando para longe, por mais que o longe possa ser a morte.
Deduzo que acabo de entrar no Reino do Fogo, pelas folhas nas árvores que agora não são mais tão verdes como as outras que ficaram para trás, elas tem a coloração alaranjada e vermelha. Se a dor na costela, o cansaço e a cede não fosse tanta, eu teria reparado em como aquele lugar é bonito, mas havia poucos metros entre a minha garganta seca e um córrego, e era isso que importava.
Eu estava desidratada, tem muito tempo desde a última vez que bebi água. Não me arrisco mais a entrar nas cidades depois que a pousada em que eu estava hospedada foi atacada. Eles queriam a mim e pra isso mataram a maioria dos hóspedes. Antes que eu pudesse chegar na beira do córrego meu corpo cede e caio de joelhos no chão duro, a velha dor das costelas se mistura com a nova, enterro minhas mãos na terra e aperto o mais forte possível, evitando uma careta ou um grunhido, respiro fundo antes de me arrastar até a água. O frio em contato com as minhas mãos machucadas traz alívio na mesma hora e eu aproveito para molhar o rosto antes de beber o máximo possível.
Com cuidado, me sento fingindo não sentir a dor gritante nos meus joelhos, desamarro o pedaço de túnica para verificar o ferimento na costela. Está pior. O corte fundo, que já estaria pelo menos cicatrizando se não fosse o maldito veneno, agora estava babando. Molho o tecido na água e começo a limpar o ferimento, rangendo os dentes a cada contato, depois de alguns minutos, volto a cobrir o machucado. Vagarosamente me levanto e volto a andar.
É quase noite quando me apoio contra uma árvore, sentindo a roupa encharcada e meu corpo muito suado, minhas pernas tremem e tenho dificuldade para me manter de pé. Coloco a mão direita sobre a testa, febre, obviamente o corte infeccionou. Encosto o cabeça no tronco áspero da árvore, fecho os olhos tempo o suficiente para escutar um sussurro perto o bastante do meu ouvido.
Cuidado...
Abro os olhos e me abaixo ao mesmo tempo em que as garras da besta atingem o local onde minha cabeça estava a poucos segundos atrás. Puxo a faca me aproveitando da vantagem de estar de frente para o abdômen da fera e perfuro o mais fundo possível. O sangue escuro cai sobre mim e ela ruge, furiosa. Puxo a faca e rolo para o lado, me levanto e começo a correr o máximo que a dor e o cansaço permitem.
Ela não está sozinha, elas nunca estão. A segunda besta atinge a lateral do meu corpo e eu sou arremessada no chão. Sufoco um grito quando a dor reverbera por todo o meu corpo. Alcanço a outra faca na bainha da cintura e me levanto para atacar. As duas estão de frente para mim agora, mas eu tenho chance, mesmo que seja pouca, elas têm uma desvantagem, as bestas não pensam. Elas vem juntas e eu desvio com facilidade, rasgando a coxa da fera mais próxima, enquanto ela ruge, eu ataco de novo, dessa vez perfurando suas costas, não perco tempo e pulo para a próxima, rasgando pele, carne e tendão no processo. Eu giro e ataco, abaixo e ataco, me esforçando para fugir das garras e presas, fazendo uma dança letal. Aproveito todas as chances possíveis para feri-las.
A primeira besta morre com a garganta rasgada. A segunda cai com uma das minhas facas cravadas no olho. E eu caio exausta de costas na grama, respirando fundo e lutando contra a dor que quase me faz estremecer. Me obrigo a ficar de pé quando ouço mais passos e rugidos furiosos vindo da floresta. Não sei quanto dano elas me causaram, há muito sangue em mim e sinto que a qualquer momento a exaustão vai me tomar e então não terei chance. Mas ainda tenho uma carta na manga, guardei uma última gota do meu poder para atravessar, mas para onde ir? A fisgada no meu estômago fica mais forte, querendo marcar presença, e mais uma vez eu ouço o sussurro.
Siga!
Os rugidos estão mais perto agora, em questão de segundos eles me alcançarão. Meu corpo todo treme em antecipação ao esforço que vou ter que fazer. Sabendo que não posso desperdiçar, opto por seguir meus instintos, fecho os olhos e sinto a fisgada, me prendo a ela como se fosse uma linha e atravesso.
Frio. A linha me trouxe para um lugar frio. Um suspiro surpreso me faz abrir os olhos e encontrar o rosto de um macho olhando para mim. Eu não tenho tempo de me defender, correr, ou simplesmente pensar antes do esgotamento vir sobre mim e me levar direto a escuridão.
Abro meus olhos encontrando-me em uma completa escuridão. Imediatamente detecto que onde quer que eu esteja, não estou sozinha. Não ouso me mexer. Avalio mentalmente quais as minhas chances em um possível combate.-Você está acordada. - Me sobressalto ao ouvir a voz masculina que reverbera por toda escuridão -Eu não sou seu inimigo. - Ela é rouca e parece acompanhada de sussuros.-Por que eu deveria acreditar? - Pergunto, obrigando meus olhos a se acostumarem com a escuridão.-Se eu quisesse matar você... - A voz se aproxima e eu fico em estado de alerta - Eu já teria feito.Apesar do clima tenso, sorrio de lado. Arrogante. Ele claramente está certo, mas eu não diria isso. A escuridão começa a fazer sentido para mim e eu observo uma forma andar de um lado para o outro de frente ao local em que estou deitada. Meu sorriso se alarga quando eu mergulho na escuridão, surgindo atrás do macho alado que me observava. Rapida
Tranco a porta do quarto antes de me dirigir ao banheiro. Há uma enorme banheira no centro do cômodo, eu ligo a torneira enquanto vou até o espelho grande e largo pendurado na parede oposta.O ruído de surpresa que deixa meus lábios é inevitável. Eu não me lembro quando foi a última vez que me vi no espelho, mas eu posso afirmar que essa não é a imagem que eu costumava ver. As mangas longas do suéter em que me foi vestido parecem largas demais para os meus braços, a calça pende de um jeito estranho sobre meu quadril que antes fora largo, meus cabelos longos estão ralos e desbotados, tenho olheiras roxas e fundas, minhas bochechas estão ocas e há um corte em cicatrização na maçã do meu rosto, os olhos verdes parecem sem vida mas eu duvido que alguma vez tivesse sido diferente. Permito que a calça desça até os meus tornozelos e passo o suéter pela cabeça, deixando-o se juntar ao restante da roupa. Não visto nada por baixo.A visão agora me
Seria mentira se eu dissesse que as palavras dele não me deixaram mais calma, mas ao mesmo tempo eu fiquei ansiosa pra mostrar que eu não preciso de proteção. Me levanto do sofá e passo rapidamente por ele, esbarrando em seu braço propositalmente, indo em direção ao quarto. Paro antes de abrir a porta.-Agradeço pelas palavras de conforto e a hospitalidade. Mas... - Abro um sorriso irônico e tiro da manga a adaga que roubei de sua bainha quando passei por ele - Eu não costumo aceitar ofertas de proteção.Me viro a tempo de vê-lo piscando de surpresa e conferindo a bainha, antes de seus lábios formarem um rápido sorriso de lado.-Acho que vou ficar com essa. Por precaução. - Dou uma piscadinha e entro no quarto.Deito novamente na cama, colocando a adaga debaixo do travesseiro e puxo as cobertas até o pescoço. Por um tempo eu apenas fico ouvindo as batidas frenéticas do meu coração, tentando organizar todos os
Matteo não voltou mais no quarto, mas eu também não voltei a dormir. Tive receio de que se dormisse poderia ter pesadelos piores e pudesse atacá-lo outra vez, então me obriguei a ficar acordada.Já era dia quando saí do quarto e me assustei quando o encontrei pelando de febre deitado no sofá. Depois de muita relutância, da parte dele, eu o arrastei até o quarto e o coloquei na cama.Me preocupei que os ferimentos tivessem infeccionado, mas aparentemente seu corpo só estava reagindo a dor extrema que sentiu, os machucados estavam bem.Troquei os curativos e pedi que ele dormisse enquanto eu preparava algo para que pudéssemos comer. Não achei que ele fosse capaz de comer algo além de sopa, e como haviam muitas latas, foi o que fiz.Quando voltei para o quarto ele estava dormindo. Lutei comigo mesma entre deixá-lo dormir ou acordá-lo para comer. A segunda opção venceu, já que eu não sabia quando foi a últim
Nós acabamos de comer em completo silêncio. Eu me obriguei a engolir a sopa, tinha perdido o apetite.-Você não vai tirar os meus pontos.-Por que não? - Afasta a tigela vazia.-Posso fazer isso sozinha.-Eu tenho certeza que sim, mas eu posso te ajudar. - Ele cruza os braços, me encarando - Compensar o que fez por mim.-Eu não fiz nada de mais.-Você cuidou de mim.-Você cuidou de mim primeiro.-Eu não vou forçar você, mas seria mais prudente que outra pessoa fizesse isso. Você pode acabar se ferindo de novo.Matteo respira fundo, se levantando e eu desvio o olhar do seu, observando minhas mãos cheias de cicatrizes e calos. Eu com certeza estou sendo imatura, e ele está certo, mas a ideia de ter outra pessoa observando uma vulnerabilidade minha ainda me apavora. Eu também me levanto, pegando nossas tigelas.<
Chegamos a conclusão de que não seria uma boa ideia eu usar a minha magia até que o feitiço fosse quebrado. Eu continuei esperando por julgamento ou repreensão, porém, recebi conforto e ajuda.A fogueira feita com corpos estala na minha frente, Matteo está ao meu lado, perto o suficiente para que suas asas impessam a neve e o vento de chegar até mim.-Se eles estão te rastreando pela sua magia é provável que estejam a caminho neste exato momento. Nós temos que nos apressar.Eu me viro para encara-lo. Não entendo como ele pode querer me ajudar depois de ver o que eu fiz. Se ele ao menos soubesse que aquilo não foi nem metade do que eu já fui capaz, do que eu sou capaz... Penso em contar tudo de uma vez para ele. Dizer quem eu fui, já que não sei quem eu sou agora. Várias imagens passam pela minha cabeça e o buraco ameaça voltar a me corroer, estremeço quando isso acontece, mas ele logo começa a diminuir quando as asas de
-Sua vez. - sussurro.Lentamente ele segura minha mão, indicando os pequenos furos ao redor dos meus pulsos.-O que fez isso?-O rei tinha certeza de que eu me rebelaria na primeira oportunidade, assim que eu tivesse consciência de que poderia fugir se quisesse. - Me surpreendo quando as palavras saem sem nenhum esforço - Então ele mandou que preparassem grilhões "especiais" para mim. - Solto uma risada irônica - Eram de ferro com pontas afiadas na parte de dentro, que perfuravam minha pele, injetando veneno para adormecer meus poderes e me mantendo sob controle. Eu ficava acorrentada pelos pulsos e tornozelos à parede. - Faço uma pausa, conseguindo sentir o peso das algemas - Algum tempo depois, Dominique, o homem que matei hoje, chegou com as duas peças que faltavam no jogo cruel deles. Uma coleira grossa e pesada, e uma focinheira, pra que eu não pudesse mais respondê-los ou debochar das palavras deles.Des
Após a refeição silenciosa, já que estávamos presos em nossos próprios pensamentos, Matteo não permitiu que eu lavasse a louça, então me aconcheguei na poltrona mais próxima da lareira, aproveitando seu calor, para esperá-lo.Devido a canseira e o estresse do dia, acabei dormindo em poucos minutos. Acordei em uma cama espaçosa, enrolada em várias cobertas, reconheci o local que eu havia deduzido como o quarto dele, já que suas roupas e pertences estavam no armário.Afasto o monte de cobertor que estava sobre o meu corpo e saio direto para o banheiro. A casa está toda iluminada pelo sol quando eu desço para a cozinha, há uma adaga que eu reconheço como a Fatiadora sobre um papel na mesa, eu os pego, percebendo que é um bilhete direcionado a mim:Lucille,Tive que sair para resolver algumas pendências, não devo demorar. Fique a vontade para andar pela casa ou pela cidade. Mande me chamar se precisar.