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Olá, doutor, estou aqui novamente. Quando saí, achei que não voltaria, que era perda de tempo. Mas os acontecimentos dessa semana me fizeram refletir e ver que sim, eu precisava voltar. Não sei quantos encontros teremos, mas acredito que refletir na minha história dentro de uma linearidade me fará bem, pois pode ser que dentro de cada fala eu realmente descubra como transformar em palavras algo que ainda não consigo expressar.

            Ainda assim, doutor, não sei o quão linear minha história é, ou se há alguma lógica nesta história que hoje vivo. Só sei que, neste momento, preciso parar e refletir em tudo que aconteceu até aqui. Talvez, só talvez, assim eu encontre um rumo para os meus perdidos pensamentos.

            Quando saí daqui, da última vez, lembrei-me que nem mesmo falei meu nome. Somente deitei em seu divã e comecei a falar. Acho que posso começar por aí, o que você acha?

            Bom, acho que esqueci de me apresentar da última vez. Eu me chamo Rodolfo José. Já passei de três décadas de vida. Na verdade, estou com a idade de Cristo, 33. Não sei se você é religioso, mas essa marca fica sempre em minha mente. Espero que não queira me crucificar, doutor, porque no atual estado em que me encontro, tenho certeza de que não vou conseguir ressuscitar.

Quanto ao meu trabalho, atualmente sou o responsável por treinar pessoas em uma empresa. Serei sincero, não fico à vontade de dizer qual porque não quero misturar o pessoal com o profissional. Prefiro que a identidade dela fique em sigilo, mas, para que você compreenda, eu lido diretamente com recrutamento e precisam ser pessoas altamente capacitadas principalmente na área matemática.

            Eu trabalho há mais de um ano nessa empresa. Fui recrutado depois que viram meu trabalho e eu assumi um cargo, substituindo uma pessoa que criou problemas e não trouxe resultado à empresa. E você sabe, doutor, que em empresas, precisamos de resultados. Não basta esforço, vivemos de resultados. Não adianta simplesmente ter o conhecimento técnico ou então usar o nome de família. Não. Na hora de manter este emprego, o que preciso diariamente é de resultados positivos.

E, sendo uma empresa de treinamento, é bom que fique anônima, pois é famosa. Não que eu desconfie de sua conduta, mas, já que estou revelando assuntos tão mais íntimos, que o nome da empresa fique em oculto.

Porém, tudo começou ali, em um treinamento. Sabe, o destino tem umas formas engraçadas de criar situações para nossas vidas. Lembro-me claramente daquele dia. Começou como dia normal, como qualquer outro. Levantei, troquei de roupa, coloquei uma camisa informal e um jeans, indo trabalhar logo depois. Peguei meu carro preto, estacionei em frente ao prédio, desci e segui para minha sala. Coloquei a mala em meu armário e olhei para a sala do lado, onde encontraria com os novos recrutas. 

            Quer saber de um segredo, doutor? Meu trabalho não é muito diferente do seu, pois sou responsável por ganhar a confiança das pessoas e mostrar que elas são capazes. Muitas vezes eu acredito mais nelas do que elas próprias. Ou seja, meu trabalho vai além de treinar pessoas para realizar uma determinada tarefa, mas consiste em descobrir o potencial de cada um e ampliá-lo.

Sabe, na verdade acredito que cada ser humano tem um grande potencial, que na maioria das vezes está oculto dentro dela mesmo. Mas a vida muitas vezes não permite que essas pessoas demonstrem esse potencial. Muitas vezes são traumas, muitas pessoas que disseram que não conseguiriam, muitas vezes o comodismo.  

E o que eu faço? Faço com que as pessoas descubram esse potencial. Tento pegar o potencial de cada um e elevar ao máximo, transformando muitas vezes uma pessoa insegura numa pessoa firme.

Sim, doutor, tento elevar a autoestima dos meus treinandos. Apesar de chamá-los de outro nome, devido ao cargo. Por mim, seriam apenas treinandos. Acho engraçado este termo também. Mas tento não americanizar tudo como meus colegas.

            Enfim, esse sou eu. Um homem normal que trabalha com grupos de pessoas todos os dias.

Fora dali, sou um homem reservado, tenho poucos amigos e vivo uma vida tranquila. Normalmente resumo meu dia em estudar assuntos da empresa, trabalhar e seguir para minha casa. Dificilmente saio dessa rotina, muitas vezes ruim, mas tantas vezes confortável e estável. Não sei nem mesmo se quero que seja diferente.

Por anos trabalho com pessoas. Conheço as pessoas melhores que elas mesmo. Sabe, doutor, poderíamos ser colegas de profissão. Caso, no final disso tudo, eu fique desempregado e decidir por um sócio, aqui estou eu.

            É engraçado. Eu sei. Parece uma piada. Justamente eu passar por tudo isso. Por dia passo por muitas pessoas. Escuto diversas histórias e sou profissional ao ponto de não me envolver com nenhuma delas.

Mas justamente ela destacou-se em meio aos outros. Logo ela, que, olhando junto ao grupo, não tem nada de diferente, é uma mulher ainda jovem e que vem desenvolvendo-se no treinamento no ritmo de todos os outros. Não tem um desenvolvimento espetacular, não tem algo que a separe das demais em conhecimento. 

            Então... Por que ela teve um destaque diferente comigo? O que a torna diferente dos outros? Essa é a pergunta que me faço todos os dias, doutor. Ah, quisera a vida me responder a esta questão. Tudo seria mais fácil.

            Quem ela é? Bem. Eu já lhe confessei muitas coisas. Então, falarei o nome daquela que tanto abalou as minhas estruturas e que me fez chegar até aqui. Joana Gabriela. Este é o nome dela, doutor. Joana Gabriela. O que há neste nome que tanto me atraiu? Não sei.

            Uma curiosidade, doutor. Joana Gabriela ingressou no grupo depois que essa turma de treinamento já estava iniciada. Foi uma das últimas, que ficou com vagas remanescentes. Ela logo demonstrou interesse pelos assuntos tratado e demonstrou muita simpatia com minha pessoa.

Sempre antes do início do treinamento e ao final passo um tempo em uma conversa informal com os candidatos para conhecer um pouco mais de sua história e até mesmo entender com quem estarei trabalhando. E não foi diferente com ela, afinal, essa é minha função, não só treinar, mas conhecer aqueles que estou treinando. Muitas vezes são nessas conversas que descubro sentimentos e aptidões que jamais demonstrariam com o grupo. Posso citar vários casos, como uma que usava os treinamentos como uma fuga para sua dura realidade ou um rapaz que tinha uma enorme habilidade culinária e jamais demonstrou isso.

            E foi numa tarde, comum como qualquer outra, ao final do treinamento, que saímos conversando. Uma conversa informal, de duas pessoas que estão caminhando para casa. Curiosamente eu deixaria o carro no estacionamento porque o mecânico faria uma avaliação de uma peça que apresentava problemas e pegaria lá. Com isso, fomos a pé pelo caminho. Nessa conversa descobrimos que tínhamos muito em comum. Se naquele dia eu pegasse meu carro e esquecesse do problema da peça, doutor, jamais teria acontecido tudo que vem depois.

            A conversa começou da forma como todos os outros começavam. Com aquele distanciamento. Eu, o treinador, ela, a pessoa que queria uma vaga na empresa e que passava por um processo.

            Ela estava encantada com o treinamento e disse que realmente queria seguir aquela carreira. Disse que, pela primeira vez na vida, estava interessada em fazer algo diferente e que pudesse realmente lhe dar um retorno. Lembro exatamente das palavras de Joana Gabriela naquele final de tarde:

            – Rodolfo José, é incrível como você consegue demonstrar com o olhar o quanto gosta do que faz. Eu entrei para o treinamento sem expectativas e hoje estou extremamente feliz em fazer parte deste grupo.

Naquele momento, como um bom treinador, prontifiquei-me em ajudá-la e conversamos sobre diversos assuntos técnicos.

            Mas havia mais que isso... Havia um sorriso, havia um olhar, havia um suspiro que surgia involuntariamente em meio ao nada, havia uma energia que imanava entre nós, algo que deixava um sorriso aparecer em meu rosto, que brilhava na face dela e que insistiria em crescer.

            Foi em meio a isso, quando ela relatava a sua vida, que aquele encantador olhar me chamou a atenção. Imagine, doutor, aquela cena de desenho animado onde o mundo inteiro para e o protagonista vê apenas na sua frente aquela cena linda e maravilhosa. Era assim o sorriso daquela doce mulher que ao meu lado caminhava sorridente.

            Olhar para Joana Gabriela era diferente. Ela tinha algo de diferente, algo que chamava minha atenção, algo que a destacava. Mas ainda não sabia dizer o que era. Foi neste dia que comecei a ficar incomodado com a presença dela. Era um bom incômodo, não era ruim. Era como se ela e eu estivéssemos cada vez mais próximos.

            A impressão que tinha é que estávamos destinados a nos conhecer. Parecia que não só tínhamos o mesmo gosto para muitas coisas, mas que de alguma forma nossas almas estavam interligadas, numa conexão além do sensitivo.

            Falar com Joana Gabriela era como conversar comigo mesmo. Era uma troca que tínhamos de ideais, de forma de ver a vida, de viver a vida. Objetivos semelhantes, olhar semelhante, caminhos distintos.

            Sim, eu sentia como se o destino tivesse manipulado nossos caminhos de forma que deveríamos nos encontrar no contínuo espaço-tempo e ter aquela conversa. Ah, momento este que, por um lado, penso que jamais deveria existir, mas por outro me traz uma lembrança tão doce e suave que é quase palpável. Só em falar de Joana Gabriela caminhando ao meu lado eu consigo ver os cabelos alisados amarrados com um laço verde, aquele olho cor de mel em meio à pele morena e o sorriso brilhante que refletia os raios de sol.

E é esse estranho sentimento o causador de tudo o que hei de contar em cada um de nossos próximos encontros.

E sabe como terminou aquela caminhada? Chegamos a uma bifurcação. Ela ia para a direita e eu para a esquerda. A abracei. Senti o toque daquele corpo no meu pela primeira vez. Ela deu um suave beijo na minha bochecha e disse:

– Adorei a companhia.

Doutor, como descrever aquela sensação? Algo que me paralisou por momentos. Apenas sorri e parti, com uma sensação de vazio em não tê-la no restante da caminhada.

Posso parecer um tolo. Mas, depois de tantos anos, foi a primeira vez que me senti vivo novamente.

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