Quando os primeiros raios de sol bateram na janela de Elana, ela ainda estava digitando. Os olhos ardiam, os dedos estavam cansados, mas a mente… a mente estava acesa como não ficava havia muito tempo. Ela parou por um instante, leu os últimos parágrafos e sorriu. Um sorriso pequeno, mas cheio de algo que há muito não sentia: orgulho. Imprimiu os primeiros capítulos, com o coração acelerado a cada folha que saía da impressora. Papel após papel, sua história tomava forma. Sua verdade ganhava espaço. Sem perder tempo, foi para o chuveiro. A água quente levou embora o resto da febre, o peso da indecisão e os fantasmas da noite anterior. Em frente ao espelho, maquiou-se com leveza, como se pintasse uma nova versão de si mesma. Escolheu sua melhor roupa — aquela que a fazia sentir poderosa — e calçou os sapatos com um brilho nos olhos. Elana conferiu os papéis mais uma vez, prendendo os primeiros capítulos impressos com um clipe dourado. Guardou tudo na pasta que costumava usar quando
— É... essa é a ideia — respondeu, quase num sussurro, tentando acompanhar o ritmo animado de Giana enquanto o elevador subia. — Isso é maravilhoso! — Giana comemorou, apertando o braço de Elana com empolgação. — Eu sabia que você era especial. Aquele texto... foi como se você tivesse escrito com o coração na minha frente. Até chorei, acredita? Elana assentiu, sem saber o que responder. Ela não podia simplesmente dizer a Giana, que as cartas que ela gostou de ler, foram escritas para o marido dela quando ele ainda era um adolescente. Giana continuava falando, envolta em sua empolgação contagiante, sem notar o nó que se formava no estômago de Elana. — Quando mostrei para o Gabriel, ele ficou em silêncio por um tempão, sabia? Depois saiu andando pela casa com aquela cara de quem tá pensando demais. Eu achei que ele estava só tocado com a história... — ela riu baixinho. — Mas agora entendo. Ele devia estar tentando encontrar um jeito de te chamar, né? Elana sorriu sem mostrar os den
Gabriel desviou o olhar de Giana, voltando a encarar Elana, como se procurasse algo além da superfície. Ela sustentou o olhar, mas por dentro tudo parecia girar. O escritório grande, os móveis modernos, a parede cheia de prêmios; nada daquilo parecia tão opressor quanto os olhos dele naquele instante. — Podemos conversar… a sós? — ele perguntou, com um tom calmo, voltado para Giana. Ela ergueu as sobrancelhas, surpresa. — Ué, por quê? Eu a descobri, quero participar. Gabriel sorriu com gentileza, mas seus olhos denunciavam a tensão que começava a se formar. — Eu sei, Gi. E sou grato por isso. Mas agora é uma conversa editorial, de detalhes… burocráticos — improvisou, passando a mão pela nuca, tentando disfarçar o incômodo. — Prometo que te atualizo de tudo depois, cada vírgula. Giana cruzou os braços, avaliando a situação por um segundo. Elana manteve-se imóvel, tentando não parecer desconfortável, embora cada célula de seu corpo gritasse por fuga. — Está bem. — Giana cedeu com
O risoto no prato de Gabriel já esfriava quando Giana começou a contar, pela terceira vez naquela semana, sobre a nova assistente da clínica de estética que havia aberto no térreo do prédio comercial. — …e aí ela me disse que prefere trabalhar de fones porque o salão da frente toca muita música sertaneja. Você acredita? Em pleno 2025 e as pessoas ainda brigando por gosto musical — comentou, dando uma risadinha antes de beber um gole do vinho branco que ela mesma havia escolhido. Gabriel assentiu, mas seus olhos estavam fixos em um ponto qualquer da toalha de linho. Mexia distraidamente o garfo no prato, como se o arroz pudesse lhe responder alguma coisa. — Você está quieto hoje. — Giana notou, apoiando o queixo na mão e observando o marido. — Muito pensativo. É por causa da Elana? A forma como ela disse o nome, leve demais, como quem fala de uma conhecida distante, fez um incômodo subir pelo estômago dele. Gabriel ergueu os olhos para a esposa, tentando encontrar algum sinal de ci
Gabriel arrastou a cadeira e se levantou devagar, sem encarar Giana outra vez. — Vou para o escritório. Quero ficar sozinho. — Gabriel… — Giana, por favor. — interrompeu, já caminhando em direção ao corredor. — Só… me dá essa noite. É o mínimo. Ela não respondeu. Apenas ficou ali, à mesa, olhando para o lugar vazio onde ele estivera segundos antes. O som dos passos dele ecoou até o clique suave da porta se fechar. O escritório era o único cômodo da casa que ainda carregava o cheiro original da madeira. Gabriel acendeu apenas a luminária da mesa, deixando o restante do ambiente mergulhado em penumbra. Fechou a porta com cuidado e se recostou por um instante na madeira fria, respirando fundo como quem tenta afastar um pensamento antes que ele se transforme em ação. A pasta estava ali, sobre a mesa. Onde ele mesmo a deixara horas antes, como se tivesse medo de encostar. Como se tocar nas páginas fosse o mesmo que voltar quinze anos no tempo. Sentou-se, devagar. Passou os dedos pel
Ele queria acreditar que era apenas uma coincidência. Apenas ficção. Mas conhecia Elana. E se havia algo que ela nunca foi capaz de fazer… era escrever sem sentir. “A chuva tinha parado fazia pouco, mas a cidade ainda pingava tristeza. Eles estavam sentados no ponto de ônibus desativado, como sempre faziam quando queriam fugir do mundo. Um pacote de balas azedas entre os dois, e o céu começando a clarear no horizonte. — Me promete uma coisa? — ela disse, sem encará-lo. — Depende. — Que a gente nunca mais vai esquecer esse dia. Mesmo que a gente mude, cresça, se perca. Me promete que vai lembrar. — Por que justo esse dia? — Porque é o tipo de dia que só existe uma vez. Ele não respondeu de imediato. Em vez disso, tirou do bolso uma caneta esferográfica azul, desenhou uma pequena estrela no punho dela, e depois outra no seu próprio. — Agora não tem como esquecer. Após a chuva passar, os dois se despediram com um ‘até amanhã’. Ele sentia uma sensação estranha em seu coração, um
Elana despertou com a luz suave da manhã atravessando as frestas da cortina, pintando listras douradas sobre o lençol branco. Por um instante, ficou ali, de olhos ainda fechados, permitindo-se sentir o calor acolhedor do quarto e o peso gostoso do próprio corpo afundado no colchão. Ela não se lembrava da última vez que tinha dormido tão bem. A noite anterior, em claro e carregada de insegurança, parecia distante agora. Como se tivesse sido de outra vida. Talvez fosse mesmo. Porque, naquela madrugada silenciosa, entre goles de café frio e dedos trêmulos sobre o teclado, ela finalmente tinha escrito algo que lhe parecia certo. Não perfeito — porque Elana já tinha aprendido que perfeição não existe fora da imaginação —, mas bom o suficiente. Verdadeiro o suficiente. E isso… isso era um alívio imenso. Sentou-se devagar, puxando o cabelo para o lado e prendendo-o em um coque frouxo. O relógio na parede marcava pouco depois das oito. Ela tinha tempo para um banho longo e um café quente
Durante o trajeto, evitou olhar vitrines ou encarar os rostos alheios. Era como se todo o cenário ao redor estivesse congelado no tempo, enquanto ela era a única coisa em movimento. Uma mulher empurrava um carrinho de bebê no canto da calçada. Um casal trocava beijos sob um guarda-chuva transparente. Tudo parecia parte de um mundo paralelo. Elana desceu as escadas do metrô devagar, como quem queria que o tempo esticasse só mais um pouco. O som metálico dos trilhos ao longe ecoava nas paredes, misturado ao murmúrio de poucos passageiros matinais. A cidade ainda despertava. O trem chegou com seu sopro quente e barulhento. Elana entrou e escolheu um assento próximo à janela. Deixou a cabeça repousar contra o vidro gelado, observando os túneis escuros cortarem o subsolo como veias da cidade. Durante o trajeto, pensou em tudo que poderia acontecer. Em tudo que não queria que acontecesse. A estação onde deveria descer chegou mais rápido do que gostaria. Levantou-se, ajeitou o cachecol em