Antes mesmo de abrir os olhos, eu já sabia onde estava. O cheiro, o clima, totalmente familiares. Eu já estava tão acostumada com isso.
Olhando ao meu redor, vejo o mesmo que vi por muitos e muitos anos. A cama está no centro do quarto, e ao lado desta, uma mesa de cabeceira exibe um abajur branco com desenhos de constelações. As paredes são pintadas de um azul que já se encontra quase que totalmente pálido, desbotado. Também há uma escrivaninha posicionada bem a frente da janela de vidro, onde papeis estão espalhados, onde ilustro qualquer pensamento, sentimento ou lembrança que não quero esquecer ou quero que esvaia de alguma forma.
Encaro o tapete felpudo bem a minha frente. Ainda não acredito que fui lançada de volta para cá. Pela primeira vez em muito tempo, eu me senti completamente fraca, fora de controle. E agora, meu corpo doía, eu estava tão dolorida, que poderia jurar que esse corpo ficou abandonado na rua e foi atropelado incansavelmente por toneladas de caminhões.
Levantei-me da cama e meus pés encontraram o chão quente. O céu estava tão azul e límpido, sem nuvens a obstruir o brilho do sol. Os pássaros cantavam em uma sinfonia harmoniosa, de uma forma natural, como se não pudessem pertencer a outro lugar. O aroma fresco da vegetação e das flores invadiam o ambiente, trazendo consigo um perfume que despertou em minhas entranhas, agonia. Hayden disse que eu deveria voltar para minha irmã, ele supôs que eu tinha uma, mas na verdade, eu não estava com ela, apenas Eline e eu ficamos juntas, e ela fazia o máximo que podia para que continuássemos.
Viro-me e sigo para o lado de fora da casa, onde estou sozinha, nesse enorme campo, no qual posso ver o vasto horizonte se estendendo até onde os olhos podiam alcançar. As colinas verdejantes se fundem com o azul infinito do oceano. Sinto também a grama macia sob meus pés descalços. Cada passo me conectava com a terra, trazendo-me uma sensação de pertencimento e familiaridade. A brisa quente acariciava meu rosto, jogando meu cabelo para trás.
Ao longe, avisto uma figura delicada, cabelos castanhos, roupas sujas de terra, e a única pessoa no qual divido a maior parte da minha vida. Clarisse.
Não preciso me aproximar muito, para que a mulher sentada em frente ao penhasco, encarando a janela azul do oceano, olhe para trás e me receba com um sorriso que em segundos se transforma em raiva.
— Onde você estava? — ela pergunta, com os olhos verdes me encarando. — Eu fiquei preocupada com você. Saiu sem nem me avisar. Você nunca sai a menos que precisemos e nós não precisávamos. Foram dias, além de tudo. Dias. Onde é que estava com a cabeça?
— Clare — finalmente posso falar. — Eu não sai porque quis. E me desculpe por isso.
— Está tudo bem? — pergunta, e eu não sei o que devo lhe responder. Não quero a deixar preocupada com problemas dos quais não quero que se envolva, mas é a Clarisse, minha melhor amiga, minha família.
— Fui arrastada até Paris, e fiquei em uma garota que cursa moda.
— Isso não parece nada ruim, até porque seu sonho sempre foi ir para lá...
— Hayden está vivo.
Clarissa me encara, tão em choque quando eu imaginei que ficaria. Ela, dentre qualquer outra pessoa no mundo, sabia exatamente o que passei.
Me sentei onde ela estava antes de me ver, e pedi para que ela se sentasse também, porque eram muitas coisas para absorver.
Contei cada detalhe, desde o começo, não poupei nenhum detalhe, absolutamente nenhum. E quando terminei, ela olhava para o distante, pensativa e em silencio por alguns segundos. Clarissa era ótima em esconder seus sentimentos, eu nunca arriscaria a vida dela, por nada no mundo.
— Acho que você tem que voltar — sua voz me assustou, e minha reação foi rir.
— Você está falando sério?
— Sim. Você e Hayden principalmente tem muitas coisas para resolver. Eu sei o quanto sua história com ele é quebrada, além disso, você nunca vai se perdoar se...
— Se ele não ficar bem? — pergunto, e ela assenti com a cabeça.
— Eu vou com você — ela fala, e eu a encaro, com os olhos arregalados.
— Não, nós não podemos arriscar tudo assim. Você fica.
— Também tenho direito de ajudar meu povo — protesta, arqueando a sobrancelha.
— Não, você não pode ir, Clare. Menssa pode voltar a qualquer momento, e não acho que queira arrastar sua irmã nessa confusão.
— Mas...
— Ela tem razão, você fica — a voz atrás de nós nos pegou de surpresa, e me virei para o ver.
— Ash, você voltou — falo, me colocando de pé, para ir ao seu encontro.
— Voltei, monstrinha — ele diz, me abraçando, e quando encontra meus olhos, ele se volta para Clare. — Eu vou com ela.
— Não, você não vai — reclamo.
— Se eu não for, ele vai — dois contra um.
Me dou por vencida.
— Vou arrumar minhas coisas — suspiro.
— Vou junto — Ash sorri, me provocando.
Ash morava e não morava conosco ao mesmo tempo, estava sempre em movimento, procurando incansavelmente pela única pessoa no mundo que fazia seu coração ainda bater.
Enquanto caminhávamos para casa juntos, olhei para ele, analisando o cabelo preto como carvão, os olhos azuis como oceano. Eu tinha que olhar bem para cima se quisesse ver seu rosto, ele era alto e forte, com uma tatuagem de nosso grupo marcada em seu braço esquerdo. Cada de um de nós ganhava uma quando estávamos prontos para seguir nossa missão. Não cheguei a ganhar a minha, mas se tivesse, seria a mesma da minha mãe, porque éramos iguais. A tatuagem dela começava no pulso e se estendia até o antebraço, formando um intricado padrão que parece fluir pela pele. Era composta por linhas suaves e delicadas, que se entrelaçavam em uma combinação de formas abstratas e símbolos envolto por folhas e flores em um padrão harmonioso de lírios.
— Você a encontrou? — pergunto.
Ele abre um meio sorriso. Sabia como era difícil, apesar de sempre querer a encontrar, ele sabia como seria se final.
— Sim. Ela é incrivelmente perfeita.
Sorrio para ele.
— Como ela é?
— Cabelos castanhos, olhos esverdeados, se chama Blaise.
Seus olhos brilham toda vez que fala sobre ela.
Ash a perdeu inúmeras vezes por um erro do passado, e agora, toda vez, tenta concertar algo que parece nunca ter solução. Eu queria fazer mais por ele, mas sobre isso, não tenho controle, porque não tenho controle sobre ela, e isso envolve os dois.
— Ash, você não tem que ir comigo — falo, parando na entrada de meu quarto.
— Eu estava indo para Dakota do Norte, não tenho certeza se dará certo, mas tenho certeza de que você precisa mais da minha ajuda...
— E ela? Você tem que ir e ficar com ela, Ash...
— Ammy, cala essa boca e me deixa ajudar, você fica me devendo uma depois, aliás, não tem como eu voltar para ela se estiver tudo destruído, não é? Aliás, quem sabe no meio dessa confusão, eu não encontre minhas respostas mais rápido, sei lá.
— Ficou escutando a conversa por quanto tempo?
— Me perdoe, mas escutei tudo.
— Mas quero que Laurent fique, não quero deixar Clare nessas condições.
— Eu concordo plenamente com você.
— Legal, então arrume suas coisas logo, porque vamos ter uma longa viagem.
Andar a cavalo era uma das atividades que eu mais amava fazer no meu tempo livre, e acho que uma das vantagens de ainda não ter dado inicio em minhas missões, é que posso usar o tempo que ainda tenho para fazer isso.Tenho um cavalo branco que está comigo desde que sou criança. Seu nome é Lótus. Clarissa é minha melhor amiga, nós literalmente crescemos juntas, e fazemos tudo juntas. Na verdade, nós fazíamos. Agora, ando a cavalo ou sozinha ou com Hayden, raramente Clare tem olhos para outra coisa além do bonitão que fica cobiçando por aí. Ele se chama Asher, Asher Parker. Ele é mais velho que nós duas, está sempre treinando com os outros caras da sua idade, ele também ensina muitas coisas para os novatos. Acho que não existe alguém que brigue melhor que ele. Exceto Hayden, os dois andam treinando juntos ultimamente. Hayden é tão bom quanto ele, apesar de ser três anos mais novo. Estou andando a cavalo quando paro ao ver Hayden sorrindo para minha direção, se aproximando com uma espad
Ash e Hayden ficaram limpando toda a cozinha depois de jantarmos. Foi bom ignoramos a nossa realidade por esse tempo. Não posso ser egoísta e dizer que minha vida com Clare não era boa, ela era, sim. Nós duas nos divertíamos, cozinhávamos juntas, andávamos a cavalo, mergulhávamos no oceano, e tomávamos sol na beira da praia, olhamos os desenhos feitos pelas nuvens no céu... Mas também havia o lado ruim. Éramos só nós duas basicamente, e não podíamos ter envolvimento com outras pessoas por maior espaço de tempo. E não sabia de onde os livros e filmes tiram, de que pessoas que não envelhecem podem ter uma vida divertida e ir para onde quiserem, fazer o que quiserem. Eu por exemplo, amava conhecer o mundo, mas as vezes era bom ter uma casa para voltar. A irmã de Clare estava sempre em movimento, mas acho que já conheci tantos lugares, tantas vidas, que evitei de vir apenas para cá, onde sempre quis vir com Hayden, mas nunca consegui o fazer depois de perde-lo.Basicamente passamos mais d
O silêncio pairava pelo ar, exceto pelo lento movimento de Hayden, enquanto ele abotoava sua camisa preta. Ele já estava de pé, se vestindo, para o que imaginei, seria começar seu dia de trabalho. Fiquei remoendo como seria nossa vida se fossemos pessoas comuns. Acordaríamos juntos, tomaríamos café da manhã, e em alguns dias, ele me levaria o café na cama, como já havia feito inúmeras vezes. Aquela sacada com vista para toda cidade de Paris, seria onde jogaríamos muitas conversas fora, seria onde daríamos risadas, contaríamos sonhos, desejos e medos, sob as luzes das estrelas. Não seriamos perfeitos, mas levaríamos uma vida assim. Ou talvez, ainda estivéssemos em nossa cidade natal, imagino como seria, ver nossos filhos crescerem, envelhecermos juntos. Mas aqui estávamos nós dois, eu sentada na cama, olhando para Hayden, que ainda não notara que eu havia acordado. E preferi ficar alguns segundos em silêncio, o observando. — Você acordou — ele disse, com um meio sorriso nos lábios.
Acontece que naquela noite, Hayden não voltou para casa.Ash e eu ficamos o esperando, por horas. Meu amigo se dispôs a sair e procurar por Hayden, mas afinal, isso seria completamente inútil, eu sabia que ele não havia sumido porque ficou em um bar bebendo ou tenha sofrido algum acidente mundano por algum lugar nas ruas de Paris, ele não voltou por algo que certamente estava ligado ao que queriam conosco.A noite em que passei acordada, foi como um tormento, não consegui pregar meus olhos, nem mesmo se quer por alguns dez minutos. E enquanto fiquei horas, andando de um lado para o outro, Ash ficou me encarando, mas a única coisa que poderia fazer com que eu deixasse de ficar inquieta, seria se ele entrasse na minha mente. E por mais que ele tivesse insistido em tentar me acalmar com seu dom — que não funcionava exatamente em mim, mas ajudava muito, pelo menos no controle de emoções —, eu não deixei. Achei injusto me acalmar com a situação de Hayden, mas ele fez mesmo assim. E me prom
Eu estava parada em frente ao espelho, no quarto de Hayden, observando meu reflexo com um misto de nervosismo e ansiedade. Optei por usar um vestido azul de alças finas e de longo comprimento, que realçava minha silhueta delicadamente. O tom azul vibrante combinava com meus olhos, destacando-os ainda mais. Meus cabelos ondulados caíam suavemente sobre meus ombros, emoldurando meu rosto. Preferi deixá-los soltos, já que odiava penteados que destacavam meu rosto, era sempre uma mechinha solta aqui ou ali.Enquanto me observava no espelho, senti um calafrio percorrer minha espinha. A incerteza sobre o paradeiro de Hayden e o que poderia ter acontecido com ele me deixava inquieta. Meu coração batia acelerado, ansioso por respostas que ainda não tinha. Pela primeira vez, eu desejei muito que hoje, quando encontrasse Miles, não fosse Miles.— Está tudo bem se sentir assim, com medo — Ash estava encostado no batente da porta, usava um terno preto que combinava muito com ele, realçava seus ol
— Então, vocês já se conhecem...? — Nira perguntou, intercalando seu olhar entre Hayden e eu, se referindo a Miles.— Ah, sim — Hayden respondeu. — Na verdade, conheço, os dois estão de viagem e vieram passar uns dias em casa.— Achei que fosse aluna e só tivesse mudado de período — Camille acrescentou, um tanto suspeita quanto Nira aparentava estar.Realmente, tínhamos coisas que estávamos escondendo delas, mas a última coisa que eu queria que pensassem, era que eu estava tentando dar encima do ex-namorado da garota que na verdade estou tentando proteger também.— Tirei um ano sabático, sabe, fui viajar e quando voltei, resolvi mudar de período, por isso que estou meio perdida nas aulas, sabem?! — cruzei os dedos mentalmente para que elas tivessem acreditado. Que merda Hayden.Nira simplesmente deu de ombros, e deslizou uma mão suavemente pelo braço de Hayden, chamando sua atenção.No fundo pensei que talvez nem me importasse tanto com ela naquele momento, só queria que ela soubesse
Os olhos verdes de Nira me olhavam como se ainda não pudessem acreditar em nenhuma das palavras na quais foram ditas por mim a ela. Também queria poder lhe dizer que era somente uma piada. Se nada disso era fácil nem mesmo para nós que crescemos lutando a cada dia para se preparar para algo como isso, nem posso imaginar como deve ser o choque para quem nunca nem mesmo soube sobre quem se é de verdade.Nira me permitiu mostrar-lhe mais com o controle de mentes. Ela me deixou entrar, mostrar o que seria mais fácil de entender com os “olhos”, do que apenas com palavras. Também achei mais que justo mostrar e devolver toda lembrança que tive enquanto estava em seu corpo, a hospedando.Não sei quanto tempo durou tudo isso. Infelizmente, nunca seria o suficiente. Eu jamais poderia ser ignorante e fingir que sim. Além de tudo, não era só ela quem estava em jogo, era Miles também. Eles corriam um risco, e ela era a única que poderia fazer algo por um dos dois naquele momento. Se ela me dissess
Não consegui descansar mais do que algumas horas, talvez duas no máximo, depois e tomar um banho quente, trocar de roupas. Deitei na cama, que não era somente convidativa a olho nu, mas ao se deitar parecia que estava sendo abraçada por ela. Mas eu estava inquieta, não consegui fechar os olhos e os manterem assim.Havia um espelho que ficava pendurado na porta do quarto. Então, antes de sair para fora, dei uma checada em como eu estava. Calça legging preta, uma camiseta azul e all star nos pés.Em frente aos chalés, haviam alguns banquinhos feitos de madeira branca. Aura foi a primeira pessoa que vi, sentada em um dos bancos que ficava em frente ao nosso quarto. Ela estava lendo um livro, e abriu um sorriso largo ao me ver, se virando para trás.— Bem que Hayden disse que você é teimosa e não iria dormir — disse, e antes mesmo que eu protestasse, ela acrescentou: — Que bom que somos iguais nisso também.Sorri, sendo amigável e um pouco aliviada.— Vem, vou te mostrar o refeitório, dev