Pires 🥋
Encaro a porta de aço à minha frente, enquanto ouço as conversas do lado de fora. Eu poderia sair daqui em dois tempo, mas vou deixar eles viverem o momento de glória e acharem que são os fodões.Um erro de cálculo me colocou aqui, e estraçalhou a mão de um parceiro que eu nem sei se tá vivo pra contar história.Encurralado num quarto de poucos metros quadrados, uma cama de concreto com um fino colchão sob ela. As paredes mofadas e com várias assinaturas e nomes de facções. Só havia as grades da porta, nem uma entrada de ar por uma janela. Isso porque ainda estava na delegacia esperando minha transferência para o presídio.— Pires? — Pergunta o delegado que parou de frente pra porta, com as duas mãos dentro do bolso da calça, me olhando com desdém.— Não conheço ninguém com esse nome! — Afirmo, sem quebrar o contato visual que ele mantinha, tentando me intimidar, tem que se esforçar muito ainda.— Me falaram que é você. Comandante da Rocinha e envolvido num assalto a um carro forte.— Falar até papagaio fala, estava passando por acaso e por eu ser negro tô aqui. Cadê a prova que eu estava envolvido nessa porra de assalto? — Me ponho de pé com os braços cruzados à altura do peito, tem que ter postura para poder cobrar. Ninguém tinha noção de quem eu era, tampouco sabiam quem era Pires a não ser a comunidade. Tô ligado que eles podem ter quase a certeza, difícil vai ser provar. — tem provas? Câmera de segurança ou algo assim?— Não!— Então o que estou fazendo aqui ainda? Já é madrugada, po. Tô doido pra ir pra casa dormir e tô aqui perdendo tempo. Qual foi do bagulho? Vão me prender ou só ficar me enrolando tentando jogar crime em minhas costas?— Sua advogada já está a caminho!— Eu não pedi para uma advogada, tampouco preciso de uma defesa se vocês não têm prova alguma contra mim.Ele me encara por um momento e abre a cela entrando, fica frente a frente comigo e eu permaneço do mesmo modo que estava desde a hora que veio me interrogar.Fui o mandante do assalto, mas não participei dele, só estava dando as instruções de como fazer o bagulho no sapatinho. Mas aí tem os cabeças oca que acham ser o bambambam do crime e fazem as coisas do jeito que querem, me fudi nessa porque estava próximo a eles, mas provas sobre meu envolvimento ninguém tem, sem falar que poderiam cortar a cabeça de qualquer aliado meu, que não me entregariam, lealdade acima de tudo, esse é meu lema.— você fala bem demais pra quem é bandido! — Ironiza o delegado, com um sorriso sarcástico no rosto, permaneço na mesma seriedade e ele desfaz o sorriso rápido.— O mal do estado é achar que todo favelado carrega diploma de burro, tu tem que entrar no favela, vai ficar chocado do quanto eles são mais inteligentes que tu. Só que diferente de você, o povo ali tem que ralar pra ser alguém na vida, e não mauricinho bunda mole que tem tudo de mão beijada, se pá até um diploma comprado. Fecha a cara, po!— A advogada dele chegou! — O guardinha avisa chegando na porta da pequena cela, dá meia volta e sai no mesmo pique.— Ela vai conversar com você, da sua situação. E você será detido por desacato a autoridade!— Aí tu falou minha língua, conseguiu algo contra mim. Vou ficar lá o que? Uns 3 meses? Suave pra mim, cadeia foi feita pra homem.— Continua com esse deboche, consigo adicionar mais uns crimes em sua ficha com um estalar de dedos.— Terror nenhum. — afirmo e descruzo os braços, eu poderia matar ele nesse momento tão silenciosamente, e sair no mesmo silêncio, eles só saberiam de sua morte no outro dia. Mas eu gosto de dar corda pra malandro se enforcar. — Faz teu jogo!—Eu passo o olho na mulher que esta na minha frente, com os olhos apertados e o cabelo longo negro, sinto sua tensão de longe e é quase possível ouvir as batidas de seu coração. Ela passa a língua nos lábios e desliza a mão entre o cabelo, limpa a garganta engolindo a saliva e se senta na cadeira a minha frente, enquanto eu observo a algema que aperta meu pulso. É de fuder mesmo.— Bom! — Ela faz uma longa pausa ao falar, folheia uma pasta que colocou sob a mesa, passa os olhos rápido e volta o olhar para mim novamente, encaro ela sem piscar os olhos e ela desvia o olhar para as folhas novamente. — Leonardo, está sendo acusado de ser o mandante de um assalto ao carro forte e desacato a autoridade.— O segundo é verídico, o primeiro não tô sabendo legal. Mas diz aí doutora, dá seu papo do que pode fazer por mim?— Estou apenas estudando seu caso, ainda não me formei. — Ela fala com delicadeza, mesmo com a voz trêmula como se eu fosse alguma ameaça. E eu sou talvez... Mas não aqui dentro. — Sem provas do seu envolvimento, você é apenas um suspeito. Preciso averiguar sua situação. Tem uma alibe para onde estava indo quando foi encontrado perto da ocorrência?— Tava só andando pra distrair a mente, tá ligado? Se eu tivesse envolvimento acha mermo que ia tá batendo palma pra macaco dançar? Tinha fugido, po. — afirmo e estico as costas na cadeira colocando as duas mãos algemas atrás da cabeça.— Como deve te chamar, Pires ou Leonardo? Tem algum envolvimento com o tráfico?— Ae doutora, leva a mal não. Tu tá aqui pra ver minha situação ou ficar interrogando sobre minha vida? Eu nem pedi por imã defesa, não tô entendendo legal o motivo de tu tá aqui.— A defensoria pública e o escritório da faculdade fornece advogados gratuitamente. Formarei esse ano, então tecnicamente, você é o meu primeiro cliente. Estou tentando fazer a coisa certa, perdoe se acha que estou sendo invasiva, mas preciso saber dos detalhes. — Seus olhos brilham a cada palavra que sai de sua boca era como se ela tivesse ensaiado por horas tudo aquilo que falava.— Eles não tem prova contra mim, nenhuma. Como fico?— Bom, farei o pedido do habeas-corpus e pedirei para abrir uma investigação, só aí saberemos se você tinha envolvimento. Quanto ao desacato, você terá que pagar fiança ou cumprir a pena em regime semiaberto.— Então já posso meter o pé daqui? Pago a fiança po. Só me falarem o valor!— Não é tão fácil assim, Leonardo. O juiz precisa aprovar meu pedido para que você possa ser solto. Farei o impossível para que você não seja transferido para nenhuma penitenciária, por que lá eu não poderei te defender, terá que ser um advogado formado.— Quando tu se forma?— Daqui 4 meses. — respondendo tentando entender onde ele quer chegar com isso.— Vai embora. — prendo o ar no mesmo momento, perdi sem nem ter começado. — Me procura daqui 4 meses, eu quero ver você me defender no tribunal.Pires, 28 anosIsadora, 24 anosFrida, 4 anos.Isadora 🥀Quando eu chego em casa, Frida ainda está dormindo e minha vó sentada na sala me esperando, já estava tarde, mas ela sempre fazia isso, tinha medo do que poderia acontecer comigo no caminho de volta pra casa. Eu também tinha medo, sempre tive, mas se eu deixar esse medo me dominar eu nunca mais saio de casa, e convenhamos que o caminho que eu quero seguir, não é daqueles que trabalham em home off, vou ter que sempre tá saindo de casa para resolver assuntos dos meus clientes.— Como foi lá? — Ela me pergunta, enquanto dou meia volta no sofá e sento para tirar os sapatos.— Foi estranho... Eu ia resolver a situação dele, mas ele quis ser preso, eu disse que ele era meu primeiro cliente. Não sei se não confiou no meu potencial ou está me desafiando, ele disse pra eu voltar daqui quatro meses e defender ele no tribunal quando eu me formar.— E isso não é bom? — Minha vó pergunta entusiasmada.— Talvez, vó. Mas acontece que o Rio de Janeiro é muito grande, eu nem sei para qual s
Pires 🥋Falei com Isadora algumas vezes antes do meu julgamento, porém estava confiante em seu trabalho. Quatro meses trancado sem ter recebido uma sentença, quatro meses longe da comunidade sabendo que tô fazendo falta pra caralho.Quando eu era moleque e vendia bala no sinal, eu via os engravatados passar e pensava que um dia, eu poderia ser igual a eles, mas eu mal tinha oportunidade para estudar, tá ligado? Aquilo ali era o sustento da minha família, então não tinha como eu perder tempo estudando quando eu deveria estar trabalhando para garantir o pão de cada dia. Minha mãe era uma viciada e meu pai, nunca ouvi falar.Éramos 3 irmãos contando comigo, mas todos eram mais novos que eu, então querendo ou não, a responsabilidade inteira caía em cima de mim. Minha mãe não se preocupava em arrumar alimentos para nós, mas minha maior preocupação era minha irmã mais nova, Bárbara. Eu descia cedo e só voltava a noite, e muitas das vezes meus irmãos estavam sozinhos esperando por mim, tiv
Isadora 🥀Do outro lado da calçada, encaro a entrada do tribunal apreensiva. Minhas mãos soam e eu não consigo conter o nervosismo que percorre meu corpo. Primeira audiência que eu participo já formada. Entrei para faculdade com uma bolsa de estudo aos 17 anos, me formei no ensino médio com um ano adiantada, fiz o vestibular e comecei a estudar. Estudei por 3 anos, até acontecer o que aconteceu comigo. Não gosto de lembrar, ainda sinto o peso de cada mão que me tocou, e guardo o rosto de cada um deles. Graças a Deus, eu nunca mais os vi na vida, eu não sei qual seria minha reação se caso batêssemos de frente. Aos 20, parei a faculdade, já tinha desistido de tudo e até mesmo da vida, mas eu tinha uma pessoa que precisava de mim aqui. Frida. Depois de muitas consultas com a psicóloga, consegui voltar e finalmente passar na prova da OAB, e hoje, após uma semana da minha formatura, ao 25 anos, sou uma advogada. Graças a mim e ao o meu esforço, graças a minha vó que nunca desistiu de m
Já do lado de fora do tribunal, algumas pessoas me elogiam pelo primeiro julgamento que eu participo, sinto meu rosto queimar de vergonha, eu não sei lidar com tantos elogios assim. Do outro lado da rua, em meio às movimentações de carros e a euforia do dia, Leonardo tenta falar no telefone com o meu celular, ligando para um amigo vir buscar ele. Suspiro aliviada e com a sensação de dever cumprido, aperto os olhos para evitar que eu chore por isso. Solto o cabelo e passa o mão entre os fios, odeio usar coque, sinto que aperta minha cabeça e eu já estava ficando louca lá dentro. Leonardo se aproxima, olha para a esquerda e direita, e então atravessa a rua vindo em minha direção. Ele sobe na calçada dando um pulinho e estende o celular para mim. Observo o pequeno aglomerado que se forma na frente do tribunal, nem todos tiveram um final feliz hoje. - Então... - Viro para trás, sentindo o olhar de Leonardo queimar em minhas costas - É assim que acaba, vencemos. Foi um prazer ser sua ad
Pires 🥋— Qual o nome do que te drogou? — ela me olha assustada sentada ao meu lado enquanto dirijo. Pressionando a bolsa em seu colo como se quisesse fugir dali. — Não precisa disso. — ela nega com a cabeça — A justiça divina tarda mas não falha. — Aqui não existe isso de justiça divina, olha por quanto tempo tu passou por essa merda e nada aconteceu com eles. Estão vivendo a vida como se nada tivesse acontecido e talvez, fazendo mais vítimas como você. — soco o volante atordoado com tudo aquilo e ela se assusta — Desculpa... Mas porra Isadora, olha para você, toda traumatizada, não suporta que te olhem mais de um minuto, não aguenta o toque de outra pessoa. Quer viver pra sempre assim?— Não, claro que não. Mas matando eles não vai mudar muita coisa Leonardo, para e pensa. — Eu tô pensando porra. Tô pensando em você e nas outras mulheres que passaram por isso e a porra de justiça divina não foi feita. Se você não me dizer o nome dele, juro p
— Não precisa dessa porrada forte mano, o cara já estava amarrado. Tu desmaiou ele no soco! — Carioca fala ao meu lado, enquanto dirijo de volta para o morro. — Isso não foi nem um terço do que vou fazer com ele e os outros arrombados que vão subir logo atrás. Antes de desmaiar o verme na porrada, fiz ele ligar pra cada um deles e marcar lá em cima no alto do morro, playboy engravatado agora subir o morro pra pegar uma branquinha e fazer a mente. Mas se não vier, eu vou atrás, terror nenhum pra mim. — Botou a cara pra bater no meio da rua, cheio de câmera de segurança. — Carioca falando já nervoso e acaba me estressando também — Se tu não era conheci até o momento, pode ter certeza que agora vai ficar. — Vai pesar minha mente mermo? — falo sem tirar o olho da pista e a toda tempo olhando pra ver se safado que sangra no banco do meu carro, não acordou — Tô pouco me fudendo se agora vou ficar conhecido. Mas agora não vai ser por assalto a carro forte, será por exterminador de jack,
Isadora 🥀Depois do dia de ontem, eu acordei com uma dor de cabeça insuportável. Muita coisa para processar rapidamente, sem falar que nunca na minha vida, um homem me trouxe na porta de casa ainda mais de carro. E como eu havia contado tudo do que aconteceu para Leonardo, eu tive que me abrir para minha vó. Ela esperou por esse dia por tantos anos, o tanto que ela chorou e eu chorei junto, não tá escrito. Mas de certa forma foi até bom, caramba, parece que uma tonelada saiu de cima das minhas costas, guardar um acontecimento como esse durante tantos anos, estava acabando comigo, literalmente. O meu psicológico ainda está um pouco abalado, acho que esse receio vai viver comigo pelo resto da vida. É inevitável. Porém, ontem tive uma conversa tão gostosa com minha vó, onde ela me deu tantos conselhos, para eu me abrir a novas amizades mas não confiar nelas, me permitir conhecer novas pessoas, nem todo mundo é um filho da puta. Olho para Frida que ai
Ele estaciona o carro em frente à escola de Frida, enquanto as outras crianças entram com seus pais, outros a van que trás. Sinto uma pontada em meu estômago e me lembro do café, as vezes eu me esqueço e até mesmo a minha vó esquece, e eu acabo tomando e sofro o dia todo com dor no estômago. Mas eu não tomo mais de propósito. — Tá sentindo o que? — Leonardo pergunta enquanto encara minha feição de dor, não é insuportável, mas é forte. — Tenho alergia a café. E tomei hoje, acabei me esquecendo. — Toma cuidado com isso. — Afirmo com a cabeça e ele olha para trás, onde Frida estava sentada observando o carro inteiro e sorrindo — Ei, pequena! — Ele chama sua atenção e ela desvia o olhar para ele — consegue mostrar pro tio qual deles fica implicando contigo?— Leonardo, não. São só crianças! — O repreendo. — Mas é assim que começa, aos cinco anos está implicando, aos dez passando a mão achando que é legal, e depois só Deus sabe onde vai parar. Então Isadora, sim. Sempre bom cortar o ma