Capítulo III

O que tinha acabado de acontecer ali? Eu estava sentado na minha moto de frente a pequena casa amarela chamativa, atordoado sem saber o que tinha acabado de acontecer.

A mulher tinha acabado de me beijar e correu como o diabo fugindo da cruz sem mais nem menos.

Eu não tinha feito nada além de retribuir o ataque sedutor dela.

Havia pensado em beijá-la quando estávamos no escritório, ela gargalhando descontraída, eu segurando seu rosto delicado, e foi só olhar aqueles olhos castanhos e penetrantes para querer atacar seus lábios.

Ela tinha um gosto, agora eu sabia, de chocolate e whisky, é o sabor que tinha deixado em minha boca.

Encarei a casa por mais um tempo, às luzes ainda apagadas, nem sinal dela. Então coloquei minha Harley em movimento, atravessando as ruas de volta ao bar ainda sem entender o surto dela.

Maria Nascimento, uma mistura de menina e mulher como nunca tinha visto antes.

O seu tamanho não atrapalhou que ela derrubasse um dos assaltantes com uma frigideira como me disse, quando cheguei encontrei um sujeito no chão e dois outros concentrados nela encolhida no canto, por um minuto achei que estivesse machucada ao ver seus olhos fechados com tamanha força.

Aproveitei a distração para desarmar o babaca que fazia mira contra ela, depois de bater seu braço contra o balcão, o fazendo soltar a arma com a dor, lhe acertei um bom cruzado, foi tudo tão rápido que ele não teve tempo nem de se defender e já estava caído no chão.

Seu amigo me encarou e antes que fizesse algum movimento contra a garota o arranquei de lá atirando seu corpo magricelo em cima de um monte de panelas.

Assim que consegui chegar perto dela enxerguei seu rosto machucado e meu sangue ferveu.

Porque não pegavam alguém do tamanho deles para agredir? Ah sim, porque acabariam onde estavam, no chão!

Ela tinha tido uma tremenda sorte que eu estivesse chegando ao bar naquele minuto, tinha acabado de deixar Will na casa da minha mãe, para poder passar o resto da noite trabalhando no bar, noites de sábado eram agitadas.

Então o barulho inconfundível de tiro veio da Cantina, não pensei duas vezes e corri pra lá.

Sei o quanto imbecil foi minha atitude em correr para o meio do tiroteio sem ter uma arma ou ligar para a polícia antes, mas só pensei na baixinha de roupas coloridas e cara enfezada que com certeza estava lá dentro.

— E então salvador. — Mario falou se aproximando enquanto eu estacionava.  — Ganhou a garota?

Olhei de relance para ele, havia uma mulher abraçada ao seu corpo de costas para onde eu estava, a luz baixa ajudou para que eu não conseguisse reconhecê-la.

— Sua mulher sabe que você está aqui e com outra? — minha fala fez imediatamente a mulher se afastar empurrando o homem para longe de seu corpo.

Assisti ela marchar rebolando, a bunda apertada e bem desenhada na calça de vinil preta, voltando para dentro do bar.

— Qual é cara porque estragou minha diversão? — o homem choramingou se aproximando e arrumando as calças descaradamente. — Só porque sua donzela te deixou na mão não quer dizer que deva acabar com os amigos.

Eu dei risada de sua fala, sabendo que qualquer dia desses a sua mulher iria descobrir e ia largar aquela cara feia por outro homem bem mais bonito e descente. Elena tinha potencial, era linda e inteligente, uma pena que tivesse se apaixonado por um babaca.

— Qualquer dia desses, você vai acabar sem mulher e sem as bolas. — puxei a porta pesada dos fundos para entrar já ouvindo a cacofonia grande lá dentro me atingir. — Porque não vai pra casa e faz ao menos uma mulher feliz essa noite, a sua esposa!

Não sabia qual era o problema com esses malditos idiotas. Boceta é bom? É ótimo! Mas ter uma pessoa ao seu lado e trocar por outras dez não era nada bom, prova disso é que depois de pegar outra na rua eles sempre voltavam para suas mulheres.

Eu já tinha sido casado e nunca nessa vida ousei trair Luna, se eu não podia respeitar a mulher com quem estava e lhe dar o mínimo que era fidelidade, não merecia estar com ela. Meu pensamento, me julguem.

Mas há um bom tempo tinha minha vida de solteiro, quatro anos para ser mais exato. Se dissesse que passava minhas noites em celibato estaria mentindo, eu era um homem fiel quando tinha uma mulher, agora eu não me importava se existisse uma fila delas prontas para sentar gostoso. Era só questão de dividir!

Meus dias eram consumidos por Will, cuidar de um menino de quatro anos não era trabalho fácil, na verdade nunca foi em nenhuma idade. As noites era o bar que me ocupava, não tinha muitos funcionários, não podia me dar esse luxo.

Então eu estava sempre por aqui para ajudar Débora e Lisa, especialmente em dias cheios como hoje. Dar uma escapada apenas em dias de semana, como segundas e terças. Domingos eram sagrados, reservado para família, e quando digo família me refiro a Will, minha mãe e um bando de homens barbudos e mulheres fortes e malucas, todos uniformizados com os coletes do moto clube.

— Não acredito que você terminou tão rápido dessa vez. — Lisa me provocou quando me viu chegar no balcão para ajudar. — Ela é gata, mas isso é novidade Miguel.

— Haha, muito engraçado. Porque todos acham que a levei em casa para transar?

— Porque você não perdoa ninguém! — Débora apareceu com a bandeja cheia de copos vazios e rapidamente começamos a encher com as novas bebidas. Aquilo era um exagero, eu não era tão devasso assim! — Essa sexta foi o que? As gêmeas saindo do seu escritório com as roupas amarrotadas depois de passarem a noite com você.

Ok, talvez eu fosse devasso assim, em minha defesa eu era um homem solteiro e com uma libido enorme!

— Sem falar que você salvou a garota cara, um beijinho em agradecimento seria pouco. — Lisa pontuou.

— Eu não ajudei por isso. Céus, queriam que eu assinasse um contrato antes? "Se eu te salvar você me da sua boceta em agradecimento"? Vocês são malucas! — murmurei me afastando para atender um cliente que se debruçava no balcão.

— Só estou dizendo que se um homem com sua aparência me salvasse como fez eu sentaria nele a noite toda. — para a ruiva não passou despercebido os olhares de alguns clientes que estavam por perto.

Gargalhei com sua fala, não era mentira que ela faria isso, na verdade não precisava nem salvá-la, Lisa adorava um homem grande e barbudo.

— Eu a deixei em casa, ela me agradeceu e fim da história. — menti. Ela não tinha me agradecido em nenhum momento.

— Vem cá, fala a verdade nem um beijinho de boa noite? — Débora perguntou chegando mais perto como se partilhássemos um segredo.

Senti meus lábios me traírem se abrindo em um sorriso ao lembrar de seu ataque.

— Eu sabia! — Lisa gritou batendo na madeira como se tivesse acabado de falar truco.

Decidi ignorar as duas malucas e tratei de correr no atendimento, a banda tocava a todo vapor e as pessoas não pareciam a fim de ir embora tão cedo.

Trabalhei duro madrugada a dentro, não tendo tempo pra respirar ou voltar ao assunto com as meninas, mas isso não impediu que minha mente girasse em torno do rosto delicado de pele negra, os cachos castanhos e os olhos incisivos.

Mas foi só quando entrei em casa, finalmente em meu refúgio, já às seis horas da manhã que me permiti pensar em seus lábios, o gosto deles na minha boca. Chocolate e whisky, não tinha como esquecer!

Agora toda vez que a visse passar pela rua iria pensar no sabor mais estranho e delicioso que poderia sentir vindo de seus lábios.

Foi com esse pensamento que eu peguei em um sono profundo.

— Papai, papai. — ouvi aquela voz que me trazia alegria na mesma proporção que me deixava louco. — A vovó disse que tá na hora.

Enquanto falava Will não parava de pular em minhas costas, ele sempre me acordava desse jeito? Sim. Algum dia tinha se cansado? Não.

— Hora de que? — resmunguei ainda com o rosto apertado contra o travesseiro.

— Hora de você papa.

— Que horas são? — Will estava aprendendo a ver as horas no relógio de ponteiro e eu adorava incentivá-lo mais ainda.

— O ponteiro grande tá... — pensou por um tempo parando de pular para sussurrar os números que apontavam até ter certeza — Doze! — comemorou me arrancando um sorriso amassado.

— E o pequeno? — meu filho pensou e pensou, quieto por um bom tempo, então pulou em minhas costas uma última vez antes de correr gritando:

— O papai comeu!

Joguei o lençol para o lado e fui atrás do monstrinho que corria pela casa, sacudindo a cabeleireira loira e gargalhando. Assim que o peguei jogando seu corpo no ar seu grito um misto de surpresa e felicidade me fez gargalhar.

— E agora vou devorar você! — rosnei tentando soar como um animal e mordi sua barriga.

Will ria e se contorcia em meu colo com as cócegas que causava. A gargalhada mais gostosa que eu já tinha ouvido, antes disso todas eram apenas boas gargalhadas no máximo, mas a primeira vez que ele sorriu pra mim foi como se o mundo inteiro virasse do avesso. Era tudo sobre ele desde então.

— Que tal se as duas ferinhas esfomeadas vierem logo para a mesa? — dona Magda chamou saindo da cozinha e indo direto para o jardim nos fundos da casa. — Estão todos esperando.

Minha mãe tinha sido minha parceria a vida toda, mas quando me vi viúvo e com um filho no colo ela foi meu alicerce, meu apoio. Era a mulher de nossas vidas!

Quando saímos para o jardim, seguindo a matriarca, encontramos a galera toda reunida. Todo pessoal do moto clube que meu pai praticamente fundou estava ali.

— E ai cara, pensei que não ia acordar! — Jonathan, carinhosamente apelidado de Brutos e atual presidente do clube falou.

— Tem ideia que horas fui dormir? — murmurei dando um tapinha em seu ombro, disfarçando apenas para chegar mais perto e lhe dar uma chave de braço e arrancá-lo de seu lugar a mesa.

A maioria de nós ali tínhamos crescido juntos, não era atoa que agíamos como um bando de irmãos malucos em volta da mesa, enquanto minha mãe e mais umas old lady nos encaravam enquanto rolávamos no chão.

— Já chega! Tá já deu! — Brutos gritou batendo em meu braço, mas foi só eu soltá-lo para que ele se jogasse novamente no chão em cima de mim. — Fala a verdade você estava era sonhando com alguma gostosa. — o desgraçado provocou enquanto se esfregava em mim me apertando no chão.

— Não sabia que estava rolando uma convenção de meninas! — Denis, o vice presidente do clube, se juntou a ele me esmagando no chão.

Os dois homens eram enormes, sem mais, Denis tinha por volta de um metro e oitenta e Brutos com seus quase dois metros, isso sem falar nos músculos que cultivavam com muito afinco.

— Chega os três, a comida está esfriando! — mamãe gritou e rapidamente a bagunça de cabelos e músculos se desfez.

Nos sentamos todos a mesa, as crianças ficavam na mesa menor ao lado e os quase adultos juntos.

Cada um com sua mulher, menos eu e Brutos, éramos os únicos solteiros do grupo. Brutos por não querer compromisso com nenhuma mulher, eu por estar muito ocupado sendo viúvo e criando um filho.

— Jonathan, pode dar graças meu filho. — mamãe ordenou gentilmente.

Ela era a única que tinha direito de chamar o traste assim, afinal ela tinha o visto nascer e crescer, limpou a bunda dele mais vezes do que qualquer mulher vai chegar perto de lá.

Ele não discutiu, apenas baixou a cabeça e deu graças pela família, pelos amigos, pela comida e bebida. Amém! Aqui nessa mesa não importava se acreditávamos em algum deus ou não, sempre tínhamos que ser gratos pelo que temos.

"Agradeça como uma demonstração de amor a todos a sua volta", foi o que a mãe de Brutos nos disse quando estávamos no auge da rebeldia e não entendíamos como fazendo tudo o que nossos pais faziam, chegava nesse momento e eles fechavam os olhos e agradeciam. Nunca mais discutimos.

— Ei tigre. — Denis me chamou pelo meu velho apelido, que apenas eles insistiam em continuar usando. — Ouvi que você ajudou a prender assaltantes ontem. — falou chamando a atenção de todos.

— Não foi tudo isso. — murmurei já vendo o olhar de minha mãe do outro lado da mesa me encarando com uma cara preocupada.

— Ouvi que estavam até armados cara, acho que foi algo sim. Desembucha!

— Desde quando você sai por ai bancando o herói? — Ana questionou terminando de fazer o prato do filho dela com Denis.

O garotinho tinha dois anos a mais que Will e eram amigos inseparáveis.

— O que queriam? Que eu deixasse a mulher ser assaltada e possivelmente morta? — resmunguei me servindo.

— Eu sabia que tinha mulher na parada! — Brutos gritou. — Vai quem é a maluca da vez?

Dei risada de sua pergunta, pois maluca era a palavra que podia definir ela. Enfrentando ladrões com uma panela, me beijando e correndo em seguida, ela só podia ser maluca!

— Isso define bem ela. É a dona do restaurante do outro lado da rua, três homens invadiram e tiveram a má sorte de encontrar com ela.

A imagem do homem desacordado invadiu minha mente, mas antes que eu conseguisse conter meus pensamentos voaram para ela dançando no bar horas depois, como se nada tivesse acontecendo. O vestido floral esvoaçando enquanto ela rodopiava com Débora ao som de AC/DC. Os cabelos cacheados sacudindo junto dos seus passos e as bochechas levemente vermelhas, não sei se pela bebida ou o calor.

Maria destoava totalmente do lugar e das pessoas a sua volta, mas era como se algo atraísse meus olhos para ela ali, tão livre e entregue, cantarolando algumas frases da música sem notar o rosto machucado.

Wind of Change tocou no fundo da minha mente, ignorando todo o barulho e a música a nossa volta, enquanto eu só tinha olhos para ela, que parecia exatamente isso: um vento de mudança.

— E o que aconteceu? — Brutos insistiu me trazendo de volta ao presente.

— Quando ouvi um tiro corri pra lá, ela já tinha derrubado um deles com uma panela. Mas havia mais dois, então desarmei um deles e os coloquei pra dormir.

Alguns assoviaram, ou ergueram as long necks em comemoração gargalhando.

— Ganhou a garota? — Laura lançou a pergunta que todos queriam fazer ainda com um sorriso estampado no rosto.

Ela era irmã de Brutos e apesar de todos os esforços dele para afastá-la dessa vida do clube, a mulher sempre voltava.

— Porque todo mundo continua me perguntando isso? Não, ela agradeceu e tomou umas no bar, antes de eu deixá-la em casa e dar a noite por encerrada!

Vários murmúrios de descrença me rondaram, ninguém acreditava na minha ação despretensiosa e inocente. Eu devia estar mesmo me comportando como um puto e essa era a comprovação. Mas resolvi ignorar apenas encarando minha família maluca e disfuncional enquanto almoçávamos.

Muitos anos atrás James Smith veio fugido dos Estados Unidos, sendo obrigado a deixar para trás seu antigo clube enquanto era caçado pela polícia de quase todos os estados de lá.

Assim que chegou aqui ele não perdeu tempo e começou a rondar por São Paulo em busca de pessoas para participar do novo clube de motoqueiros. Oferecendo dinheiro diante de uma crise financeira que o povo passava aqui não foi difícil para atrair meu pai, Pedro e Benício, o pai de Brutos.

Logo eles entenderam que a forma de ganhar dinheiro dele não era tão legal, mas eles não se importaram. Não demorou e os três tinham montado aqui a primeira sede brasileira dos Devil's Head MC.

Todos nós seguimos os caminhos dos nossos pais, era bom se sentir poderoso, correndo perigo. A adrenalina correndo por suas veias pode ser bem sedutora e viciante.

Mas então quando Luna morreu durante o parto eu soube que não poderia continuar seguindo nessa vida. Will foi colocado em meus braços e uma adrenalina totalmente diferente correu em minhas veias, eu já tinha visto pessoas morrerem na minha frente, membros do clube e mesmo que soubesse que ele ainda teria minha mãe e que ninguém do clube viraria as costas pra ele, não quis pagar pra ver meu filho ficando órfão.

Foi por ele que me reuni no com o clube e comuniquei minha decisão, todos respeitaram e entenderam, depois de uma votação unânime Denis assumiu meu lugar como vice-presidente e tudo seguiu como está até hoje, quatro anos depois.

A tarde passou tranquila enquanto comia e bebia, conversando e assistindo as crianças brincando no quintal. Mas conforme a noite avançou me peguei pensando novamente naqueles olhos cor de mel, os cabelos cacheados, a pele negra e os lábios com gosto único.

Pela primeira vez em anos me senti torcendo para ver uma mulher no dia seguinte.

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