Camila
FICAR com a mão sobre a minha barriga por alguns minutos tem se tornado o meu ritual ao acordar. Ainda não consigo senti-la se mexer dentro de mim, acabei de entrar na 16ª semana de gestação. Mas estar com a mão sobre o meu útero me traz uma sensação de paz, realidade.
Eu ainda me assusto algumas vezes quando passo em frente ao espelho. Esta barriga crescente é realmente minha? É um tanto quanto louco perceber as transformações físicas no meu corpo. É como se a cada dia em que acordo eu me tornasse uma mulher diferente. Ponho meus pés para fora da cama, observo pelo vidro da janela os primeiros raios de sol do novo dia e caminho até o banheiro. Antes, sábado era o dia em que eu me permitia dormir até mais tarde. Agora, mesmo que eu não queira, acordo muito cedo. É também o único dia da semana em que desperto antes de Henrique. Entretanto, quando abri os meus olhos, ele não estava ao meu lado. Desde que assinou o divórcio, sinto que ele eCamilaLEMBRO-me de quando eu era criança e a tia Malu me contava com o seu jeito debochado sobre os seus namorados e dos motivos que a faziam não levar seus relacionamentos com eles adiante. Um era muito ciumento, o outro era bagunçeiro demais e alguns não sabiam saborear a flor, dizia me dando seu olhar cúmplice. Recordo-me que uma vez a perguntei se ela algum dia pensou em se casar, e ela me respondera com toda seriedade que ainda não tinha conhecido ninguém que a fizesse gostar mais de abraços do que de beijos e que estivesse ao seu lado ainda que ela não pedisse. Dissera-me também que eu não devia me casar se eu não encontrasse alguém que pudesse fazer essas coisas por mim.Eu cresci observando as mulheres ao meu redor. Perdi as contas de quantos casais mal olhavam nos olhos um do outro, e eu jurei para mim mesma que eu não teria um relacionamento desse tipo para a minha vida. No fim, casar para mim não era nada menos que um rótulo social.Hoje, minha visão qu
CristinaHOUVE um tempo em que o silêncio fora o meu maior inimigo. Não só o silêncio dos outros, mas o meu próprio silêncio.Henrique conduz seu veículo; os olhos focados no tráfego que nos cerca. Mas percebo pela sua postura que ele está desconfortável, como se estivesse procurando por palavras as quais não consegue encontrar. Silêncio.Não sei como tive forças para ir à Casa de Prazer. Minha mãe, Pérola e algumas outras mulheres da igreja diziam que ali era um lugar fétido onde mulheres sem Deus iam vender seus corpos. No entanto a Casa de Prazer me pareceu ser o completo oposto disso. Até onde meus olhos puderam percorrer, tudo o que vislumbrei foi um lugar sofisticado e extremamente agradável de se estar. E as poucas mulheres com quem esbarrei transpiravam confiança sobre si e seus corpos. Mulheres felizes.Não esperava presenciar a cena que vi. Não que eu sinta ciúmes em ver Henrique com Camila, é muito mais pela diferença. A diferença no modo
Cristina— VOCÊ é tão quietinha, Cristina — Perdi a conta de quantas vezes me disseram isso enquanto criança e até mesmo já adulta. Eu sou quieta? Não sei. Eu nunca parei para definir a minha personalidade. Sempre tinha quem fizesse isso por mim. Porque é isto o que acontece quando permite que alguém fale por você, você não sabe exatamente quem você é.Nas poucas ocasiões em que tive coragem para expressar as minhas opiniões eu estava errada. Ao menos fora isso o que minha mãe me fez acreditar. Por muito tempo eu me senti como a Macabéa, de "A Hora da Estrela", só existia por meio dos outros. A minha voz não me pertencia. Recordo-me que durante o ensino médio havia um grupo de garotas populares, do qual eu não fazia parte, que assim que iniciava o intervalo das dez da manhã, elas comiam os seus lanches em meio a discussões calorosas sobre os livros da Clarice Lispector. Eu ouvia a tudo aquilo extasiada, e o que eu mais queria na época era poder ler um livro dela
CamilaMEXO e remexo o meu corpo contra o sofá, mas parece que nenhuma posição é confortável o bastante. O som do telejornal invade os meus tímpanos, transmitindo praticamente as mesmas informações de todos os dias sobre as enfadonhas figuras políticas.Henrique caminha lentamente com seus pés descalços de volta à sala, segurando um copo com água em sua mão direita.— Aqui, meu amor — oferece entregando-me o copo em mãos.— Obrigada — Levo o copo ao encontro dos meus lábios e sinto o frescor do líquido passar pela minha garganta. Ponho o copo vazio sobre a mesa de centro e volto a remexer o meu corpo na vão tentativa de encontrar uma posição confortável.— Está desconfortável? — Assinto para Henrique em afirmativa. Ele traz seu corpo para a lateral do sofá e ajeita algumas almofadas. Depois, senta-se na extremidade e coloca meus pés sobre as suas coxas, massageando-os delicadamente. — Melhor?— Sim — respondo ao apoiar m
CristinaOUTRO dia, precisamente semana passada após a reunião que tive com minha orientadora de TCC, li um panfleto na rua que dizia algo como: "Não importa por quais problemas você esteja passando, tente sempre manter a calma". Com certeza a pessoa que idealizou essa frase não sabe o que é enfrentar um processo de adoção e a elaboração de um Trabalho de Conclusão de Curso ao mesmo tempo.Terminei o curso obrigatório há alguns dias e agora estou passando pela avaliação psicossocial por meio de entrevistas e visitas domiciliares feitas por uma equipe técnica interprofissional. Aliado a isso, Alberto tem trabalhado para que as guardas de Vitória e João sejam encaminhadas juntamente ao resultado da minha avaliação ao Ministério Público e ao juiz da Vara de Infância. Tudo isso tem me tirado o sono e deixado o meu corpo completamente tenso de tal forma que nem mesmo o gozo tem me feito relaxar. Definitivamente, calma é a última coisa que consigo ter neste momento.
Henrique— VOCÊ precisa ser homem, meu filho — Essa foi a frase que o meu pai me dissera até o seu último suspiro. Eu sabia que precisava ser homem, mas ele nunca me explicou o que necessariamente significava ser homem para ele. Minha mãe, durante as poucas ocasiões em que chorei à sua frente, me dizia, rispidamente, que chorar não era atitude de um homem de verdade, mas sim dos desviados. Eu tinha seis anos quando ela me falou isso pela primeira vez. Eu tinha sofrido uma queda e machucado os meus joelhos. No momento em que fui para os seus braços eu esperava que ela cuidasse de mim e não proferisse àquelas palavras.De algum modo, por muito tempo, eu associei ser homem com não demonstrar o que sentia. Toda essa face social de um homem impassível se quebrou no instante em que conheci Camila. Ela me desperta o desejo de expor os meus sentimentos, de não silenciar minha alma e coração.Nos últimos dias tenho me perguntado o que o meu pai acharia do homem
CamilaMESMO sabendo disto, eu não pude deixar de tomar um leve susto quando, ao acordar, vi minha barriga como se ainda tivesse com seis meses de gestação. Queria poder ter voltado para o meu apartamento ontem mesmo, mas Helena tinha alguns exames de rotina para fazer durante a manhã e seria mais confortável para nós duas se permanecêssemos por mais algumas horas na maternidade.Como já era esperado também, o meu ciclo menstrual não voltou regularmente. Eu apenas tenho tido leves corrimentos, e provavelmente, continuará desse modo enquanto eu estiver amamentando; o que pretendo manter até os dois anos de idade da minha filha. Henrique dormiu desconfortavelmente na poltrona ao lado da minha cama. Minha mãe se ofereceu para passar a noite comigo, mas ele recusou firmemente. Apesar de não tê-lo dito, sentir sua presença ao meu lado durante todo o trabalho de parto me ajudou de uma forma que não consigo expressar. Algumas pessoas dizem que os homens só se sente
CamilaNOS últimos 45 dias a minha rotina tem se resumido em dar de mamar para Helena, me alimentar, trocar as fraldas de Helena, dar banho em Helena, colocá-la para dormir, vinte minutos, no máximo, para ir ao banheiro e tomar banho, e assim sucessivamente, uma e outra vez.Algumas vezes peço para que Rita me ajude quando não consigo fazê-la arrotar após a mama ou quando Helena tem cólica. Não mais que isso. Sei que por Rita, ela cuidaria de Helena por toda a tarde. Mas, não sei... A ideia de deixar que outra pessoa cuide da minha filha no meu lugar não me agrada. Ainda que essa pessoa seja a Rita, que é uma das quem mais confio.Logo que saímos da maternidade minha mãe e tia Malu vinham todos os dias ao meu apartamento. Minha tia tentava me distrair, fazer com que eu tirasse um pouco da minha atenção de Helena. Enquanto minha mãe só deixava eu ficar com a minha filha quando ela precisava mamar. O restante do tempo Helena permanecia com ela.A