O relógio marcava sete e meia da noite. Batidas irromperam pelo cómodo, enquanto eu terminava de fechar o zíper da saia lápis cinza. Eu estava com a mente vaga, a ameaça de Génesis não parava de rondar pela minha cabeça.
Caminhei até à porta e abrí-a, dando de caras com lady Armstrong.
__ O Senhor Greenford acabara de ligar para avisar que não poderá voltar para casa hoje devido a uma viagem de última hora. Então, mais uma excepção será aberta para Senhorita hoje. Poderá sentar-se à mesa da sala de jantar para acompanhar à menina Génesis.
Ela proferiu as palavras de forma ácida. Somando dois mais dois era possível chegar a conclusão de que Génesis não era a única que estava incomodada com à minha presença.
__ Está bem, lady Armstrong. Juntarei-me a menina em breve.
Ela dá-me as costas e encaminha-se para a direção oposta a do meu quarto, mas acaba detendo-se no caminho.
__ Pelos vistos terei de falar com a costureira para que lhe ceda um tamanho maior. Este ficou-lhe curtíssimo.
Eu encrespo os lábios espirituosamente, visivelmente afectada com sua constatação.
__ Mas, o uniforme é dois palmos abaixo do joelho. Não vejo nenhum problema.
Digo olhando para o meu corpo delgado, coberto pelo tecido longo e folgado.
__ Eu estou lhe dizendo que não está adequado.__ ela vira-se para mim.__ Na ausência do senhor Greenford eu sou a lei.
O seu tom petulante vem acompanhado de um meio sorriso audacioso.
__ Espero por si na sala de jantar em cinco minutos.
Espero ela desaparecer no corredor para por fim adentrar.
Sento-me em frente ao espelho da penteadeira e pego o pente de marfim, pensando que nunca havia sido tão mal-tratada em minha vida.
Com certeza será questão de semanas ou até mesmo dias até que ambas as duas consigam o que querem. Mas, decido afastar esses pensamentos.
Passando pelo corredor, senti-me observada por todos aqueles retratos. Mas, o daquela mulher novamente atraía-me como um íman. Olhei para os lados antes de fitá-lo com mais atenção.
A riquesa dos detalhes era fascinante. Um sorriso riscou-me os lábios ao imaginar que tenha sido pintado na era victoriana.
Eu afastei-me do quadro e segui o meu caminho até à sala de jantar. Pude ter a oportunidade de observar com mais atenção os móveis rústicos que apesar de serem antigos estavam bem conservados.
Quando adentrei o cómodo, encontrei Génesis já me aguardando com impaciência. Na extensa mesa coberta por uma linda toalha de renda estavam expostos os pratos da mais fina porcelana inglesa, talheres de prata, copos e taças de cristais. Tudo muito bem polido.
Sem saber muito bem onde sentar-me ocupo o lugar à frente de Génesis. Ela revira os olhos para mim e de seguida desvia-os para os talheres à sua frente.
Lady Armstrong adentra a sala de jantar acompanhada de duas copeiras. Com os braços cruzados atrás das costas ela avalia a organização da mesa, de seguida eu e Génesis passamos pela sua análise minuciosa, o seu nariz adunco é empinado de forma arrogante como o de uma marquesa do século XVII.
As copeiras com a expressão igualmente circunspecta servem o jantar de maneira mecânica.
__ Bom apetite!
Lady Armstrong diz olhando para Génesis com veemência, ela fica retraída e olha para baixo.
__ O seu pai não me disse onde a Senhorita estuda.
Comento quando somos deixadas a sós.
__ Eu estudo no Saint Luiza's, é uma escola exclusiva para meninas. Fica a algumas horas daqui.
Eu assinto.
__ Deve ser bem cansativo fazer esse trajecto todos os dias.
Ela dá de ombros.
__ Eu gosto. É reconfortante não se sentir presa dentro de uma gaiola para variar.
Ela brinca com a sopa em sua tigela.
__ Não está com fome?
Ela balança a cabeça negativamente e de seguida recosta-se no espaldar da cadeira.
__ Eu almocei tarde. Será que posso ir deitar-me?
Eu deixo a colher de lado e a encaro.
__ Deveria comer pelo menos uma fruta para não sentir fome durante à noite.
Ela revira os olhos.
__ Eu não quero comer nada! E, acima de tudo não me apetece partilhar à mesa com você.
Lady Armstrong junta-se a nós. Os seus olhos passam por mim e de seguida para Génesis.
__ Eu sinto uma leve tensão. Aconteceu alguma coisa?
Ela franze as sobrancelhas e cruza os braços.
__ Não, lady Armstrong. Está tudo certo.
Génesis responde, olhando para mim com frieza.
__ Muito bem. O que acha de tocar piano para nós após o jantar?
O pedido de lady Armstrong soara mais como uma ordem.
__ Como quiser, lady Armstrong.
Ela pega a colher de sopa e leva-a até à boca, meio que a contragosto.
O resto do jantar segue-se em silêncio. Enquanto as copeiras retiravam a louça suja nós seguiamos até a sala de estar onde jazia um grande piano. Olhando com mais atenção percebi que fora nesse lugar onde o retrato daquela senhora fora pintado.
__ Eu deixei as partituras na primeira gaveta da sua cómoda, menina.__ disse lady Armstrong.
Eu acomodei-me numa poltrona frontal ao piano.
__ Deixe que eu pego, não me demoro nada.
Ela lança-me um sorriso sorrateiro antes de seguir até às escadas.
Dou de ombros e foco-me no grande retrato sobre a lareira. Nele estavam o senhor Greenford e a mesma mulher do outro retrato, ela segurava um bebé ao colo que supus como sendo a senhorita Génesis.
Eu sabia que o Senhor Greenford era viúvo, provavelmente aquela era à sua falecida esposa.
Quando Génesis voltou ela acomodou-se no banquinho estofado de frente ao piano e começou a tocar uma peça que eu reconheci logo como sendo a do compositor alemão Beethoven. Ela tocava a sinfonia número cinco com primor.
Lady Armstrong estava à sua atrás e a observava com um sorriso orgulhoso.
À meia noite eu deixei Génesis em seu quarto e segui para o meu. Estava exausta e tudo o que precisava no momento era de descansar.
Eu descalcei os meus sapatos e despi-me do meu uniforme para de seguida envergar-me no meu pijama de flanela.
Antes de deitar-me na cama eu ajoelhei-me e agradeci a Deus por finalmente ter abandonado aquele bairro povoado apenas por pessoas de índole duvidosa.
Logo que eu cobri-me um lóstrego rasgou a noite. Provavelmente um temporal começaria.
No quarto mal iluminado, reinava uma profunda paz. Ouvia-se apenas o
tamborilar das gotas de chuva na vidraça e o característico tic tac do pêndulo do relógio sobre a velha cómoda, que ia aumentando de intensidade.Eu não conseguia dormir. Uma coceira enorme que começara nas costas agora se alastrava por todo o corpo. Eu coçava os braços, rosto e barriga freneticamente.
A coceira era tão grande que fui obrigada a despir-me.
Uma vistoria nos lençóis permitiu-me ver uma substância estranha. Aquilo só poderia ser pó de mico.
__ Génesis!
De manhã, eu fui informada que teria de acompanhar novamente a senhorita Génesis durante à refeição.Eu estava sonolenta e com leves olheiras que me proporcionavam um ar de cansaço. As manchas avermelhadas na minha pele estavam camufladas com um cropped de gola alta e manga longa.Mas, não era de todo um problema usar aquela peça. O dia amanhecera frio e o céu escuro ameaçava uma chuva fina.Dirigi-me até a sala onde seria servido o desjejum, encontrando a movimentação das copeiras, e Génesis de pé a um canto, perto da janela, conversando com lady Armstrong. Quando a mais velha notou à minha presença murmurou-lhe algo, e de seguida fitou-me com uma expressão séria.__ Bom-dia, miss Drumong. Está atrasada para o desjejum.Eu olhei as senhoras terminando de ajeitar as xícaras de porcelana com o cenho franzido.__ As copeiras ainda não terminaram de organizar a mesa.__ pontuei.__ A senhorita também é uma funcionária, não deve achar
Embora eu tivesse a plena noção de que Collin Greenford era o patriarca da mansão em que eu me encontrava, a mim ainda soara como uma grande novidade vê-lo adentrando pela porta principal. Ele mantinha o telefone em uma mão e na outra segurava a valise preta.O seu cabelo castanho escuro estava bagunçado, e no momento vestia um terno preto de três peças que o deixara bastante elegante, embora o nó da gravata estivesse desfeito e o colarinho desabotoado.__ Senhorita Tessa.Ele pronunciou o meu nome num tom surpreso. Guardou o telefone no bolso da sua calça e fitou-me com atenção.__ Boa-noite, senhor Greenford. É um prazer revê-lo.Afirmo com um sorriso polido.__ Senhorita Drumong?A voz de lady Armstrong soou bem atrás de mim. Eu virei-me para o lado, vendo-a caminhar até nós.__ Oh! Senhor Greenford, eu não sabia que já se encontrava em casa.Ela aproximou-se dele às pressas e recebeu à sua valise
Eu abandonei o quarto da senhorita Génesis com à sua frase martelando em minha cabeça, fiquei boquiaberta com o que dissera e não soube o que lhe responder no momento, restando-me apenas a opção de desejar-lhe um "boa-noite" pesaroso e retirar-me.__ Senhorita Drumong?Lady Armstrong chamou-me quando estava prestes a adentrar o quarto. Soltei um suspiro discretamente e virei-me para ela com um sorriso que não condizia com o meu estado de espírito.__ Deseja alguma coisa, senhora?Ela passou as mãos por cima do uniforme com cuidado, tentando não demonstrar a curiosidade avassaladora que parecia lhe entorpecer a alma.__ Nada de mais. Vi que acabara de sair do quarto de Génesis, ela já está dormindo?Eu fitei-a com o sobrecenho franzido.__ Não, ela está lendo um livro. Mas, creio que daqui a nada irá deitar-se. Porquê?Ela empinou o nariz de forma
Embora eu não fosse uma exímia apreciadora de matemática ou de qualquer outra área que envolvesse muito esforço mental, eu havia me dedicado para explicar sobre composição e decomposição de números naturais à menina Génesis, ainda tendo de carregar o fardo de ter as palavras de lady Armstrong ecoando pela minha cabeça.__ Então... Qual é mesmo a diferença entre a composição e a decomposição?Pergunto a ela como forma de revisarmos uma última vez e de afastar os sentimentos ruins que começava a nutrir por aquela mulher desagradável.__ A composição é a junção de dois ou mais elementos que quando unidos ou subtraídos formam um só e decomposição é quando decompomos em dois ou mais elementos um número natural.Fito-a com um sorriso.__ Muito bem, alguma dúvida relacionada a matéria?Ela repousa o queixo na palma da mão e nega com a cabeça.__ Se quiser pode tirar um
Um silêncio perturbador tomava conta da sala de jantar enquanto a copeira chegava com um prato de salada de folhas mistas, salpicadas de nozes, damascos e pedaços de salmão defumado.O Senhor Greenford ligara minutos atrás para avisar que não dormiria em casa, pois tivera uma viagem de última hora a Veneza. Pelos vistos as suas viagens de última hora são bem recorrentes já que não pareceu gerar surpresa aos empregados ou à sua filha.Eu entendo que ele é um homem muito ocupado e importante, algo que se reflete em suas vestimentas elegantes e moradia pomposa, mas seria bom se ele dedicasse também um pouco de tempo a filha. Mas quem sou eu, uma mera babá que acabara de chegar para opinar?__ O que acha de eu pegá-la amanhã, depois das suas aulas para irmos passear? Podemos ir ao shopping ou ao cinema.Génesis larga os talheres ruidosamente e fita-me com um grande sorriso, mas logo volta a conter-se e olha para o
Com os olhos semicerrados leio o título do livro que Génesis acabara de me entregar, no seu rosto havia uma expressão de divertimento.__ O que é isso?__ pergunto com a minha feição evidenciando a confusão que sentia.Génesis revira os olhos ainda mantendo o belo sorriso.__ É um livro, Tessa. Não é óbvio?Ela caminha até à sua cama e senta-se à beirada.__ Eu sei que é um livro, mas por quê está me oferecendo?Soltando um suspiro, ela bate com a palma da mão no espaço ao seu lado chamando-me para sentar ali.__ A Senhorita confidenciou-me que tem dificuldades para ler, por isso estou-lhe oferecendo esse livro, ele é bastante especial para mim. Foi minha avó materna quem mo ofereceu para me honrar pelo meu sétimo aniversário, nele havia uma bonita carta de despedida.__ assinalou ela com um brilho nos olhos.Eu franzi levemente os lábios, confusa.__ Carta de despedida?__ Quan
Eram quatro horas da tarde e um quarto quando Génesis chegou da escola, vestida com o uniforme de educação física e com o rosto denotando cansaço. Ela abriu um sorriso quando me viu à sua espera no foyer.__ Boa tarde, Tessa.O abraço que ganhei seguido do seu cumprimento deixou, não só a mim, como também lady Armstrong, que descia as escadas, boquiaberta, com a demonstração de afeto espontânea.__ Boa tarde, pequena pupila.__ sorri-lhe, retribuindo o abraço.__ Pelos vistos o dia na escola foi bom.Ela afastou-se com um sorriso no rosto.__ Tenho algo para lhe mostrar!__ exclamou entusiasmada.Com um leve pigarro, lady Armstrong fez-se notar, parada no último degrau da escadaria.__ Boa-tarde, menina Génesis.Sem um pingo de ânimo Génesis respondeu ao seu cumprimento:__ Boa-tarde, lady Armstrong.__e olhando-me de volta, inquiriu:_
Acordo num sobressalto, arfante, suado, com o coração aos pulos e um grito de terror entalado na garganta. Mais um pesadelo. Olho institivamente para o relógio de pêndulo sobre a cómoda, constatando que os ponteiros marcam três e meia da madrugada.Mais uma noite que possivelmente demorará muito para acabar.Parece que meu inconsciente fora condicionado com pesadelos desde a morte de Kendall. Desde que ela partira nunca mais consegui dormir plenamente, já que minhas tentativas são sempre frustradas pela chegada de um pesadelo em específico. Um terrível e doloroso pesadelo.Se eu fechar os olhos ainda consigo ouvir os seus gritos de agonia, o rosto pálido, os olhos azuis-safira mirando-me aterrorizados, eu conseguia ver o abismo neles.No sonho ela me chama de assassino.Não está de todo errada. Afinal, eu estava ciente das suas angústias, sabia que a depressão estava acabando com ela aos poucos, mas ainda assim não fiz nada para invert