Gabriel arrastou a cadeira e se levantou devagar, sem encarar Giana outra vez. — Vou para o escritório. Quero ficar sozinho. — Gabriel… — Giana, por favor. — interrompeu, já caminhando em direção ao corredor. — Só… me dá essa noite. É o mínimo. Ela não respondeu. Apenas ficou ali, à mesa, olhando para o lugar vazio onde ele estivera segundos antes. O som dos passos dele ecoou até o clique suave da porta se fechar. O escritório era o único cômodo da casa que ainda carregava o cheiro original da madeira. Gabriel acendeu apenas a luminária da mesa, deixando o restante do ambiente mergulhado em penumbra. Fechou a porta com cuidado e se recostou por um instante na madeira fria, respirando fundo como quem tenta afastar um pensamento antes que ele se transforme em ação. A pasta estava ali, sobre a mesa. Onde ele mesmo a deixara horas antes, como se tivesse medo de encostar. Como se tocar nas páginas fosse o mesmo que voltar quinze anos no tempo. Sentou-se, devagar. Passou os dedos pel
Ele queria acreditar que era apenas uma coincidência. Apenas ficção. Mas conhecia Elana. E se havia algo que ela nunca foi capaz de fazer… era escrever sem sentir. “A chuva tinha parado fazia pouco, mas a cidade ainda pingava tristeza. Eles estavam sentados no ponto de ônibus desativado, como sempre faziam quando queriam fugir do mundo. Um pacote de balas azedas entre os dois, e o céu começando a clarear no horizonte. — Me promete uma coisa? — ela disse, sem encará-lo. — Depende. — Que a gente nunca mais vai esquecer esse dia. Mesmo que a gente mude, cresça, se perca. Me promete que vai lembrar. — Por que justo esse dia? — Porque é o tipo de dia que só existe uma vez. Ele não respondeu de imediato. Em vez disso, tirou do bolso uma caneta esferográfica azul, desenhou uma pequena estrela no punho dela, e depois outra no seu próprio. — Agora não tem como esquecer. Após a chuva passar, os dois se despediram com um ‘até amanhã’. Ele sentia uma sensação estranha em seu coração, um
Elana despertou com a luz suave da manhã atravessando as frestas da cortina, pintando listras douradas sobre o lençol branco. Por um instante, ficou ali, de olhos ainda fechados, permitindo-se sentir o calor acolhedor do quarto e o peso gostoso do próprio corpo afundado no colchão. Ela não se lembrava da última vez que tinha dormido tão bem. A noite anterior, em claro e carregada de insegurança, parecia distante agora. Como se tivesse sido de outra vida. Talvez fosse mesmo. Porque, naquela madrugada silenciosa, entre goles de café frio e dedos trêmulos sobre o teclado, ela finalmente tinha escrito algo que lhe parecia certo. Não perfeito — porque Elana já tinha aprendido que perfeição não existe fora da imaginação —, mas bom o suficiente. Verdadeiro o suficiente. E isso… isso era um alívio imenso. Sentou-se devagar, puxando o cabelo para o lado e prendendo-o em um coque frouxo. O relógio na parede marcava pouco depois das oito. Ela tinha tempo para um banho longo e um café quente
Durante o trajeto, evitou olhar vitrines ou encarar os rostos alheios. Era como se todo o cenário ao redor estivesse congelado no tempo, enquanto ela era a única coisa em movimento. Uma mulher empurrava um carrinho de bebê no canto da calçada. Um casal trocava beijos sob um guarda-chuva transparente. Tudo parecia parte de um mundo paralelo. Elana desceu as escadas do metrô devagar, como quem queria que o tempo esticasse só mais um pouco. O som metálico dos trilhos ao longe ecoava nas paredes, misturado ao murmúrio de poucos passageiros matinais. A cidade ainda despertava. O trem chegou com seu sopro quente e barulhento. Elana entrou e escolheu um assento próximo à janela. Deixou a cabeça repousar contra o vidro gelado, observando os túneis escuros cortarem o subsolo como veias da cidade. Durante o trajeto, pensou em tudo que poderia acontecer. Em tudo que não queria que acontecesse. A estação onde deveria descer chegou mais rápido do que gostaria. Levantou-se, ajeitou o cachecol em
Elana franziu levemente a testa, inclinando a cabeça para o lado. — Não entendi. Você achou o quê? Que o livro é sobre você? A voz dela saiu leve, quase casual, mas ele percebeu o sutil endurecimento nos ombros, como se estivesse se preparando para o impacto. Gabriel não respondeu de imediato. Apenas segurou a manga da própria blusa e a ergueu devagar, revelando a pequena tatuagem de estrela no pulso. Elana prendeu o fôlego por um instante. Os olhos dela desceram até a tatuagem e depois voltaram ao rosto dele, mas agora sem a mesma segurança de antes. — Você tatuou... — murmurou, quase inaudível. Gabriel assentiu, os olhos fixos nos dela. — Não lembro exatamente quando foi, mas... As palavras morreram na garganta quando Elana, sem desviar o olhar, começou a desfazer lentamente os botões da blusa. Ele piscou, confuso por um instante, até perceber o que ela fazia. A blusa se abriu, revelando o sutiã bege e, logo acima dele, no lado esquerdo do peito, bem sobre o coração... a mes
Gabriel sustentou o olhar de Elana por mais alguns segundos, como se ainda procurasse alguma rachadura na parede que ela acabara de levantar entre eles. Mas não encontrou nada além da firmeza bem treinada de uma escritora que sabia exatamente o que não queria dizer. Ele expirou devagar, baixando os ombros num gesto quase imperceptível. Quando falou novamente, a mudança era clara; o calor havia se recolhido, dando lugar ao tom controlado de um editor experiente. — Tudo bem. — disse, com um aceno breve. — Então vamos tratar como o que é. Um bom livro de ficção. Elana manteve a expressão neutra, mas o olhar dela o acompanhou enquanto ele dava a volta na mesa e se sentava na cadeira giratória, assumindo o comando da sala como quem veste uma armadura. — Pode se sentar. — ele indicou a cadeira diante dele, sem mais floreios. Ela hesitou por um instante, mas obedeceu. Cruzou as pernas com elegância, e então repousou as mãos sobre o colo. — Bem... quanto tempo precisa para finalizar o l
O vagão balançava suavemente enquanto o metrô avançava pelos túneis subterrâneos da cidade. Elana estava sentada junto à janela, o celular colado ao ouvido. A cidade corria lá fora, mas ela ainda estava presa na sala da editora, onde memórias mal resolvidas e contratos milionários se cruzavam como linhas soltas de um texto inacabado. — Como assim o Gabriel? — a voz de Isabella soou do outro lado da linha, incrédula — Ele ainda cuidou de você doente? — O próprio. Com sobrenome e tudo. — Elana respondeu, com um meio sorriso cansado. — Mas… como assim? Você teve uma reunião com Gabriel e nem me contou que tinha um manuscrito, criatura? Eu sou sua melhor amiga! Eu devia ter lido isso antes de qualquer editor desse planeta! Elana riu baixinho, tentando não atrair a atenção das pessoas ao redor. — Foi tudo muito rápido, Isa. Eu escrevi dez capítulos em uma única madrugada, sem pausa. Me arrumei e fui até a editora, para dar o manuscrito para ele. E foi aí, que eu conheci a MULHER dele!
Ela engoliu em seco e entrou com o pacote nos braços, trancando a porta atrás de si com mãos ligeiramente trêmulas. Largou a bolsa no chão e foi direto para a mesa da cozinha, onde pousou a caixa com cuidado. Ficou olhando por alguns segundos, tentando entender o que exatamente estava sentindo. Com delicadeza, desfez o laço de barbante e puxou o papel pardo, revelando uma caixa de sapatos antiga, daquelas que a mãe costumava guardar cartas, fotografias e recortes de jornal. Dentro, havia um envelope com seu nome escrito à mão, seguido de um empacotamento apertado de cédulas dobradas; notas de cem, cinquenta, vinte. Elana arregalou os olhos. Havia maços de dinheiro ali. Muitos. Ela não sabia quanto, mas era mais do que poderia contar de uma vez. Tirou o envelope com o próprio nome, abrindo-o com mãos que já não disfarçavam o tremor. No interior, uma carta, escrita com a mesma letra que a fez chorar nas tarefas da escola, quando a mãe a ajudava a copiar. “Minha querida Elana, Se voc