Na manhã em que acordei, esperei ver o quarto azul, com o calor contra a pele, o canto dos passaros ao lado de fora, as ondas do mar se chocando contra as rochas. Mas, ainda sonolenta, abri os olhos devagar. Me sentei na cama, olhando ao redor do quarto que agora era meu.
Eu ainda estava no corpo de Nira.
Suspirei, sentindo uma mistura de desespero e resignação. Eu sabia que teria que continuar fingindo ser ela, pelo menos até encontrar uma maneira de voltar para o meu próprio corpo.
Pelo menos, as duas aulas que tive pela manhã, não tive que pensar em como fingir ser Nira com Camille, e também não precisei tomar café da manhã com Miles e ter de sentir seus olhos verdes me acompanharem com um amor que inexplicavelmente eu não sentia de Nira por ele. Não que ela não o amasse, ela amava, muito. Mas eu estava vivendo com Ammy, em um corpo que não era meu. Eu não sentia nada por Miles, não da maneira que deveria, eu pouco tinha noção da vida de Nira.
Apenas quando minha aula acabou, que eu o encontrei no estacionamento, onde Miles nos levaria até o atelie dos pais de Nira, ou meus pais, como deveria ser por enquanto.
O Ateliê dos pais de Nira — Bordados Genevivs —, ficava em um prédio de estilo parisiense clássico, com fachada de pedra clara e janelas altas e elegantes. Na entrada, havia uma porta de madeira bege com maçaneta de latão polido, e acima dela, um letreiro discreto com o nome do ateliê escrito em uma fonte cursiva elegante.
A rua era movimentada, com o som de carros e ônibus passando constantemente, e as pessoas caminhando apressadas em todas as direções. Mas mesmo assim, o ateliê parecia um refúgio tranquilo em meio à agitação da cidade, era o lugar favorito de Nira.
O que mais chamava a atenção era a grande vitrine de vidro, que exibia os últimos modelos criados pelos designers. Era impossível não parar por um momento para admirar as roupas impecáveis e os detalhes perfeitos.
— Finalmente em casa — falo, vendo Miles sorrir para mim.
O interior do ateliê é ainda mais encantador do que eu imaginava. O espaço é preenchido com móveis antigos e objetos de arte. Há um aroma agradável de flores frescas e tecidos novos. Os tecidos coloridos e os desenhos de moda em papel se espalham por todo o lugar. Na mesa de costura, vejo uma série de alfinetes e linhas de várias cores. Há retalhos de tecido espalhados pelo chão, como se alguém estivesse trabalhando em algo recentemente, no qual suponho ser o vestido que irei terminar com Miles, já que estamos sozinhos e não encontro mais ninguém por aqui. Também observo as roupas prontas penduradas em cabides em uma parede. São vestidos e casacos elegantes, com estilos que variam desde o moderno até o vintage.
— O desfile é amanhã a noite, e eu estou bem empolgado para ver você usando aquele vestido — apontou para o desenho que estava encima da mesa, mordiscando o lábio inferior. — Ainda bem que hoje o lugar é só nosso — Miles se aproximou, segurando meu rosto com as mãos em forma de concha.
Não me mexi, apenas esperei o proximo passo. Nira não se desvincularia nunca dele, e por isso fiquei imóvel quando ele selou nossos lábios em um beijo. Sua lingua se entrelaçou na minha. Miles me abraçou com força, como se não quisesse me deixar escapar. Eu não queria escapar. Conseguia sentir meu coração — o coração de Nira, bater — acelerado, sentindo a respiração quente de Miles contra meu rosto. E eu sei que esse beijo mudou tudo, tudo o que eu deveria sentir sobre Miles e sobre a vida de Nira.
Sai da transe de meus pensamentos, quando as mãos de Miles desceram até as minhas e me levaram a diante.
— Infelizmente, se eu quiser te apreciar mais, vou ter que trabalhar mais rapido nisso aqui — Miles se ajoelhou no chão, ao lado da mesa de costura, prendendo o tecido para que ela pudesse cortá-lo com precisão. O vestido tinha um decote em V profundo, com alças finas e uma saia longa e esvoaçante.
— Eu nem sei como começar de onde paramos — murmurei.
— Eu vou te ajudar — falou, com aquele sorriso no rosto.
Ele direcionou-me para que eu me sentasse, me passou o necessario e me instruiu ao que fazer. Agora, sentada à mesa de costura, com agulha e linha nas mãos, tentando seguir as instruções de Miles sobre como costurar o vestido vermelho. O tecido macio deslizava entre meus dedos enquanto eu trabalhava, tentando manter o ritmo.
Miles estava ao meu lado, olhando atentamente cada ponto que eu dava. Ele estava com uma expressão concentrada, como se estivesse estudando meu trabalho de perto. Às vezes, ele me dava instruções, ajustava algum detalhe ou me mostrava como fazer alguma coisa melhor. Eu apreciava sua ajuda e sua paciência, mas não podia evitar me sentir um pouco insegura. Afinal, eu não era Nira, e não tinha a mesma habilidade que ela tinha para costurar.
No entanto, a medida que trabalhava no vestido, comecei a me sentir mais confiante. Cada ponto era mais fácil do que o anterior, e comecei a perceber o quão belo o vestido estava ficando. Eu sabia que seria perfeito para o desfile de moda que estávamos planejando com Camille. Mas meus pensamentos foram interrompidos quando ele chamou pelo meu nome — pelo nome dela.
— Nira, você sabe que eu te amo, certo? — disse Miles, de repente, enquanto trabalhavamos na costura.
Eu olhei para ele e vi em seus olhos o quanto ele estava falando sério. Meu coração acelerou e eu senti meu rosto corar.
— Eu também te amo, Miles - respondi, com a voz baixa.
Seus dentes são perfeitamente alinhados e brancos, e seus lábios são cheios e rosados. Quando ele sorri, seus olhos brilham e suas bochechas se levantam, dando um ar ainda mais encantador à sua expressão.
É um sorriso que faz com que qualquer pessoa se sinta acolhida e bem-vinda, e eu adoro quando ele sorri para mim, mesmo que ele não saiba que é para Ammy que está sorrindo, ainda assim, eu adoro quando ele o faz.
— Então, o que você acha do desfile? - perguntou Miles.
— Eu acho que vai ser incrível. Estou ansiosa para ver todas as coleções das quais Cami nos mostrou — respondi, animada.
— Eu também. E o nosso vestido vai ser o melhor de todos, mesmo que nem faça parte do evento — disse Miles, piscando para mim.
— Claro, porque nós dois estamos trabalhando nisso — bufei uma risada.
Mas fechei-a imediatamente quando a expressão de Miles parecia de dor. De repente ele levou a mão à cabeça, franzindo a testa. Seus olhos se fecharam por um momento e ele se esquivou rapidamente, como se estivesse evitando algo. Fiquei preocupada e perguntei se ele estava bem, mas ele respondeu que era apenas uma dor de cabeça passageira. Mas Miles parecia um pouco mais pálido e ofegante do que o normal, como se houvesse alguma coisa que ele não queria me dizer. Perguntei novamente se estava tudo bem e ofereci ajuda, mas ele insistiu que não era nada importante. Ainda assim, não pude deixar de me sentir um pouco inquieta, e me preocupar com ele, mas foi quando os olhos verdes, agora quase acizentados me olharam após alguns segundos, que eu entendi exatamente o porque ainda estava no corpo de Nira.
Eu cheguei em meu apartamento inquieta. Estava apreensiva e preocupada com o que poderia acontecer. Eu sabia que estava no corpo de Nira por um motivo, e o que eu tinha descoberto não era nada bom. Tinha medo do que poderia acontecer se eu não conseguisse voltar ao meu corpo a tempo.Eu me sentei no sofá, tentando acalmar minha mente. Olhei para minhas mãos, as mãos de Nira, e senti um arrepio percorrer meu corpo. Eu não queria estar ali, não queria estar no corpo de outra pessoa. Mas eu sabia que precisava enfrentar a situação de frente, por mais que eu estivesse apavorada, não poderia deixar os dois sozinhos nisso, eu precisava fazer alguma coisa para intervir.Fechei meus olhos e respirei fundo, tentando me concentrar.Era difícil acreditar em algo assim, mas eu sabia que com tudo o que havia acontecido até agora, essa era uma possibilidade real. E se fosse verdade? O que aconteceria comigo e com Nira? O que aconteceria com Miles?Tentei controlar minha respiração, mas meu coração
Chegamos ao local do desfile com horas de antecedência, para nos certificarmos de que tudo estaria perfeito. Assim que chegamos, eu fiquei maravilhada com o local.O local do desfile era um palácio histórico, com arquitetura exuberante e um jardim bem cuidado. Havia cadeiras brancas organizadas em fileiras, um grande tapete vermelho e muitos fotógrafos aglomerados ao redor.Eu olhei para Camille e Miles, ainda sem acreditar que estava ali."Isso é incrível", sussurrei."E você é incrível, Nira", disse Miles, me dando um sorriso caloroso.Eu me sentia feliz por saber que era Miles ali, conversando comigo, empolgado ao meu lado, com os cabelos castanhos e os olhos azuis mais lindo do mundo. Mas me entristecia saber que ele não sabia que Nira não estava presente. Ela se lembraria de tudo o que eu quisesse deixar para ela depois. Nira estava adormecida dentro de seu corpo, enquanto eu vivia por ela.Nós seguimos o organizador até um salão luxuoso, onde fomos apresentados a outras pessoas
Odeio não saber o que estou fazendo aqui, e odeio ainda mais, saber que não estou sozinha, que divido o mesmo espaço de tempo com Hayden.Não faço mesmo, nem a mínima ideia do que o trouxe para cá. Já não o reconheço mais. Sei que entre seus planos não pode haver coisa boa, ou Hayden já teria deixado Miles viver a vida normalmente. Fico pensando em como devo fingir estar ao seu lado, para tentar enxergar onde ele quer chagar de fato. Quero saber o que ele pretende fazer, para que eu busque uma maneira de o impedir antes que tudo se perca de uma vez por todas, antes que eu volte para meu corpo original e não consiga voltar a tempo.Fecho os olhos com força, involuntariamente, e sou, sem querer, arrastada para mais uma lembrança, mas desta vez, não é uma de Nira, e sim, uma minha.Eu acabara de fazer vinte anos. Era um lindo dia ensolarado de 1861, eu estava usando um vestido de chita verde e branco, com babados e rendas na barra e nas mangas. Meus cabelos estavam presos em um tranças,
Depois de longas três horas, em que passei sentada em meu sofá, encarando a enorme vista que eu tinha da janela em minha frente, a porta de entrada soou algo como algumas batidas.Camille estava em reunião com a mãe dela em algum concerto que estavam juntas, e eu não esperava mais ninguém, principalmente depois da minha última conversa com Miles.Ainda envolvida em meus pensamentos, me levanto lentamente do sofá. A batida na porta me tira momentaneamente de minha introspecção, deixando-me curiosa e um tanto apreensiva.Com a mão estendida, seguro e giro a maçaneta, e meus olhos se arregalam de surpresa, meu corpo congela, o tempo para mais uma vez e eu não sei o que pensar, o que sentir ou o que dizer. É completamente diferente agora, e eu odeio isso, odeio muito. Minha mente luta, com palavras presas na garganta, para tentar entender se a cena que vejo é real, ou se é uma paranoia e estou criando situações irreais por me sentir assustada.Mas não, seus olhos me encaram, de uma forma
Antes mesmo de abrir os olhos, eu já sabia onde estava. O cheiro, o clima, totalmente familiares. Eu já estava tão acostumada com isso.Olhando ao meu redor, vejo o mesmo que vi por muitos e muitos anos. A cama está no centro do quarto, e ao lado desta, uma mesa de cabeceira exibe um abajur branco com desenhos de constelações. As paredes são pintadas de um azul que já se encontra quase que totalmente pálido, desbotado. Também há uma escrivaninha posicionada bem a frente da janela de vidro, onde papeis estão espalhados, onde ilustro qualquer pensamento, sentimento ou lembrança que não quero esquecer ou quero que esvaia de alguma forma.Encaro o tapete felpudo bem a minha frente. Ainda não acredito que fui lançada de volta para cá. Pela primeira vez em muito tempo, eu me senti completamente fraca, fora de controle. E agora, meu corpo doía, eu estava tão dolorida, que poderia jurar que esse corpo ficou abandonado na rua e foi atropelado incansavelmente por toneladas de caminhões.Levante
Andar a cavalo era uma das atividades que eu mais amava fazer no meu tempo livre, e acho que uma das vantagens de ainda não ter dado inicio em minhas missões, é que posso usar o tempo que ainda tenho para fazer isso.Tenho um cavalo branco que está comigo desde que sou criança. Seu nome é Lótus. Clarissa é minha melhor amiga, nós literalmente crescemos juntas, e fazemos tudo juntas. Na verdade, nós fazíamos. Agora, ando a cavalo ou sozinha ou com Hayden, raramente Clare tem olhos para outra coisa além do bonitão que fica cobiçando por aí. Ele se chama Asher, Asher Parker. Ele é mais velho que nós duas, está sempre treinando com os outros caras da sua idade, ele também ensina muitas coisas para os novatos. Acho que não existe alguém que brigue melhor que ele. Exceto Hayden, os dois andam treinando juntos ultimamente. Hayden é tão bom quanto ele, apesar de ser três anos mais novo. Estou andando a cavalo quando paro ao ver Hayden sorrindo para minha direção, se aproximando com uma espad
Ash e Hayden ficaram limpando toda a cozinha depois de jantarmos. Foi bom ignoramos a nossa realidade por esse tempo. Não posso ser egoísta e dizer que minha vida com Clare não era boa, ela era, sim. Nós duas nos divertíamos, cozinhávamos juntas, andávamos a cavalo, mergulhávamos no oceano, e tomávamos sol na beira da praia, olhamos os desenhos feitos pelas nuvens no céu... Mas também havia o lado ruim. Éramos só nós duas basicamente, e não podíamos ter envolvimento com outras pessoas por maior espaço de tempo. E não sabia de onde os livros e filmes tiram, de que pessoas que não envelhecem podem ter uma vida divertida e ir para onde quiserem, fazer o que quiserem. Eu por exemplo, amava conhecer o mundo, mas as vezes era bom ter uma casa para voltar. A irmã de Clare estava sempre em movimento, mas acho que já conheci tantos lugares, tantas vidas, que evitei de vir apenas para cá, onde sempre quis vir com Hayden, mas nunca consegui o fazer depois de perde-lo.Basicamente passamos mais d
O silêncio pairava pelo ar, exceto pelo lento movimento de Hayden, enquanto ele abotoava sua camisa preta. Ele já estava de pé, se vestindo, para o que imaginei, seria começar seu dia de trabalho. Fiquei remoendo como seria nossa vida se fossemos pessoas comuns. Acordaríamos juntos, tomaríamos café da manhã, e em alguns dias, ele me levaria o café na cama, como já havia feito inúmeras vezes. Aquela sacada com vista para toda cidade de Paris, seria onde jogaríamos muitas conversas fora, seria onde daríamos risadas, contaríamos sonhos, desejos e medos, sob as luzes das estrelas. Não seriamos perfeitos, mas levaríamos uma vida assim. Ou talvez, ainda estivéssemos em nossa cidade natal, imagino como seria, ver nossos filhos crescerem, envelhecermos juntos. Mas aqui estávamos nós dois, eu sentada na cama, olhando para Hayden, que ainda não notara que eu havia acordado. E preferi ficar alguns segundos em silêncio, o observando. — Você acordou — ele disse, com um meio sorriso nos lábios.