Camila
HENRIQUE leva sua mão esquerda à base da minha coluna, conduzindo-nos em meio às tendas e mesas ornamentadas por toalhas de renda rosa chá. A cor das toalhas nos transmite uma sensação acolhedora junto ao sol do fim da tarde.
A cada três meses o orfanato organiza um evento a fim de celebrar os novos benfeitores, apresentar as ações educacionais em que o dinheiro é investido e também conscientizar a sociedade sobre a importância da adoção. É estranho para mim estar em um evento como esse e não ser recepcionada por Ester, com seu sorriso frouxo e os bracinhos ligeiros em volta da minha cintura. Quando Íris me ligou há cinco dias atrás convidando-me para o evento, ela me informou antes mesmo que eu a perguntasse que Ester e seus novos pais não compareceriam. Eles achavam que trazê-la aqui poderia atrapalhar o seu processo de adaptação, já que ela sentia saudade do convívio com as outras crianças. Passeio os meus olhos pelas crianças queCristina— NÃO chore, Cristina, não chore — repito mentalmente e sigo com passos acelerados para o interior do orfanato.A vida parece que gosta de brincar comigo. Quando penso que as coisas estão indo bem, ela me desfere socos dos quais eu nem sei dizer de onde vieram. Eu deveria ter ouvido a minha consciência. Deveria ter recusado o pedido que Pérola me fez para acompanhá-la ao evento. Eu nem deveria ter atendido ao maldito celular. Ela disse que não queria um clima estranho entre nós, que me vira crescer e que estar separada de Henrique não nos impedia de continuarmos próximas. Eu fui idiota e acreditei em suas palavras, mas a primeira coisa que ela fez assim que me sentei ao seu lado foi criticar-me por ter cortado o cabelo. Em seguida iniciou suas tentativas de me convencer a não assinar o divórcio e buscar alguma forma de reconquistar a Henrique. Porém seus lábios se calaram no momento em que viu Henrique e Camila chegarem. E ver a barriga saliente de Cami
CristinaMEU pai sempre me disse que eu era muito idealista. Eu gosto de acreditar no lado bom das pessoas e ajudar aos outros mesmo sem ter como. Eu nunca soube se ele considerava isso em mim como algo bom ou ruim.Quando eu optei pelo curso de Serviço Social o meu pai não me disse nada, mas a minha mãe... Ela me criticou por estudar algo que envolvia um contato próximo com todo tipo de gente, como ela mesma dizia. Se eu queria um ensino superior, por que não fazia algo mais leve? Era o que ela me questionava. Porém o contato com diferentes pessoas, conhecer e ajudar de alguma forma para tentar melhorar as suas realidades são o que me fazem gostar tanto da área.O meu único problema é o cansaço e as dores de cabeça que a faculdade tem me trazido. Já havia me esquecido o quão frustrante o meio acadêmico pode ser, ainda que você ame o seu curso. Eu vou começar o estágio supervisionado nas próximas semanas. Algo que eu quero muito, mas também tenho um cer
Cristina— O que Deus uniu o homem não separa — dissera o padre olhando fixamente para mim e Henrique. — Eu vos declaro marido e mulher. Pode beijar a noiva — Henrique voltou seu olhar confuso para mim e aproximou hesitantemente seus lábios dos meus. Os aplausos que dominaram a igreja abafaram a pergunta esperançosa que saíra da minha boca assim que o rosto de Henrique afastara-se do meu:— Nós vamos ser felizes? — Seus olhos verdes refletiram a dúvida que o parecia perturbar desde o instante em que me recebera no altar pelas mãos do meu pai. Talvez eu também estivesse insegura com relação a isso, mas preferi acreditar que tudo ficaria bem. Ele separou seus lábios, respirou forte, e proferiu a mentira que nos manteve juntos durante os últimos nove anos: — Sim, nós vamos ser felizes.— Agora vocês estão legalmente divorciados — anuncia Priscila com seu olhar presunçoso ao receber o documento com minha assinatura. Simples assim, um papel com
CamilaFICAR com a mão sobre a minha barriga por alguns minutos tem se tornado o meu ritual ao acordar. Ainda não consigo senti-la se mexer dentro de mim, acabei de entrar na 16ª semana de gestação. Mas estar com a mão sobre o meu útero me traz uma sensação de paz, realidade.Eu ainda me assusto algumas vezes quando passo em frente ao espelho. Esta barriga crescente é realmente minha? É um tanto quanto louco perceber as transformações físicas no meu corpo. É como se a cada dia em que acordo eu me tornasse uma mulher diferente.Ponho meus pés para fora da cama, observo pelo vidro da janela os primeiros raios de sol do novo dia e caminho até o banheiro. Antes, sábado era o dia em que eu me permitia dormir até mais tarde. Agora, mesmo que eu não queira, acordo muito cedo. É também o único dia da semana em que desperto antes de Henrique. Entretanto, quando abri os meus olhos, ele não estava ao meu lado.Desde que assinou o divórcio, sinto que ele e
CamilaLEMBRO-me de quando eu era criança e a tia Malu me contava com o seu jeito debochado sobre os seus namorados e dos motivos que a faziam não levar seus relacionamentos com eles adiante. Um era muito ciumento, o outro era bagunçeiro demais e alguns não sabiam saborear a flor, dizia me dando seu olhar cúmplice. Recordo-me que uma vez a perguntei se ela algum dia pensou em se casar, e ela me respondera com toda seriedade que ainda não tinha conhecido ninguém que a fizesse gostar mais de abraços do que de beijos e que estivesse ao seu lado ainda que ela não pedisse. Dissera-me também que eu não devia me casar se eu não encontrasse alguém que pudesse fazer essas coisas por mim.Eu cresci observando as mulheres ao meu redor. Perdi as contas de quantos casais mal olhavam nos olhos um do outro, e eu jurei para mim mesma que eu não teria um relacionamento desse tipo para a minha vida. No fim, casar para mim não era nada menos que um rótulo social.Hoje, minha visão qu
CristinaHOUVE um tempo em que o silêncio fora o meu maior inimigo. Não só o silêncio dos outros, mas o meu próprio silêncio.Henrique conduz seu veículo; os olhos focados no tráfego que nos cerca. Mas percebo pela sua postura que ele está desconfortável, como se estivesse procurando por palavras as quais não consegue encontrar. Silêncio.Não sei como tive forças para ir à Casa de Prazer. Minha mãe, Pérola e algumas outras mulheres da igreja diziam que ali era um lugar fétido onde mulheres sem Deus iam vender seus corpos. No entanto a Casa de Prazer me pareceu ser o completo oposto disso. Até onde meus olhos puderam percorrer, tudo o que vislumbrei foi um lugar sofisticado e extremamente agradável de se estar. E as poucas mulheres com quem esbarrei transpiravam confiança sobre si e seus corpos. Mulheres felizes.Não esperava presenciar a cena que vi. Não que eu sinta ciúmes em ver Henrique com Camila, é muito mais pela diferença. A diferença no modo
Cristina— VOCÊ é tão quietinha, Cristina — Perdi a conta de quantas vezes me disseram isso enquanto criança e até mesmo já adulta. Eu sou quieta? Não sei. Eu nunca parei para definir a minha personalidade. Sempre tinha quem fizesse isso por mim. Porque é isto o que acontece quando permite que alguém fale por você, você não sabe exatamente quem você é.Nas poucas ocasiões em que tive coragem para expressar as minhas opiniões eu estava errada. Ao menos fora isso o que minha mãe me fez acreditar. Por muito tempo eu me senti como a Macabéa, de "A Hora da Estrela", só existia por meio dos outros. A minha voz não me pertencia. Recordo-me que durante o ensino médio havia um grupo de garotas populares, do qual eu não fazia parte, que assim que iniciava o intervalo das dez da manhã, elas comiam os seus lanches em meio a discussões calorosas sobre os livros da Clarice Lispector. Eu ouvia a tudo aquilo extasiada, e o que eu mais queria na época era poder ler um livro dela
CamilaMEXO e remexo o meu corpo contra o sofá, mas parece que nenhuma posição é confortável o bastante. O som do telejornal invade os meus tímpanos, transmitindo praticamente as mesmas informações de todos os dias sobre as enfadonhas figuras políticas.Henrique caminha lentamente com seus pés descalços de volta à sala, segurando um copo com água em sua mão direita.— Aqui, meu amor — oferece entregando-me o copo em mãos.— Obrigada — Levo o copo ao encontro dos meus lábios e sinto o frescor do líquido passar pela minha garganta. Ponho o copo vazio sobre a mesa de centro e volto a remexer o meu corpo na vão tentativa de encontrar uma posição confortável.— Está desconfortável? — Assinto para Henrique em afirmativa. Ele traz seu corpo para a lateral do sofá e ajeita algumas almofadas. Depois, senta-se na extremidade e coloca meus pés sobre as suas coxas, massageando-os delicadamente. — Melhor?— Sim — respondo ao apoiar m