Secção 3

O relógio marcava sete e meia da noite. Batidas irromperam pelo cómodo, enquanto eu terminava de fechar o zíper da saia lápis cinza. Eu estava com a mente vaga, a ameaça de Génesis não parava de rondar pela minha cabeça. 

Caminhei até à porta e abrí-a, dando de caras com lady Armstrong.

__ O Senhor Greenford acabara de ligar para avisar que não poderá voltar para casa hoje devido a uma viagem de última hora. Então, mais uma excepção será aberta para Senhorita hoje. Poderá sentar-se à mesa da sala de jantar para acompanhar à menina Génesis. 

Ela proferiu as palavras de forma ácida. Somando dois mais dois era possível chegar a conclusão de que Génesis não era a única que estava incomodada com à minha presença.

__ Está bem, lady Armstrong. Juntarei-me a menina em breve.

Ela dá-me as costas e encaminha-se para a direção oposta a do meu quarto, mas acaba detendo-se no caminho.

__ Pelos vistos terei de falar com a costureira para que lhe ceda um tamanho maior. Este ficou-lhe curtíssimo.

Eu encrespo os lábios espirituosamente, visivelmente afectada com sua constatação.

__ Mas, o uniforme é dois palmos abaixo do joelho. Não vejo nenhum problema.

Digo olhando para o meu corpo delgado, coberto pelo tecido longo e folgado.

__ Eu estou lhe dizendo que não está adequado.__ ela vira-se para mim.__ Na ausência do senhor Greenford eu sou a lei.

O seu tom petulante vem acompanhado de um meio sorriso audacioso.

__ Espero por si na sala de jantar em cinco minutos. 

Espero ela desaparecer no corredor para por fim adentrar. 

Sento-me em frente ao espelho da penteadeira e pego o pente de marfim, pensando que nunca havia sido tão mal-tratada em minha vida. 

Com certeza será questão de semanas ou até mesmo dias até que ambas as duas consigam o que querem. Mas, decido afastar esses pensamentos. 

Passando pelo corredor, senti-me observada por todos aqueles retratos. Mas, o daquela mulher novamente atraía-me como um íman. Olhei para os lados antes de fitá-lo com mais atenção.

A riquesa dos detalhes era fascinante. Um sorriso riscou-me os lábios ao imaginar que tenha sido pintado na era victoriana. 

Eu afastei-me do quadro e segui o meu caminho até à sala de jantar. Pude ter a oportunidade de observar com mais atenção os móveis rústicos que apesar de serem antigos estavam bem conservados.

Quando adentrei o cómodo, encontrei Génesis já me aguardando com impaciência. Na extensa mesa coberta por uma linda toalha de renda  estavam expostos os pratos da mais fina porcelana inglesa, talheres de prata, copos e taças de cristais. Tudo muito bem polido.

Sem saber muito bem onde sentar-me ocupo o lugar à frente de Génesis. Ela revira os olhos para mim e de seguida desvia-os para os talheres  à sua frente. 

Lady Armstrong adentra a sala de jantar acompanhada de duas copeiras. Com os braços cruzados atrás das costas ela avalia a organização da mesa, de seguida eu e Génesis passamos pela sua análise minuciosa, o seu nariz adunco é empinado de forma arrogante como o de uma marquesa do século XVII. 

As copeiras com a expressão igualmente circunspecta servem o jantar de maneira mecânica. 

__ Bom apetite! 

Lady Armstrong diz olhando para Génesis com veemência, ela fica retraída e olha para baixo.

__ O seu pai não me disse onde a Senhorita estuda. 

Comento quando somos deixadas a sós.

__ Eu estudo no Saint Luiza's, é uma escola exclusiva para meninas. Fica a algumas horas daqui.

Eu assinto. 

__ Deve ser bem cansativo fazer esse trajecto todos os dias.

Ela dá de ombros. 

__ Eu gosto. É reconfortante não se sentir presa dentro de uma gaiola para variar. 

Ela brinca com a sopa em sua tigela.

__ Não está com fome? 

Ela balança a cabeça negativamente e de seguida recosta-se no espaldar da cadeira.

__ Eu almocei tarde. Será que posso ir deitar-me? 

Eu deixo a colher de lado e a encaro.

__ Deveria comer pelo menos uma fruta para não sentir fome durante à noite. 

Ela revira os olhos.

__ Eu não quero comer nada! E, acima de tudo não me apetece partilhar à mesa com você. 

Lady Armstrong junta-se a nós. Os seus olhos passam por mim e de seguida para Génesis. 

__ Eu sinto uma leve tensão. Aconteceu alguma coisa?

Ela franze as sobrancelhas e cruza os braços. 

__ Não, lady Armstrong. Está tudo certo. 

Génesis responde, olhando para mim com frieza. 

__ Muito bem. O que acha de tocar piano para nós após o jantar? 

O pedido de lady Armstrong soara mais como uma ordem.

__ Como quiser, lady Armstrong.

Ela pega a colher de sopa e leva-a até à boca, meio que a contragosto.

O resto do jantar segue-se em silêncio.  Enquanto as copeiras retiravam a louça suja nós seguiamos até a sala de estar onde jazia um grande piano. Olhando com mais atenção percebi que fora nesse lugar onde o retrato daquela senhora fora pintado.

__ Eu deixei as partituras na primeira gaveta da sua cómoda, menina.__ disse lady Armstrong.

Eu acomodei-me numa poltrona frontal ao piano. 

__ Deixe que eu pego, não me demoro nada.

Ela lança-me um sorriso sorrateiro antes de seguir até às escadas. 

Dou de ombros e foco-me no grande retrato sobre a lareira. Nele estavam  o senhor Greenford e a mesma mulher do outro retrato, ela segurava um bebé ao colo que supus como sendo a senhorita Génesis.

Eu sabia que o Senhor Greenford era viúvo, provavelmente aquela era à sua falecida esposa.

Quando Génesis voltou ela acomodou-se no banquinho estofado de frente ao piano e começou a tocar uma peça que eu reconheci logo como sendo a do compositor alemão Beethoven. Ela tocava a sinfonia número cinco com primor.

Lady Armstrong estava à sua atrás e a observava com um sorriso orgulhoso.

À meia noite eu deixei Génesis em seu quarto e segui para o meu. Estava exausta e tudo o que precisava no momento era de descansar. 

Eu descalcei os meus sapatos e despi-me do meu uniforme para de seguida envergar-me no meu pijama de flanela.

Antes de deitar-me na cama eu ajoelhei-me e agradeci a Deus por finalmente ter abandonado aquele bairro povoado apenas por pessoas de índole duvidosa.

Logo que eu cobri-me um lóstrego rasgou a noite. Provavelmente um temporal começaria. 

No quarto mal iluminado, reinava uma profunda paz. Ouvia-se apenas o 

tamborilar das gotas de chuva na vidraça e o característico tic tac do pêndulo do relógio sobre a velha cómoda, que ia aumentando de intensidade.

Eu não conseguia dormir. Uma coceira enorme que começara nas costas agora se alastrava por todo o corpo. Eu coçava os braços, rosto e barriga freneticamente. 

A coceira era tão grande que fui obrigada a despir-me. 

Uma vistoria nos lençóis permitiu-me ver uma substância estranha. Aquilo só poderia ser pó de mico. 

__ Génesis!


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